Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A arte de se ter razão

Mais doído do que ouvir um oponente defender mal a idéia que combatemos é ouvir um aliado defender mal a idéia com a qual simpatizamos. Felizmente para a simetria dos debates, as patologias do raciocínio não tem preferência partidária, profissional, de gênero, credo religioso ou classe social. Vindas da direita ou da esquerda, de políticos ou professores, de religiosos ou ateus, as agressões à lógica são sempre golpes baixos.

Freqüentar a escola ajuda, mas não muito. A educação tradicional não imuniza contra as falácias e conclusões pouco científicas. Para isso é preciso treinamento no chamado ‘pensamento crítico’ – o exercício de formar crenças a partir de observações e decisões racionais sobre a realidade.

Nesta breve resenha examinaremos dois livros que tratam do pensamento crítico e do método científico, cada qual a seu modo. O primeiro é recente. O Pensamento crítico e argumentação sólida, de Sergio Navega, foi lançado no mês passado. O segundo, Ciências versus pseudociências‘, de Paulo Lee, é de 2003, mas só agora teve a distribuição normalizada. Ambos são de interesse para o profissional de jornalismo e para o leitor educado que queira familiarizar-se com a matéria. Na verdade, são complementares e deveriam ser leitura obrigatória nos cursos de jornalismo e comunicação.

Pensamento crítico

A imprensa fornece farto material ao pesquisador que queira levantar o catálogo dos pensamentos malformados e das argumentações canhestras. Os jornalistas dizem muita besteira, mas não só eles. Eles e todos nós. Ao registrar no papel as bobagens ditas por políticos, artistas e personalidades públicas ou ao contribuir com disparates de sua própria lavra, os jornalistas só fazem enriquecer a grande enciclopédia da insensatez humana.

Não foi por outro motivo que Sergio Navega buscou na imprensa grande parte do material ilustrativo para o livro Pensamento crítico e argumentação sólida (2005). E material não falta. Na semana em que escrevo os jornais trazem a declaração do presidente da Câmara, o deputado Severino Cavalcanti, em que ele diz estar sendo perseguido ‘porque é nordestino’. Se tivesse lido o livro de Navega, o ilustre deputado saberia que essa falácia chama-se ‘apelo à emoção’ (pág. 175), e ocorre quando alguém faz o uso de emoções ou sentimentos em vez de apresentar evidências convincentes.

Sergio Navega é físico, pesquisador de inteligência artificial e consultor em sistemas inteligentes. Seu livro enfatiza a comunicação lingüística, e tem por subtítulo ‘Vença suas batalhas pela força das palavras’. Eu preferiria que as vencêssemos pela força dos argumentos. Essa é uma das minhas pequenas implicâncias com o livro, que são poucas e em nada lhe diminuem a importância. No Brasil não falta quem ajeite bem as palavras, que fale e escreva bonito e convença os desavisados. O que falta é gente que pense bem. Pensar bem se aprende, a não ser que acreditemos que a lógica não tem chance ao sul do Equador.

Critical thinking é uma disciplina popular nos cursos de pós-graduação, graduação e até mesmo no segundo grau das escolas americanas. Nos cursos de ‘Debate’ das high school, escolas de nível equivalente ao nosso segundo grau, os alunos aprendem a argumentar de maneira lógica e persuasiva. São discutidos temas políticos, ambientais, sociais, religiosos e científicos de relevância contemporânea. Um exercício comum é pedir aos debatedores que mudem de lado. Quem antes defendia, por exemplo, as cotas raciais nas escolas, passa a argumentar contra elas. Dessa maneira o aluno exercita a habilidade de desenvolver um raciocínio coerente a partir de premissas.

No Brasil o mais próximo que se tem do estudo do pensamento crítico são os cursos de ‘Metodologia Científica’, geralmente na pós-graduação, ou disciplinas específicas no ensino de filosofia e direito. Ocasionalmente se estudam (mal) Popper, Habermas, Kuhn, Feyrabend e (socorro!) Derrida. Sem a formação básica em pensamento crítico esse estudo é desperdiçado. Os cursos de graduação nem com isso contam. Gerações de administradores, professores, jornalistas, advogados, médicos, cientistas e engenheiros são formados sem ter tido o prazer de conhecer os princípios norteadores da coerência no pensar.

O livro de Sergio Navega propõe-se a sanar essa deficiência através de um texto completo e acessível. Fiel a seu propósito, Navega conduz o leitor, em oito capítulos logicamente encadeados, desde a formação dos argumentos até o papel das emoções na argumentação. Para que o leitor não pense que o livro é um desses manuais chatos é preciso dizer que Sergio Navega escreve em estilo leve e bem humorado. Um exemplo. No capítulo ‘Virtudes e males da linguagem’ ele conta o que dizia o bilhete que achou no interior de um biscoito chinês –’O seu negócio assumirá amplas proporções’ – e diz: ‘Imaginei-a escrita no frasco do medicamento Viagra’.

Sergio Navega nota, de maneira bastante oportuna, que a pura coerência lógica não garante a verdade. Ainda que os dois lados de um debate usem de lógica impecável, suas conclusões dependerão das premissas. O que um bom argumentador faz é construir conclusões que derivem logicamente das premissas. Essa habilidade é importantíssima em quase todos os campos profissionais e na vida diária. Sem ela, passamos a vida numa espécie de torpor surrealista, onde os efeitos não têm causa e causas idênticas não produzem necessariamente efeitos idênticos.

