Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A arte dos obituários

[do material de divulgação da editora]

Este título da coleção Jornalismo Literário apresenta ao leitor brasileiro uma pequena amostra da arte de escrever obituários. O livro das vidas reúne uma seleção de textos publicados na seção de obituários do New York Times, com ênfase nas histórias de pessoas comuns, cujas vidas ganham outra dimensão ao serem descritas com o olhar curioso e afetuoso dos repórteres do diário americano.

Em detalhado posfácio que acompanha o volume, Matinas Suzuki Jr., coordenador da coleção Jornalismo Literário, mostra como a seção de obituários foi ganhando importância nos jornais americanos e ingleses ao longo das últimas quatro décadas. Suzuki relembra a trajetória de Alden Whitman, imortalizado por Gay Talese como o Sr. Má Notícia (em perfil incluído na coletânea Fama & anonimato), que deu novo impulso a este tipo de texto ao entrevistar figuras famosas com o objetivo declarado de recolher informações para os seus futuros obituários. ‘A seção de obituários do Times é uma cerimônia de adeus diária de bom jornalismo e uma das campeãs de leitura do jornal mais influente do mundo. Há quem pense que a valorização do obituário pela imprensa de língua inglesa seja um ritual de morbidez, mas isso é uma falsa impressão’, escreve Suzuki.

Requinte literário

Para além dos ‘mortos ilustres’, esta coletânea mostra como a seção de obituários pode alcançar grandes momentos ao descrever, com humor, ironia e notável poder de síntese, histórias de pessoas que dificilmente freqüentariam as páginas dos jornais. Gente como Angelo Zuccotti, o sujeito que cuidava da porta de El Marocco, famosa boate nova-iorquina, e que considerava sua atividade uma arte. Ou Anton Rosenberg, amigo dos beatniks Jack Kerouac e Allen Ginsberg, que tinha uma atitude tão cool e uma despreocupação e indiferença tão grandes que ‘nunca chegou muito a nada’.

Entre os autores dos obituários desta coletânea, um merece atenção especial: Robert McG. Thomas Jr., que levou ao requinte literário a tarefa de sintetizar a vida dos personagens em uma única frase, a primeira do texto. Autor de 657 obits – ou McGs, como ficaram conhecidos – no New York Times, morto aos sessenta anos, tornou-se ele próprio personagem de um texto nesta coletânea.

Leia abaixo um dos obituários publicados no Livro das vidas

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DOUGLAS CORRIGAN

Entrando na história pelo lado errado

Robert McG. Thomas Jr.

Douglas Corrigan, o impetuoso aviador errante que em 1938 conquistou o imaginário de um público cansado da Depressão ao sair do Brooklyn num vôo solo sem escalas para Los Angeles e no dia seguinte pousar seu inimaginável aeroplano em Dublin, morreu num hospital em Orange, Califórnia. Tinha 88 anos e por mais de meio século ficou conhecido como Corrigan Direção Errada.

As poucas pessoas presentes no Campo Floyd Bennett quando Corrigan decolou, às 5h15 da manhã de 17 de julho de 1938, ficaram desconcertadas quando o piloto de 31 anos de idade inclinou o avião, fez uma curva e desapareceu a leste. Segundo seu plano de vôo, ele deveria seguir rumo a oeste.

Quando o mundo soube que seu avião de segunda linha e com excesso de peso havia descido no Aeroporto Baldonnel em Dublin, 28 horas e trinta minutos depois, Corrigan não só estava ciente do que tinha feito, como também já voara direto para os corações do povo americano. ‘Sou Douglas Corrigan’, disse aos aeroportuários irlandeses que se reuniram assombrados à sua volta quando ele aterrissou. ‘Venho de Nova York. Onde estou? Queria ir para a Califórnia.’

Continuou a sustentar com uma cara mais ou menos séria que havia apenas feito uma curva errada e se perdera por causa de uma bússola defeituosa, mas estava longe de convencer as pessoas dessa história, especialmente as autoridades aéreas dos Estados Unidos, que várias vezes haviam rejeitado seus pedidos de permissão para o vôo, pois julgavam que seu Curtiss-Robin 1929 modificado merecia apenas o certificado de aeronave experimental.

Sem se abalar pelos indícios de que ele não consultara relatórios climáticos do Atlântico Norte antes do vôo e de que somente levara mapas com a suposta rota para a Califórnia, as autoridades consideraram o avião tão inseguro e o vôo tão ilegal que foi necessário um telegrama oficial de seiscentas palavras para detalhar todos os regulamentos que ele havia infringido. Mas, se Corrigan quase não conseguia contar a história sem uma piscadela de olho, as autoridades, por sua vez, mal sabiam como não retribuir a piscadela.

Desempenho máximo

Embora seu brevê tenha sido suspenso imediatamente, Corrigan, após voltar de navio para os Estados Unidos, não perdeu um minuto de vôo. Ele cumpriu todo o período de suspensão no mar. O brevê foi revalidado logo que Corrigan e a caixa com seu avião entraram no porto de Nova York a bordo do vapor Manhattan, em 4 de agosto, para uma recepção tumultuosa.

