Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A carne viva de Paulo Francis

O dispositivo janguista que não disparou para evitar que os gorilas assaltassem o poder e nele ficassem 21 anos fazendo desaforos com o sonho democrático nacional representaria a vergonha e a covardia tupiniquins. Mexe com os nervos de cada um.

É uma das conclusões que poderiam ser levantadas pela leitura do instigante Carne viva, de Paulo Francis [Editora Francis, 264 pp., 2008], depois de observar o desvario mental de Almeida, personagem expulso por 1964 para viver no exílio em Paris, onde, em 1968, o personagem central do romance, o banqueiro Guerra, está acompanhando a revolução social democrata burguesa juvenil que abalou o mundo.

Hilário, um banqueiro na passeata, observando as mulheres e fazendo planos de levá-las para seu luxuoso ap no Ritz, enquanto Paulo Hesse, o jornalista, acompanha a garotada rumo à vontade sartreana de mudar o mundo com os punhos no ar.

Sexo, poder, dinheiro, cinismo, desespero de uma alma cuja geração engolfou-se em tremendos fracassos por não ter sido suficientemente conhecedora da sua própria psique conservadora nacional, ou seja, o verdadeiro motivo a travar a ação do dispositivo janguista.

Baixeza e grandeza humanas

É uma viagem jornalístico-romancista emocionante que investiga os interiores da classe alta carioca dos idos de 1950 em diante, do Brasil bossa-nova, e que vai penetrando nas contradições do capital externo que embalava o sonho desenvolvimentista varguista-jucelinista-keynesiano invejado pelos golpistas udenistas e seus personagens fantásticos, como Carlos Lacerda etc., aliados de Washington. 64 põe fim à fantasia para abrir espaço ao tripé Estado militar-capital nacional-capital externo na tentativa de construir o Brasil Grande ufanista, enxotando os comunistas para a capital francesa, charme do mundo.

Os interiores de uma elite vazia de conteúdo, sexualmente desreprimida, preocupada com futricas, típicas das novelas da Globo. A cabeça nacional da elite que se espraia para as demais classes que estão tendo acesso agora, com Lula, ao crédito direto ao consumidor é a cabeça da Globo, futilidade completa. Homogeneização cultural total.

Nesse ambiente psicológico desreprimido, mas totalmente mesquinho em seus interesses, do qual 99,9% dos brasileiros e brasileiras estão afastados – pois ainda não haviam sinais para que se entupissem inteiramente do consumismo vomitado nos países ricos, graças ao crescimento dos verdes – Paulo Francis dança e canta com muita competência, mostrando, aí, como nasceu a grande revolução sexual que tal consumismo trouxe às classes ricas e médias altas cariocas muito antes que os jeca-tatus do Brasil afora experimentassem o angu gostoso.

As descontrações e extroversões nos salões de Botelho e de Temístocles, o grande advogado das multinacionais e o grande banqueiro, cujos tentáculos se estendiam pela Europa e Estados Unidos, facilitando os deslocamentos do seu diretor, Guerra, pelas praças internacionais e pelas camas das mulheres mais fantásticas do globo terrestre em meio aos conflitos de maio de 1968, são as fontes naturais da psiquê da elite tupiniquim, apanhadas por Francis em enredos que demonstram existir verosemelhanças no alto e no baixo, ou seja, a baixeza e a grandeza humanas interativas em movimento de atração e repulsão em uma sociedade com a mente exposta pelo tempo das capitanias hereditárias.

Excesso de hedonismo

Os mesmos impulsos mal contidos pelo potencial instintivo-darwinista, os mesmos crimes, as mesmas crueldades, as mesmas instabilidades emocionais, os mesmos estresses, os medos e receios parecidos, típicos, naturalmente, da raça, dividida pelo capital em antagonismos profundos, ancestrais, de beber o sangue, mas de beatificar, também, o sangue, na vã esperança de que talvez um dia, quem sabe, se realize o sonho sartreano irrealizado nas ruas de Paris, e não apenas se materialize o sonho e o deleite de um banqueiro que vai ali, na farra, pegar umas gatas para levar ao luxuoso hotel.

Por aí, em desvario controlado e bem dosado, vai Paulo Francis numa viagem fascinante pela cultura: bebidas, lugares, livros, peças de teatro, cenas cômicas, dramáticas, associadas às expectativas emocionais que se transportam pelos jornais mundo afora, levando a influência daquilo que nasceu antes de Cristo, na Grécia, em suas transformações, principalmente, no processo de amadurecimento e choque da social democracia, do socialismo e do comunismo em ascensão e queda no século 20, espalhando sonhos e receios em escala global.

