Poucos dias antes do terrível diagnóstico que levaria Itamar Franco à morte, publiquei, no Jornal do Brasil, uma coluna sobre algumas declarações do ex-presidente Fernando Henrique que eu considerava equivocadas e arrogantes. E ponderei que, ao escolhê-lo seu sucessor, Itamar abandonara a boa cautela mineira. No mesmo dia, estando no Congresso, em companhia do embaixador Jerônimo Moscardo, que fora seu ministro da Cultura, fomos visitá-lo em seu gabinete. Itamar recebeu-me com um papel na mão.
“Para você ver como sou isento, estou pedindo à Mesa a transcrição do artigo em que você me critica.” Com sorriso irônico, observou: “Você diz que eu não fui mineiro.” E, com suave malícia, completou: “Mas, mesmo assim, achei interessante”. Naquele encontro, que se espichou em uma visita ao gabinete do presidente José Sarney, Itamar se queixou da gripe – e do ar condicionado das dependências do Congresso. “Isso é de matar qualquer um.”
Ele estava visivelmente satisfeito com o mandato, e empenhado em exercê-lo com a força de sua poderosa experiência política e sua invejável construção humana. Foi a última vez que o vi e que nos falamos. Não o visitei no hospital, mas fiquei informado das coisas, pelos nossos amigos comuns e por Neusa Mitterhoff, que, com sua fidelidade exemplar, o acompanhou em seus últimos dias. Sou, confesso, covarde diante dos amigos com enfermidades graves. Não o visitei, como não visitei, há 26 anos, o presidente Tancredo Neves, depois de hospitalizado. Temo, e isso pode parecer paranoia, levar vírus e bactérias ao enfermo. Só rompi esse medo ao visitar José Aparecido, que conhecia – de sempre – esse meu temor e convocou minha presença.
Instruções do presidente
Minha relação com Itamar, como também minha relação com Tancredo, se iniciou ditada por razões políticas, e só mais tarde se tornou afetuosa. Raul Belém e José Aparecido sugeriram que eu o procurasse na vice-presidência. Ponderei que, se Itamar quisesse falar comigo, bastava mandar sua secretária convocar-me. José Aparecido explicou-me que isso ele não faria: “Itamar é muito especial, e teme receber um não, principalmente se ele vier de alguém como você”. Pedi ao Lúcio Neves, seu assessor, com quem me encontrei fortuitamente no bar do restaurante Piantella, que marcasse a audiência.
Itamar recebeu-me com extrema cordialidade. As denúncias de corrupção do governo Collor eram já conhecidas. Eu lhe disse que se preparasse, porque ele iria, fatalmente, ocupar a presidência. O impeachment seria inevitável. Como ele não acreditasse na hipótese, disse-lhe que se tratava de uma saída necessária, e que, na defesa de sua própria sobrevivência, o Congresso tomaria essa iniciativa, mais dia, menos dia. A necessidade, lembrei-lhe, é uma legisladora implacável.
Passamos então a nos encontrar regularmente. Foi Itamar quem primeiro me deu notícia do famoso empréstimo uruguaio, para explicar os gastos exagerados de Collor e de seu clã. Ele me disse que o embaixador Marcos Coimbra, cunhado do presidente, lhe mostrara cópias do documento. Disse-me que Collor estava fortalecido, e não haveria o impeachment. Não resisti. Perguntei-lhe, quase o provocando, se ele fizera a primeira comunhão, porque estava demonstrando comovedora inocência.
No período que se seguiu ao licenciamento de Collor, durante o exercício interino da presidência, continuei prestando minha modesta assessoria a Itamar, de maneira informal, sobretudo na redação de seus pronunciamentos públicos e de documentos mais importantes de seu gabinete. Quando se efetivou na presidência, ele quis me localizar em sua equipe no Palácio, mas preferi ficar à distância. Não queria me envolver no dia a dia da administração nem me vincular à assessoria de imprensa, situação que nunca me atraiu. Decidimos então que eu iria para o cargo de assessor especial da presidência do Banco do Brasil, ocupada por Alcir Calliari. Era uma forma de dotar-me de estrutura de trabalho, longe do Palácio. Mas quase todos os dias ele me convocava, por intermédio de Mauro Durante, para conversar ou para almoçar com ele e o pequeno grupo que lhe era mais próximo.