Para evitar a intromissão de citações e explicações mais técnicas no texto, Navega usa o recurso dos quadros (chamados em jornal de ‘boxes’). Neles são desenvolvidos temas relacionados a ciência cognitiva, neurociência, matemática, física, evolução, filosofia, etc. O capítulo cinco é uma enciclopédia das falácias, e certamente servirá como referência após a leitura do livro. As falácias são identificadas não só por seu nome mais comum como também por seus sinônimos e nomes em inglês e latim. É assim que ficamos sabendo, por exemplo, que ‘descida escorregadia’ também pode ser ‘declive escorregadio’, ‘falácia do dominó’, ‘slippery slope’ ou ‘reductio ad absurdum’. Em tempo, declive escorregadio é dizer o que disse o escritor português Miguel Esteves Cardoso: ‘Hoje o Estado me obriga a usar cinto de segurança; amanhã vai me obrigar a fazer ginástica e me proibir de comer gordura, o que seria bom para o corpo, mas péssimo para as instituições’ (pág. 161).

Ciência e pseudociência

Enquanto o livro de Navega é uma espécie de manual do pensamento crítico e examina em detalhe a arte da argumentação e as falácias lógicas, o livro do professor Paulo Lee volta-se principalmente para a compreensão da ciência e a distinção entre o pensamento científico e o pseudocientífico. Há alguma sobreposição de temas entre as duas obras, mas não a ponto de uma dispensar a outra. O que Navega trata rapidamente, Lee aprofunda, e vice-e-versa.

Por cobrir campo tão vasto – e como é vasta a capacidade humana de formar crenças absurdas! – Lee se expõe a críticas dos defensores das superstições que desmistifica. É concebível que defensores da astrologia, homeopatia e ufologia imaginem que a sua especialidade tenha sido tratada superficialmente e, por isso, classificada como pseudociência. Mas essa é uma batalha perdida. Nem um Everest de evidências faria os adeptos das crenças pseudocientíficas deixar de acreditar nelas. O livro explica por quê. O importante é ensinar os leitores desacostumados a analisar o mundo através do prisma científico a distinguir a ciência da não-ciência. Leitores desacostumados, na frase anterior, é termo que inclui professores universitários que se tratam com a homeopatia, engenheiros que acreditam em discos voadores, políticos que recorrem a médiuns e adivinhos e jornalistas que entrevistam acriticamente os expoentes da mistificação pseudo-científica.

Talvez para tornar a leitura mais fácil e prazerosa, Lee optou por intercalar explicações sobre os fenômenos que afetam a percepção humana com as críticas às diversas pseudociências. Isso causa certa confusão. É assim que encontramos o item ‘Falácias’ encaixado entre os capítulos ‘Ufologia’ e ‘Críticas à ufologia’, ou os capítulos ‘Efeito Forer’ e ‘Teste duplo-cego’ metidos entre ‘Astrologia’ e ‘Críticas à astrologia’.

O livro de Lee conta ainda com um útil resumo das concepções históricas da ciência, do indutivismo de Bacon à sociologia do conhecimento de Latour. O leitor familiarizado com a filosofia da ciência sentirá falta de um juízo crítico sobre os vários autores. Embora o livro deixe evidente a preferência de Lee pelo racionalismo crítico de Popper, ele dá igual espaço e tratamento a Kuhn, Lakatos, Feyerabend e Latour. Têm-se a impressão de que a seqüência histórica corresponde à ordem crescente de importância desse filósofos para a ciência contemporânea, o que não é verdade. Porém, o tratamento simplificado é mais do adequado aos objetivos da obra, pois ao escrevê-la Paulo Lee teve em mente professores e estudantes das áreas científicas. Eu enfatizaria que o livro é igualmente útil para jornalistas que escrevem sobre ciência e tecnologia. Quem sabe um dia deixaremos de ler nos jornais que algo foi ‘comprovado cientificamente’. Para a surpresa de muitos, Popper ensina que a ciência jamais consegue comprovar que algo é verdadeiro.

Paulo Lee é engenheiro civil e mestre em engenharia de produção, mas dedica-se principalmente à educação. Por ser educador, Lee dedica os dois últimos capítulos do livro à educação. Em ‘Uma proposta de prática pedagógica no ensino-aprendizagem das ciências naturais’, ele defende a idéia de que uma das maneiras de estimular o pensamento racional-científico entre os estudantes é promover o confronto entre a ciência e a pseudociência.

Os textos de Navega e Lee são um excelente princípio de formação da biblioteca do ceticismo contemporâneo em português. Embora muito do material que contém possa ser encontrado em forma fragmentária em outras fontes, ao que eu saiba nunca foi organizado de maneira sistemática. São textos bem escritos, de leitura fluente, que não subestimam o leitor. Como sempre acontece, têm também os seus problemas e mereceriam uma revisão cuidadosa, talvez numa próxima edição. Sérgio Navega, por exemplo, atribui a Richard Dawkins (pág. 234) a frase do engenheiro espacial James Oberg – ‘Ter a mente aberta é uma virtude, mas não tanto que o cérebro caia fora’. O livro de Paulo Lee se beneficiaria de uma reordenação dos capítulos. Esses são males menores se comparados à imensa contribuição que esses textos trazem para a divulgação do pensamento crítico e do método científico entre o público leitor brasileiro.

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Engenheiro, vive em Boston (EUA)