No Brasil, claro, uma minoria, no Rio, nos tempos de Francis, se banhava na cultura ocidental, enquanto o resto ficava na escuridão. É como o sonho de Brasília. O socialismo, na cabeça de Lúcio Costa e Nieymeyer, deu nas chusmas de políticos desqualificados – a maioria – que dominam a Câmara Legislativa, retalhando a cidade entre si e seus agentes, enquanto a utopia de se morar na maquete do Plano Piloto vive como abstração, ao lado das cidades-satélites que vomitam amor, sangue e violência, como, aliás, em toda e qualquer grande cidade brasileira.

O consumismo, que antes era privilégio de uns, para o deleite, sofrimento e dor do observador atento, como Francis, hoje é de uns e de outros, generalizadamente, enquanto a carga destrutiva que traz o excesso de hedonismo explode intensamente para todos os lados.

Intimidades de casais

Nesse ambiente traçado por Francis em que o capitalismo ainda nem existia como prática no crédito direto ao consumidor na cabeça das massas, dificilmente haveria força interna suficiente, consciente politicamente, para garantir que fosse um sucesso a detonação do dispositivo janguista, a fim de realizar a revolução social.

Francis é um crente e um descrente em ebulição, da ira à doçura, suas cenas de sexo são intensas e muito bem dosadas por uma finura aristocrática que deixa o leitor no desejo de algum dia sentir no real aquelas sensações abstratas.

Mas o que fazia mesmo a cabeça do personagem não era a angelicalidade de sua mulher, apanhada na elite da classe exportadora carioca, endividada no banco de Temístocles, do qual Guerra é o bam-bam-bam, deslocando os concorrentes na corrida ao topo. Era, sim, o vulcão sexual africano que Etienne, também banqueiro, arrumou para ele, em Paris, durante o vendaval estudantil que terminou com a chamada às eleições por De Gaule abrindo espaço para os banqueiros, representados por Pompidou.

A sexualidade negra, vista como imoralidade pelos invejosos brancos, a potencialidade sexual do negro é o sonho de Botelho, o grande advogado, cuja filha casou com um baiano rico filho de dono de cartório, lamentavelmente, para Botelho, homossexual. Uma loucura em terra de negro, que gosta de loura. Sexualmente tatibitate, o branco rico, da elite, transa com todas, mas também gosta de ‘entubar uma brachola’. As relações frouxas invadem as intimidades dos casais que se trocam na calada das noites quentes.

Impregnado de Keynes

Sexo, poder, dinheiro e falsa moralidade. Um passeio pelos anos das ditaduras e das tentações totalitárias, tanto nos países pobres como nos ricos, tendo por trás o poder das moedas que o banco de Temístocles negocia em escala global, faturando comissões que precisam ser distribuídas por agentes espalhados por todos os lados, encarregados de deixar a maior parte nos caixas dois, longe do alcance da Receita Federal.

Além disso, distribuir generosamente para filhos, netos e bisnetos, mas esconder, avarentamente, dos seus funcionários, aos quais Botelho paga salários miseráveis. Aceitou algum reajuste, de acordo com a inflação e, olhe lá, quando Guerra lhe disse que o banco estava perdendo clientes – mal tratados pelos funcionários mal pagos. Fuga para as contas correntes dos concorrentes. Só se faz algo, depois de o bolso doer.

É a alma nacional, sovina e mesquinha – como a francesa, no tempo de Balzac –, desligada politicamente, cabeça feita pela mediocridade de uma máquina de comunicação que importa o que importa para ela, não para a sociedade. Os personagens de Francis tratam a imprensa como negócio particular, pois são íntimos dos magnatas do poder midiático, que encobre o fato que é relevante.

O livro de Francis é uma aula de romance jornalístico. Sua cabeça, no plano econômico, expressa nos ensinamentos que Guerra teve com Joan Robinson, em Cambridge, impregnou-se de Keynes, considerado por Bertrand Russell o homem mais inteligente que conheceu na vida.