Entre os inúmeros episódios fortes de seu governo que pude testemunhar – e deles participar –, há o do déficit do Ministério da Saúde, que precisava ser coberto. O INSS não tinha como fazê-lo, porque o ministro da Previdência Antonio Britto, com razão, não aceitava prejudicar os aposentados e pensionistas. Foi então que me coube levar a Itamar a sugestão do economista Dércio Garcia Munhoz de usar os lucros excessivos do Banco Central. Ora, o Banco Central não é para dar lucros, mas se os tem, eles são do Governo Federal, da nação inteira. Mauro Durante, por ordem de Itamar, fez um “aviso ministerial” a Fernando Henrique, a fim de que ele, como chefe da equipe econômica, tomasse a providência. Foi assim que Jamil Haddad pôde contar com aqueles recursos emergenciais.
Outro momento forte ocorreu quando Fernando Henrique decidiu pressionar Itamar a privatizar, em bloco, todo o sistema hidrelétrico. Itamar privatizara algumas empresas menores, entre elas uma do Espírito Santo, mas se recusava a entregar as maiores subsidiárias, espinha dorsal do sistema interligado da Eletrobrás. Houve uma reunião dos ministros envolvidos, e Fernando Henrique levou sua equipe. Itamar, pouco antes da reunião, advertiu-me de que eu deveria estar preparado para redigir uma nota da presidência aclarando que ele não privatizaria nenhuma empresa de energia antes que a nação discutisse, a fundo, o problema.
Assisti à reunião, ao lado de outros assessores do presidente. Itamar começou dizendo que era avesso à privatização, e que, se ela fosse decidida, deveria ser mediante o pagamento do valor atual dos ativos, e não de valores históricos, porque a construção desse patrimônio custara o esforço, direto e indireto, de todos os trabalhadores brasileiros. Foi então que o Sr. Pérsio Arida objetou, afirmando que era preferível vender tais ativos perdendo do que continuar a custear os déficits operacionais de muitas empresas. E citou o exemplo de Buenos Aires, em que as linhas ferroviárias metropolitanas, por serem eletrificadas, pertenciam ao setor elétrico, e por cuja privatização o governo recebera valores simbólicos. Não me lembro bem das cifras, mas era alguma coisa irrisória, como cinco dólares por locomotiva, dois dólares por vagão, um dólar por quilômetro de trilhos – e assim por diante.
Itamar ponderou que, pelo que se noticiava, os pobres já não podiam pagar as contas de energia elétrica na capital argentina, criminosamente majoradas pelas empresas privadas, e que voltavam a iluminar-se com gás e querosene. E que não queria que os subúrbios e favelas brasileiras voltassem a se alumiar com lamparinas ou velas, como nos seus tempos de menino. Um dos membros da equipe, provavelmente o próprio Arida, já que era ele que estava tratando do problema, contestou, dizendo que “só deviam ter direito aos benefícios da civilização os que pudessem pagar por eles”.
Itamar engoliu a seco a insolência e concluiu a discussão, dizendo que permanecia em sua opinião: só privatizaria empresas de energia elétrica depois de amplo debate nacional. Ele queria que todas as correntes de pensamento participassem, em igualdade de condições, das discussões. O presidente fez-me um sinal, aproximei-me, e deu-me a instrução de redigir a nota. Em uma sala ao lado, comecei a escrever, quando Fernando Henrique e Edmar Bacha se aproximaram. Delicadamente, o ministro me pediu que suavizasse os seus termos, e, também polidamente, me recusei: ia cumprir estritamente as instruções de Itamar. Como éramos amigos havia muitos anos, o ministro da Fazenda se permitiu, com bom humor, chamar-me de “dinossauro”, uma expressão que vinha do governo Collor para identificar nacionalistas intransigentes.
Democracia comprometida
O outro episódio ocorreu já com a escolha de Fernando Henrique como seu sucessor. Eu compreendia as razões de Itamar, mas não as fazia minhas. Já havia meses, contestava a política econômica do governo e publicava esses meus reparos nos jornais em que escrevia: Gazeta Mercantil, Jornal da Tarde e Diário Popular, de São Paulo. Iniciada a campanha, eu me encontrava no gabinete de Itamar, em companhia de Henrique Hargreaves, Mauro Durante, Djalma Morais, Ruth Hargreaves e José de Castro Ferreira. José de Castro, entusiasmado partidário de Fernando Henrique, cobrou-me: estivera no Comitê de Campanha e não me encontrara. Mais: soubera que eu nunca estivera ali. Respondi-lhe, tranquilamente, que não ia votar em Fernando Henrique e que, muito menos, o ajudaria. José de Castro me disse, em tom de reprimenda, que eu devia apoiar o candidato oficial, uma vez que estava no governo. Eu já pressentia essa situação, e esperava a deixa. Dirigi-me a Itamar, dizendo-lhe que aquela era uma boa oportunidade para deixar o governo e não criar constrangimentos ao presidente.