Houve outra recepção ainda maior no dia seguinte, quando cerca de 1 milhão de nova-iorquinos se alinharam na baixa Broadway para uma comemoração que, segundo alguns, eclipsou a realizada em honra de Charles A. Lindbergh, depois do seu vôo solo até Paris, em 1927. O vôo de 3150 milhas de Corrigan causou comoção, desbancando de imediato as notícias econômicas deprimentes e as sinistras matérias internacionais das primeiras páginas americanas e dominando os programas de rádio por todo o país.

Uma meia dúzia de pilotos famosos, entre eles Amelia Earhart e Wylie Post, já havia atravessado o Atlântico desde que Lindbergh abrira caminho com o Spirit of St. Louis em 1927, mas ninguém tocou tão fundo a sensibilidade do povo americano como Corrigan. Isso se deu em parte porque foram cativados pela diabrura do jovem piloto, que tapeara as autoridades com a mesma desenvoltura com que negou a tapeação, e em parte porque ele realizou o vôo não numa aeronave moderníssima com instrumentos avançados, e sim num aeroplano decrépito e tão precariamente remendado que era chamado de lata-velha aérea e calhambeque voador.

Corrigan comprou o avião em Nova York em 1933, por 310 dólares, e na volta para a Califórnia, entre outras coisas, parava de fazenda em fazenda oferecendo passeios em troca de dinheiro. Nos dois anos seguintes, trabalhou extensivamente no avião, tirando o motor original, um Curtiss OX-5 de noventa cavalos, e substituindo por um modelo de 165 cavalos, montado a partir de dois motores Wright antigos. Instalou também dois tanques adicionais, que ele próprio construiu e que, como no Spirit of St. Louis de Lindbergh, obstruíam totalmente a visão dianteira. Várias peças, inclusive a porta da cabine, foram amarradas com arame. Segundo Charles V. O.Donnell de Eugene, Oregon, em 1936 Corrigan realizou diversas experiências para alcançar a melhor regulagem entre aceleração e consumo, a fim de obter o máximo de desempenho. Após vários vôos preliminares de costa a costa, instalou mais dois tanques de combustível e um tanque de óleo reserva.

Na garagem

Corrigan, que nasceu em Galveston, Texas, e foi criado em Los Angeles, havia muito tempo sonhava com um vôo transatlântico. Fascinado por aviação desde novo, ele foi piloto itinerante, instrutor de vôo e mecânico de avião, tendo ajudado a construir o Spirit of St. Louis de Lindbergh em San Diego. Na verdade, foi ele quem tirou os calços das rodas do avião quando Lindbergh voou de San Diego para Nova York, em 1927.
Corrigan, que havia comentado abertamente com amigos a idéia de fazer uma travessia não autorizada, voou até Nova York em 10 de julho de 1938, estabelecendo um recorde de vôo solo sem escalas de 27 horas e cinqüenta minutos para o percurso de 4300 quilômetros.

Quando decolou na semana seguinte, aparentemente a caminho da Califórnia, depois de engolir a recusa das autoridades para o vôo transatlântico, levou consigo algumas barras de chocolate, duas caixas de bolachas baratas e um litro de água.

Nos meses que se seguiram à proeza, saiu numa turnê triunfante pelos Estados Unidos, endossou produtos na ‘direção errada’, como um relógio que andava para trás, e assinou contratos lucrativos para uma autobiografia e um filme, O irlandês voador, estrelado por ele mesmo.

Corrigan foi piloto de testes durante a Segunda Guerra Mundial e depois montou um serviço de carga aérea. Nos anos 50, comprou uma plantação de laranjas em Santa Ana, Califórnia, mas foi obrigado a vender a maior parte dela nos anos 60. Sua esposa, Elizabeth, morreu em 1966. Depois de perder um filho num acidente aéreo na Ilha Catalina, em 1972, tornou-se cada vez mais recluso. Mas, em 1988, foi convencido a voltar aos holofotes após um convite para exibir seu avião num show aéreo.

Corrigan o desmontara e guardara na garagem em 1940, mas ficou tão entusiasmado que os organizadores do espetáculo se alarmaram. Embora Corrigan não voasse desde 1972, eles acharam mais prudente colocar guardas nas asas do aeroplano durante a aparição, e inclusive cogitaram prender sua cauda com uma corda amarrada a uma viatura policial.

Ele deixa dois filhos, Douglas, de Santa Ana, Califórnia, e Harry, de Apex, Carolina do Norte; e uma irmã, Evelyn, de Santa Ynez, Califórnia. [14 de dezembro de 1995]

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Coletânea traz melhores obituários do ‘NY Times’

Willian Vieira # copyright Folha de S.Paulo, 26/1/2008

Reza a máxima do ex-editor de cidades do New York Times, A. M. Rosenthal, que ‘se você tiver que morrer, é melhor morrer no Times‘. Mas o tom é menos tétrico do que parece.

No maior jornal dos EUA escreveram os melhores obituaristas da história – artistas da morte como Alden Whitman, o ‘Sr. Má Notícia’, ou Robert McG. Thomas Jr., pai das ‘biografias de gente desconhecida’.