Esperança da humanidade

Francis fecha com Keynes, como a maioria da mídia e dos comentaristas econômicos em geral – e como demonstrou a reportagem do caderno de cultura do Valor no final de semana, em que destaca que na crise todos são keynesianos. O ser humano precisa de uma organização que lhe dê uma corda e um cabresto que de vez em quando precisam ser puxados, porque senão faz besteira, conclui Francis, assinando em baixo da pregação do lorde.

Se tivesse lido Lauro Campos – que não freqüentou o circuito Rio-São Paulo-Paris-Nova York, para ser conhecido nacional e internacionalmente – em A crise da ideologia keynesiana (Campus, 1980), um clássico desconhecido da elite pensante nacional, salvo honrosas exceções, teria Francis sido menos enfático em seu fervor keynesiano, especialmente, no momento em que o dólar vai para os ares, mostrando os limites da proposta do grande economista inglês.

Todos, neste momento, recomendam aos Estados Unidos, com o dólar bichado, o mesmo remédio que mandaram os pobres beber por intermédio do FMI. Tio Sam não larga Keynes de jeito nenhum. Não há outra solução à vista senão a keynesiana, visto que a neoliberal, bem… olha a louca corrida dos bancos para o colo estatal. Brincadeira.

O Brasil, no balanço de Carne viva, é uma criança que, como toda a criança, é uma graça, uma chatice e uma esperança da humanidade.

Capitalismo, socialismo e os mandamentos

O ceticismo paulofranciano, em seus retratos psicológicos da mulher de Guerra, Babete – boneca dourada da elite carioca dos anos de 50 e 60 do século 20 –, de Botelho; de Bea, primeira amante de Guerra – que guardou na alma uma desfeita sexual – de Beau, terrorista nas fileiras do Baader-Meinhof, amante da mal-amada Bea; de Mariazinha machona, engolindo as mulheres nos corredores do Ritz; de João, marido de Maria Clara, amante de Guerra, covardia moral ambulante de um executivo de multinacional; de Abelardo, dominado pela mulher, mostra sua pouca crença no futuro do ser humano. A generalização da extroversão atual, século 21, deixaria muito do narrado como brincadeira de criança.

Mas é nesse ceticismo, mutante em mil e uma faces, no compasso do vaivém de uma classe capitalista sem caráter, que se assenta, também, veio de esperança na alma do romancista, para que, algum dia, quem sabe, a pátria amada, idolatrada, salve, salve, tome jeito, e se livre das premonições do grande advogado Marcus Aurélio Saraiva Botelho Neto: ‘Não me venha com soluções, Biasinha. Isso é coisa de mulher. Não há soluções. A gente escapa enquanto pode…’

De uma coisa o aristocrata Francis tem certeza, deixando explícita sua ojeriza pelo comunismo ortodoxo: não dá pé coletivo demais que abafe o individualismo, que cria, pela ambição, a riqueza da qual o Estado extrai Imposto de Renda para construir a infra-estrutura necessária à abertura de novas expectativas para os investimentos – e assim por diante.

É uma das crenças dele que fica no ar. Outra é a presença trotskista em seu espírito, especialmente o Trotski de 1903, que prega todos em um mesmo balaio expressando suas livres opiniões, democraticamente, leitura fundamental na alma de Francis pela boca de Beau. Capitalismo e socialismo dosados com os dez mandamentos de Moisés.

Artificialismo virtual

O jornalista romancista, que fez a cabeça de uma geração, em seu último livro, acabado em outubro de 1996, quatro meses antes de morrer de infarto, em 5 de fevereiro de 1967, mostra-se, sobretudo, humorista sarcástico, colocando em quase todas as situações o ridículo de cada um e uma dos e das personagens, chocando-se com seus infantilismos emocionais – o emocionalismo infantil neoliberal nacional – ao lado das suas grandezas ainda inexploradas, abafadas pelos tormentos freudianos e nietzscheanos.

Persiste, como algo soporífero, em Francis, uma certa crença no futuro, sabendo que esse potencial estará sempre sendo explorado para produzir novas contradições.

Uma das grandes compensações de ler esse romance, que mexe com os sentimentos de cada um, é a tentação de ficar indagando se, no meio dessa caminhada que não tem fim, temos, realmente, no compasso de uma sociedade em que o artificialismo virtual domina sobre o real, a disposição para acionar os supostos dispositivos janguistas capazes de disparar nossa justa indignação quando for necessário na hora H, ou negamos, mesmo, a raça. Uma incógnita. Só o tempo. Grande Francis!

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Jornalista, Brasília, DF