Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A aventura da tradução

Lento, algo tedioso e solitário, quase sempre preso a uma meticulosidade indispensável, o oficio de tradutor requer do seu praticante sobretudo uma rigorosa disciplina intelectual. Mesmo quando ele, caso mais freqüente, não escolhe o que vai traduzir – esta, uma atribuição das editoras e seus apertados cronogramas de publicação.


De vez em quando, coincidem os interesses: a editora, comprometida com leoninos contratos internacionais, precisa lançar o livro; o tradutor, além de premido pela sobrevivência imediata, aprecia o autor da obra em questão.


Como tradutor de cinco livros de MarioVargas Llosa, agora contemplado com o Nobel de Literatura, tive esse privilégio meio pela metade, pois a partir da primeira tradução, A Festa do bode, de 2001, os outros quatro (A linguagem da paixão, Conversa na catedral, O paraíso na outra esquina e Dicionário amoroso da América Latina) vieram numa rápida sucessão, cabendo a mim só aceitar, com entusiasmo, o novo desafio.


Olho crítico


Pontificar sobre as magníficas virtudes literárias de Vargas Llosa é tarefa até aqui bem cumprida por críticos e resenhistas ao redor do mundo. E concordar ou não com suas opiniões políticas é se meter em terreno minado, mais apropriado a outros campos de reflexão.


Limito-me então a certos aspectos do trabalho tradutório, que, por uma circunstância particular, enriqueceram e amenizaram minha modesta tarefa: a brilhante junção de técnicas jornalísticas aos recursos da carpintaria literária, daí resultando um texto claro, fluente, nervoso, apegado a uma estrutura narrativa realista.


Quadro reforçado com um léxico deslumbrante, com base no espanhol falado e escrito – de uma ponta a outra do continente. Sutilezas e armadilhas que don Mario, também jornalista talentoso, captou muito bem em suas reportagens e transmitiu, com maior liberdade criativa, à sua ficção.


Bom exemplo disso, pedreiras surgindo aqui e ali, são os palavrões, incluindo, ademais dos espanhóis, os peruanos, dominicanos, mexicanos, obrigando o tradutor a buscar soluções, literais ou aproximativas, em dicionários, consulados, amigos estrangeiros.


Assim, numa única página, o termo coño, espanholíssimo, repetido, pode significar, dependendo do contexto, tanto o órgão sexual feminino como um desabafo exclamativo, parecido ao nosso popular ‘porra!’.


A ressaltar, por fim, a importância, em qualquer tradução, do olho crítico de uma afiada revisão final por parte da editora. Também nisso fui afortunado, pois a equipe editorial da antiga Siciliano, sob o comando fino e exigente do poeta Pedro Paulo de Sena Madureira, sempre cuidou com carinho e competência das minhas traduções de Vargas Llosa (e das de Octavio Paz e de William Faulkner).

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Jornalista e escritor