Alguns dos textos já fazem parte de duas antologias em inglês, que foram utilizadas pela Companhia das Letras para compilar uma seleção que chega traduzida ao Brasil no dia 29, como O Livro das Vidas.

‘O obituário talvez seja o único lugar da imprensa diária que chegou perto do jornalismo literário sistematicamente’, diz Matinas Suzuki Jr., coordenador da coleção ‘Jornalismo Literário’. No livro estão 57 obituários de pessoas anônimas, mas importantes pelo que fizeram, como o ‘Calvin Klein do espaço’ que abre o livro.

Um dia, na escola de uma cidadezinha de Massachusetts, o garoto Russell Colley disse a um escandalizado professor que queria ser estilista de roupas femininas. Acabou estudando desenho mecânico, coisa de homem. E não tardou até que se destacasse no âmbito da engenharia espacial nos anos 1930 – mas por projetar trajes pressurizados, que os pilotos americanos usaram para quebrar recordes de altitude. Mais tarde, ele comentaria o pânico dos astronautas por não terem ‘certas facilidades’ para as ‘necessidades’ no espaço.

Detalhes pinçados com maestria, e que, enleados à ‘causa mortis’, número de herdeiros e datas de um obituário qualquer, e narrados como uma ‘pequena biografia’, instantânea e colorida, fizeram de Robert McG. uma lenda no Times. E, por isso, o autor mais freqüente dos textos da coletânea brasileira. ‘McG. deu importância jornalística ao obituário, não só de precisão, mas de estilo’, avalia Suzuki Jr.

No posfácio, o organizador delineia a história recente do gênero, quando o até então copidesque do Times Alden Whitman foi chamado para ‘dar vida à página de obituários’ – e que virou logo ‘o pai do obituário moderno’, pela simples idéia de entrevistar os perfilados em vida sobre sua morte. Deu tão certo que a prática é ainda hoje mantida pelo Times – que já teve mais de 2.000 obituários prontos ‘na gaveta’, à espera da morte.

Há sabor ainda na evolução dos eufemismos, no melhor estilo ‘partiu dessa para melhor’, trazidos à tona no filme Closer (2004); e na história do escritor Ernest Hemingway, que, tido como morto, acabou lendo o próprio obituário – o que continuaria fazendo ao longo da vida, todas as manhãs, com uma taça de champanhe.

Tradição

Nos Estados Unidos e no Reino Unido, a maioria dos jornais tem uma seção fixa de obituários, o que não acontece no Brasil. ‘Eles são mais valorizados na cultura anglo-saxã, que celebra o morto’, diz Suzuki Jr. ‘É diferente da cultura ibero-católica, marcada pelo estigma da dor e do silêncio.’

A idéia é mudar essa visão mórbida do obituário. ‘Uma boa história humana, próxima e bem narrada, é tudo o que o leitor quer no café da manhã.’

Seção está entre as mais lidas do jornal

O New York Times não tem mais Robert McG. ou Alden Whitman na sua editoria de obituários – sim, há uma editoria para isso, com quatro repórteres, colaboradores e um editor, hoje Bill McDonald, que já foi editor de política, cultura e investigação.

Com algumas fórmulas, muita criatividade e alguns empurrões dos leitores, ele fala sobre o prestígio de ‘uma das seções mais lidas do jornal’ e diz ser possível fazer os melhores obituários do mundo. A seguir, a entrevista que concedeu à Folha, de Nova York, por telefone. (WV)

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Quem é elegível para um obituário no Times?

Bill Mcdonald – Quem deu algum tipo de contribuição à sociedade, deixando uma marca em seu tempo. Mesmo desconhecido, mas que descobrimos que fez algo significante. E celebridades que deixaram uma forte impressão no público.

Há alguma fórmula para escrever?

B.M. – Sim, temos um padrão: dizemos o nome, por que ele é importante, por que estamos escrevendo sobre ele, onde morreu e quando. O resto é biográfico. Mas podemos ser muito criativos em cima disso.

O público oferece obituários ao jornal?

B.M. – Sim, fizemos há pouco o obituário de um homem que escreveu mais de mil diários, talvez a maior coleção, com milhões de palavras. Nunca tínhamos ouvido falar dele. Alguém ligou para o repórter e contou. Recebemos centenas de ligações, cartas e e-mails com pedidos de publicação.

Quem são os leitores do obituário do Times?

B.M. – Temos um público bastante dedicado, de todas as partes da sociedade, mas tendem a ser mais velhos, pois escrevemos sobre pessoas de quem eles se lembram. Gente da geração baby boom e que está começando a morrer.

É uma das seções mais lidas do jornal?

B.M. – Muitos dizem que é a primeira página que lêem, que querem saber primeiro quem morreu. É quase como um ritual, que remonta aos primórdios da nossa sociedade, quando o town crier (um arauto) ia às cidades anunciar quem havia morrido à noite.

O Times ainda entrevista os perfilados quando vivos?

B.M. – Algumas vezes, sim. Escrevemos obituários com antecedência, quando são pessoas mais importantes. Alguns deles querem, alguns não.