A arrancada do processo, embora tímida, é uma vitória por si só. De 1941 até hoje, o Brasil realizou 110 conferências sociais de discussão de políticas públicas. A primeira tratou do tema Saúde. Jamais houve, no entanto, uma reunião sobre comunicação social. Anunciada pelo presidente Lula durante o Fórum Mundial de Belém, em janeiro, a Confecom passou a assombrar os donos dos meios de comunicação do Brasil, gigantes e nanicos, que têm horror a qualquer discussão sobre seus privilégios.
Na pauta da conferência está, entre outros temas, a avaliação das regras de concessão e outorga de radiodifusão. Atualmente fixadas em 15 anos para TVs e dez para rádios, as concessões costumam ser renovadas automaticamente sem qualquer critério técnico ou constitucional.
Desde o anúncio de sua criação, a conferência virou um ringue e sua organização tem exposto divisões internas dentro do governo Lula. Muitos veem no evento uma chance para discutir a democratização da mídia. Filia-se a essa turma o secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, principal articulador da reunião.
Outros, como o ministro das Comunicações, Hélio Costa, ex-repórter da Rede Globo e ele mesmo proprietário de concessões, tentam minar a iniciativa. Costa, por exemplo, patrocina um projeto de lei no Congresso para reduzir o já frágil poder de fiscalização público sobre a negociação de emissoras. Pela proposta, rádios de até 50 KW (80% do total) e TVs que não são cabeça de rede poderiam ser vendidas sem autorização prévia do Executivo e do Parlamento.
A liberdade privatizada
Apesar da retirada em massa dos representantes dos patrões da mídia, que impunham as maiores barreiras à discussão, a Confecom ainda não concebeu uma agenda mínima de debate. E mesmo os mais entusiastas não acalentam sonhos quanto aos resultados da conferência.
‘No Brasil, qualquer discussão sobre o controle da mídia acaba na acusação de que se está tramando o controle do Estado’, afirma Sérgio Murilo, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), entidade que faz parte da comissão organizadora. ‘É um setor que não admite a cultura do debate, da democracia e da transparência, e se apega ao discurso da liberdade de imprensa’, diz Murilo. ‘Aliás, aconteceu o seguinte: eles privatizaram a liberdade de expressão no Brasil’, define.
Em 13 de agosto, cientes de que não conseguiriam barrar a pauta de discussão, os principais representantes do setor empresarial de comunicação decidiram abandonar o barco da Confecom e iniciaram um boicote ao evento baseado no desmonte da comissão organizadora e na desqualificação da conferência. Dessa forma, se retiraram a Abert (de radiodifusores, capitaneados pela Rede Globo), Abranet (dos provedores de internet), ABTA (das TVs por assinatura), Aner (Associação Nacional de Editores de Revistas), Adjori (Associação dos Jornais e Revistas do Interior) e ANJ (Associação Nacional de Jornais).
Oficialmente, a justificativa para a saída dessas entidades se baseia na cada vez mais recorrente ladainha da defesa dos ‘preceitos constitucionais da livre iniciativa, da liberdade de expressão, do direito à informação e da legalidade’. Restaram, do grupo inicial de empresários convocados pelo governo, apenas a Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra), uma dissidência da Abert formada pela Bandeirantes e a RedeTV!, e a Associação Brasileira de Telecomunicações (Telebrasil), das companhias telefônicas, principais interessadas em entrar no mercado de produção de conteúdo informativo, atualmente restrito aos meios de comunicação.
O mau exemplo catarinense
Caso emblemático desse jogo de pressões é o de Santa Catarina, onde o monopólio da RBS, da família Sirotsky, foi determinante para intimidar o poder público local. Lá, nem o governador Luiz Henrique da Silveira (PMDB) nem a Assembleia Legislativa tiveram coragem de convocar a conferência estadual, como determina a portaria do Ministério das Comunicações. No estado, a RBS controla a afiliada da Rede Globo e as demais retransmissoras do interior, além de ser dona de quase todos os jornais locais.
Também em São Paulo, onde estão alguns dos mais poderosos grupos de comunicação do País, foi preciso que a Assembleia Legislativa tomasse a iniciativa de convocar a conferência. O governador José Serra (PSDB) deixou estourar o prazo estabelecido, 15 de setembro para os eventos estaduais.
Em Tocantins e Rondônia também nada foi feito, em decorrência da situação política local. No primeiro, por causa da cassação do governador Marcelo Miranda (PMDB). No segundo, porque o atual governador, Ivo Cassol (PP), está na iminência de ser cassado.
Apesar dos entraves, o ministro Costa se diz satisfeito: ‘Estamos vivenciando uma revolução digital que apresenta muitas soluções, muitas dúvidas também, e a Confecom pode ser um ambiente rico para apontar caminhos’.
‘O país é refém de um sistema atrasado, obsoleto e oligopolizado que se mostra insustentável diante das novas tecnologias’, avalia a deputada Luiza Erundina (PSB-SP). Representante da Câmara dos Deputados na comissão organizadora. Erundina presidiu, em 2007, a Subcomissão Especial de Radiodifusão da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática.
O relatório assinado por ela, aprovado na comissão, em 3 de dezembro de 2008, versava, entre outros temas, sobre a propriedade cruzada e a inconstitucionalidade no fato de parlamentares serem donos de rádios e TVs. Mas o texto, como tantos outros que tratam do assunto, virou letra morta.
Nas mãos de Sarney
Erundina critica o ostracismo em que foi jogado o Conselho de Comunicação, inoperante desde 2006 no Congresso Nacional. Idealizado pela Constituição Federal de 1988, o órgão deveria ser responsável pelas outorgas e concessões dos serviços de radiodifusão. O lobby dos donos da mídia o transformou em uma instância apenas consultiva, mesmo assim só implantada em 2002. Com os mandatos vencidos há três anos, os conselheiros esperam uma convocação, a ser feita pelo presidente do Senado Federal, José Sarney (PMDB-AP), para voltar ao trabalho.
Vai ser difícil: Sarney é dono da maior rede de comunicação do Maranhão, inclusive da TV Mirante, afiliada da Rede Globo. Como presidente da República, entre 1985 e 1990, foi responsável pela farra de concessões a políticos em troca do mandato de cinco anos.
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Repórter da CartaCapital