Mauro Durante, visivelmente preocupado, ponderou se não seria melhor que eu pensasse um pouco, já que, se deixasse o governo, teria de deixar o Banco do Brasil. Respondi: “É claro que estou me afastando do governo e do banco”. Disse-lhe que não havia o que pensar, porque não ia renunciar ao dever de minha consciência. Itamar então perguntou pelas minhas razões, e falei com toda a franqueza: “Itamar, eles vão entregar tudo aos estrangeiros”. O presidente contestou que não teriam coragem. Retruquei que estava certo da vitória de Fernando Henrique, porque Itamar o fizera candidato, mas que ele, Itamar, ia ver o que fariam do país.
A decisão de Itamar mostrou seu espírito altamente democrático. Disse-me que me queria a seu lado, até o último momento, e que eu continuasse a escrever meus artigos conforme minha consciência.
Talvez eu conhecesse Fernando Henrique e seu grupo de economistas melhor que o próprio Itamar. Em seu círculo restrito, Pedro Simon e eu fomos os que tentamos mostrar a ele a inconveniência da candidatura. O senador pelo Rio Grande do Sul estava certo de que o paulista trairia o presidente na primeira oportunidade. Minhas razões eram de outra natureza. Eu sabia que, mais do que trair Itamar, o governo presidido por Fernando Henrique e constituído de deslumbrados acadêmicos do eixo Rio-São Paulo ia trair os interesses permanentes do país, na aceitação dos postulados de Washington, e que a avidez de poder, herdada de Collor, ia comprometer a democracia brasileira, como acabou ocorrendo, com a emenda da reeleição. Fica o registro da dignidade e do respeito de Itamar às opiniões alheias, ao negar-me o desligamento de seu governo.
Mãos limpas
Do resto, destaco minha participação em seus movimentos posteriores, na luta contra as privatizações, sobretudo quando reuniu, em Juiz de Fora, um grupo de patriotas para o lançamento do manifesto contra a privatização da Vale, cuja redação final me coube. Infelizmente não conseguimos impedir o ato de ofensa aos mineiros. Estive presente em sua campanha para o governo de Minas, e de minha colaboração enquanto esteve no Palácio da Liberdade e em sua disputa para o Senado só tenho a me orgulhar. Logo no início de seu governo em Minas, além de enfrentar o governo federal, enfrentou os banqueiros nacionais, e os de Wall Street, ao decretar a inevitável moratória. E salvou o Brasil, ao impedir a privatização de Furnas e a entrega, já combinada, da Cemig aos norte-americanos.
Trabalhei com um homem honrado, que me homenageou com sua confiança e que foi, até o fim, um grande homem de Minas, um grande homem do Brasil.
O livro de Ivanir Yazbeck é, sem dúvida, o melhor depoimento – entre outros de boa qualidade – que conheço sobre a vida de Itamar Franco. Ele usou o recurso dos bons historiadores, o de situar o biografado em suas circunstâncias históricas. Vale repetir, em sua inteireza, a frase de Ortega y Gasset, em seu belo e clássico Meditaciones del Quijote, quase sempre reproduzida pela metade: “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella, no me salvo yo”.
Itamar Franco foi a sua circunstância, mas soube a ela se entregar, na ação política solidária, desde muito cedo, como engenheiro sanitarista, prefeito, senador, presidente da República, governador de Minas. E, assim, na linguagem emblemática do filósofo espanhol, ao procurar salvar a sua circunstância, salvou-se ele, ficando na história como um homem inflexível na defesa dos trabalhadores e da soberania brasileira, e, no exercício da política e do poder, com as mãos imaculadamente limpas. E isso, que parece tão simples, tem sido raro em nossos tempos estranhos. (Brasília, 8 de outubro de 2011
[Mauro Santayana é jornalista]