A Biblioteca Nacional acaba de dar uma bela contribuição ao exame da crise brasileira. Relançou a Revista de História. São milhares de exemplares ao alcance de professores e alunos em bibliotecas públicas e em escolas de todo o Brasil.
Pedro Corrêa do Lago, presidente da Fundação Biblioteca Nacional, diz no número de reinauguração que tal distribuição ‘se revestirá de um sentido educacional sem paralelo ao facultar leituras qualificadas, multiplicar leitores e espalhar o conhecimento criterioso sobre as raízes do Brasil’.
A publicação está também nas bancas de jornais e revistas. Dá gosto ver a bela Revista de História ostentando foto do óleo sobre tela de José Inácio Paio, que apresenta D. João VI em pose de 1824, encimado pelo título ‘A fuga do príncipe’.
Dá vontade, assim de cara, sugerir que o presidente Lula faça algo semelhante e traga o poder central de volta ao Rio de Janeiro, de onde, aliás, segundo modesta e tacanha opinião deste escritor, nunca deveria ter saído, a não ser se fosse transferido para São Paulo, Porto Alegre, Salvador ou Recife.
Não vou chegar ao cúmulo do bairrismo e sugerir que a capital do Brasil seja Florianópolis, na bela Santa Catarina, minha terra natal, cuja maior heroína, Anita Garibaldi, foi invocada pela senadora catarinense Ideli Salvatti como inspiradora de garra para enfrentar seus adversários no Congresso.
A secretária e a senadora
De repente, aliás, achei que ela precisava de fato lembrar-se de Anita Garibaldi e também de outras grandes mulheres de nossa História, pois deu a impressão de que sua inimiga não era a corrupção, era a secretária de um publicitário malandro, laranja de uns espertos que roubam o Brasil desde muito antes da fuga do príncipe.
O senador gaúcho Pedro Simon proclamou sua irritação com o aperto na mocinha que ousara desafiar o poder dos trapaceiros da pátria e criticou a senadora catarinense pela tentativa de intimidar a quem, demonstrando tanta coragem, lembrava participação decisiva de anônimas figuras do povo, que de repente, como fizeram quando do impeachment de Collor, vão ao Congresso contar o que sabem.
Mas em Brasília tudo pode acontecer! E por que Brasília? Outro dia a Danuza Leão fez uma crônica muito instigante sobre as CPIs, comentando justamente o contraste entre a modernidade das linhas arquitetônicas do Congresso e o anacronismo de usos e costumes políticos. Quem exercia modernidade naquele interrogatório não era a senadora. Era a secretária. A senadora, naquelas perguntas, ficou do lado do atraso. E a secretária tomou o caminho da modernidade, ao batalhar para que o dinheiro público fique com seu dono, o povo!
Inquisição e Santo Ofício
Diz Luciano Figueiredo, editor da Revista de História, que Heródoto ‘teria orgulho, se andasse pelas ruas do Brasil de hoje’, pois ‘a História ocupou as calçadas, exposta alegremente nas capas de revistas, em bancas de jornal país afora’, acrescentando que ‘leitores podem escolher diferentes abordagens, variedade de assuntos e de linguagens’.
Tem razão. A revista, além da matéria de capa sobre a vinda da Família Real para o Brasil em 1807, de autoria de Lilia Mortiz Schwarcz, traz ainda oportunas reflexões de José Murilo de Carvalho sobre a influência positivista de nossos primeiros republicanos e dois outros ensaios que abordam magistralmente as relações perigosas entre literatura e sociedade.
Um é de Luciano Trigo sobre Blaise Cendrars, intelectual suíço que foi referência importante para o Modernismo; outro é de Alberto Dines, que faz um perfil do Antônio José da Silva, torturado, executado no garrote vil e queimado em praça pública, em Lisboa, no dia 19 de outubro de 1739, pela Inquisição e Santo Ofício combinados, como era de praxe, pois Igreja e Estado atuavam em conluio quando se tratava de punir os discordantes.
Mesmos erros
Antônio José da Silva, o Judeu, nasceu no Rio de Janeiro, em 1705. Dines não deixou passar em branco os 300 anos de seu nascimento. Ironia das ironias: uma das peças do dramaturgo estava em cartaz na mesma Lisboa que o queimava a algumas quadras do cadafalso. Ele foi condenado à morte não por seus escritos, mas por supostas práticas judaicas. ‘Ninguém pegou no processo’, diz Dines: ‘Estava impresso e ninguém olhou’.
Bem, não seja demais pedir aos parlamentares que leiam os atuais processos inquisitoriais, em curso nas CPIs, com o fim de não condenar inocentes. E que levem para a cabeceira a Revista de História. É sempre bom ler um pouco, quando mais não seja para evitar que confundam o personagem Policarpo Quaresma, o herói nacionalista de Affonso Henriques de Lima Barreto, com o jornalista Policarpo Júnior, como fizeram alguns parlamentares, logo, porém, corrigidos por outros, semana passada. Errar pode, errar é humano. Perseverar no erro é que é diabólico.
O Brasil persevera nos mesmos erros há vários séculos! O principal motivo é que os brasileiros infelizmente desconhecem sua História, onde quase tudo se repete. Por isso, a Revista de História chega em boa hora. E ainda traz, entre outros quitutes, uma entrevista deliciosa com o poeta e diplomata Alberto da Costa e Silva, para quem ‘não há cultura que não se ampare no sagrado, quer seja ele religioso ou não’.