Marcel Proust continua mais citado do que lido, como é costume acontecer aos grandes autores no Brasil. Pelas mãos de Pedro Paulo de Sena Madureira, um editor que trouxe para o mercado editorial brasileiro muitos livros fundamentais, além de ter lançado vários autores brasileiros, está na praça um livro que pode reavivar a leitura de sua obra e iluminar o contexto em que ela foi escrita. Trata-se de Senhor Proust, de Céleste Albaret (Editora Novo Século).
A governanta e solitária confidente de Proust foi muito procurada quando ele morreu, em 1922, mas permaneceu calada por cinqüenta anos. Contudo, ao chegar aos 82 anos, Céleste, que trabalhou oito anos para o patrão, narrou suas lembranças a George Belmont. Proust a chamava carinhosamente de ‘querida Céleste’. Era a ela que contava o que se passava nos salões, nas festas, nos saraus de onde vinha. O patrão fazia isso em horários desarrumados e insólitos. O dia para ele começava às quatro da tarde. Por meio de seu relato, tomamos conhecimento, no dizer de George Belmont, ‘das verdades essenciais sobre a pessoa, o passado, as amizades, os amores, a visão de mundo, o pensamento e a obra desse enfermo genial’.
‘Sou casado com minha obra’
O ‘enfermo genial’ jamais quis casar-se. Proust morreu em 1922, aos 51 anos. Ao contrário do narrador das obras de Balzac, um cinqüentão, vivido e sociável, que conta as coisas quase como um repórter no calor dos acontecimentos, o narrador de Proust conta tudo, em profusão de detalhes, mas muito tempo depois de as coisas terem ocorrido. Seu memorial reúne o passado e o presente em sensações parecidas, de que é exemplo o sabor da madalena molhada no chá, que lhe lembra a infância. A ‘madalena’, no caso, é um bolinho de massa mole que, depois de assado, mostra a superfície inchada e com estrias. Seu nome provavelmente tem origem no nome da cozinheira que o inventou, Madeleine Paumier.
Para muitos escritores clássicos, o mais importante era a paisagem e não foram poucos os que gastaram longas páginas, mais descrevendo do que narrando, tropeço quase inevitável para romancistas. Proust, ao contrário, escrevia quase sempre à noite, de janelas fechadas, trancado num quarto. Sua paisagem era interior.
A governanta lhe pergunta: ‘Por que o senhor não se casou? O senhor teria sido um marido gentil, atencioso, delicado, e teria filhos admiravelmente bem-educados’. Ouve em resposta: ‘Querida Céleste, de uma parte você sabe muito bem que não sou inteligente’. E acrescenta: ‘O que eu poderia fazer com uma mulher desejosa de ir aos chás, aos costureiros? Ela teria se metido em tudo e me arrastado para tudo, eu não poderia escrever. Não, Céleste, eu preciso de tranqüilidade. Sou casado com minha obra; somente meus papéis importam’ (p. 209-210).
‘Dava a prova’
Há vários momentos decisivos neste livro. Muito esclarecedor é ‘o manuscrito recusado’. Como se sabe, os originais de Marcel Proust foram recusados por ninguém menos do que André Gide. Céleste diz que Proust teve certeza de que não leram seu manuscrito: ‘Céleste, jamais abriram meu pacote na Nouvelle Revue Française, posso lhe assegurar’.
Ela dá detalhes de como foi feito o pacote e desmente outros biógrafos, para os quais o pacote tinha sido feito por ela. Foi outro empregado, Nicolas Cottin, que enfeixou as mais de 700 folhas, o que é reconhecido por Proust quando se queixa de não ter sido lido: ‘Eu vi o pacote antes e depois. Por mais artista que alguém seja, desfazer a espécie de nó muito especial que Nicolas fazia, para refazê-lo exatamente no mesmo lugar, você conviria que é muito difícil e, até mesmo, simplesmente impossível’.
E mais adiante: ‘Como o manuscrito era grande e pesado, Nicolas foi comprar um papel resistente na livraria, lá em baixo. E quando penso em todo o trabalho que teve com seu pequeno barbante…’ (p.334-335).
‘Céleste, você se lembra do que eu disse no outro dia, a propósito da sra. Tal? Que é ela a amante do sr. X? Bem, hoje eu tive a prova’, diz Proust, de madrugada, voltando de um sarau. E Céleste acrescenta: ‘E ele a dava’.
Frívolo e enganador
Eram fofocas, mas dessas fofocas Proust fez uma obra de referência indispensável e um dos textos literários fundamentais. Pois o grande encanto de sua literatura é o conhecimento que nos dá da condição humana, a sagacidade com que perscruta em cada detalhe os fundos motivos desse ou daquele gesto, que revelam o âmago que afinal é o motor do comportamento individual e social de seus personagens.
Gide penitenciou-se ao ver a obra publicada e a acolhida que passou a ter. Recusou os originais sem ler, embora tenha afirmado o contrário porque lhe pareceu que não poderia sair obra séria das mãos daquele autor que lhe parecia um dândi, frívolo e enganador.
Quem foi frívolo e enganador, enganando-se a si mesmo, foi André Gide. E de resto assim caminha a humanidade – a estranheza está em que Gide também era um grande autor.
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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são Os Segredos do Baú (Peirópolis) é A Língua Nossa de Cada Dia (Novo Século); www.deonisio.com.br