Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A crítica como ofício

Nas páginas dos jornais desde 1946, Wilson Martins, aos 84 anos, ainda mantém com vigor sua audácia. Não por menos, é considerado por muitos o último grande crítico literário brasileiro. Com uma longa trajetória refletindo, exaltando e polemizando a literatura – poucos têm a coragem de admitir que não acham Nelson Rodrigues ‘isso tudo’ – e dezenas de livros publicados, Martins, a partir da próxima edição do Idéias, volta a atuar no JB, onde trabalhou por quase duas décadas. No retorno, pretende derrubar as idéias comuns. Ou como diz: ‘separar o trigo do joio e não o joio do trigo’. Rotulado como conservador e extremamente severo, o crítico rebate as generalizações:

– Só sou conservador na medida em que a literatura é conservadora. Não se pode revolucionar a literatura todos os dias – admite.

Como ressalta a seguir, não há mais movimentos que busquem uma única reformulação. E o fato de surgirem gerações (como a 90 e a 00), para Martins, não significa muito. Seria a busca de popularidade, de propor uma novidade que não existe. É o início de muitas polêmicas.

***

Como o senhor analisa a atual crítica literária publicada na imprensa? Ainda há, de fato, crítica literária?

Wilson Martins – Podemos começar por essa idéia negativa, mas real, de que a crítica literária como se praticava nos século 19 e 20 desapareceu dos jornais. Em princípio por falta de espaço. A crítica literária propriamente dita exige um grande desenvolvimento. Não basta dizer se o livro é bom ou mau, é preciso dizer o porquê. É nessa argumentação que o crítico necessita de um espaço maior. Mas de qualquer maneira se nos detivermos apenas ao final do 19 e início do 20, a crítica foi representada, digamos, por José Verissimo. Foi um crítico que se chamava de rodapé – uma invenção dos franceses: colocaram o artigo no rodapé da página, obtendo paginação uniforme e regular, sem quebrar o texto.

E no século 20?

W.M – O grande nome no início do século foi Tristão de Athaíde (Alceu Amoroso Lima), que começou fazendo crítica de rodapé no O Jornal. Nos anos 40, apareceu um grande nome: o Álvaro Lins – crítico titular, como se chamava naquele tempo, do Correio da Manhã. Foi um homem que exerceu uma grande autoridade: seus artigos ou lançaram escritores novos, como foi o caso de Guimarães Rosa, que só apareceu devido a um artigo do Álvaro Lins. Ou então destruir uns pobres coitados que apareciam com uma literatura inferior. Ainda nos meados de 40, surgiu o Antonio Candido em São Paulo. Mas por pouco tempo foi crítico militante.

De lá para cá, o espaço da crítica diminuiu na imprensa e a maioria dos suplementos apresenta-se como um compêndio de resenhas. Não se constrói nem se destrói mais autores. Vive-se um período de marasmo. Concorda?

W.M – Nesse trajeto todo, o espaço da crítica vem diminuindo e acompanhei essa espécie de depressão crítica. O crítico, costumo dizer, precisa separar o trigo do joio e não o joio do trigo. Essa no fundo é a função do crítico. Contra a idéia comum, o crítico honesto, sério, tem uma missão mais construtiva de texto. Quanto a reverter essa situação, sinceramente, tenho minhas dúvidas porque entramos numa nova civilização intelectual, na civilização da imagem. Os jornais estão hoje preferindo muito mais a imagem sobre o texto, quando a crítica realmente exige a predominância do texto sobre a imagem. Tanto que caiu na moda ilustrar o artigo. Essa civilização da imagem, imposta antes de mais nada pela televisão, informática, está aí para ficar. Por isso a crítica diminuiu de tamanho e foi substituída pelas resenhas, muitas superficiais, em tom agradável. Há também a idéia de dar sempre o lançamento. Os jornais recebem releases das editoras e algumas resenhas reproduzem o que vem pronto.

Desiludido pelo pragmatismo do mercado editorial, alguma vez pensou em largar a crítica?

W.M – Não. Aí é uma questão ou de temperamento ou de talento. Não sei fazer outra coisa. Ou faço isso ou desapareço. Como dizia o humorista, sou pago para fazer aquilo de que gosto. Como tenho um temperamento, no fundo, otimista e enérgico, jamais sofri desalento. E encaro a crítica não como uma obra sublime de criação. Mas como um ofício do dia-a-dia, de uma tarimba literária. Leio o que aparece, escrevo sobre ele. Não há nada de teológico ou metafísico nesse trabalho.

Por que as universidades privilegiam os ensaístas e não investem na formação de críticos?

W.M – Isso é perceptível no meio universitário. A crítica tem um compromisso com a atualidade, com o que vai aparecendo. Já o ensaio literário é muito mais extenso e tem interesse pelos autores do passado. Os ensaístas universitários gostam muito de escrever sobre Machado de Assis, José de Alencar. É o caminho da facilidade, o ensaísta está percorrendo um terreno seguro. As idéias já estão prontas, os pensamentos críticos já se estabilizaram. De forma que no fundo uma boa parte desses ensaios ou são minuciosos demais a respeito de pontos pouco fundamentais ou apenas repetem aquilo que já se sabe. No caso de Guimarães Rosa, há uma biblioteca sobre ele. Mas só uns quatro ou cinco livros realmente valem a pena.

A escassez de críticos militantes pode prejudicar a cultura brasileira?

W.M – Acho que sim, mas talvez seja suspeito para dizê-lo. O que está acontecendo é o seguinte: o leitor não é mais provocado para refletir. O crítico literário escrevia contra uma obra ou contra um autor e movimentava um grupo de leitores contrários ao crítico ou ao autor. Isso estimulava a reflexão crítica. A resenha é puramente informativa, não provoca pensamento mais profundo. A minha idéia, ao contrário, é esta: a primeira função do crítico é desafiar o leitor a pensar como ele ou contra ele.

O senhor defende a idéia de gerações literárias, tal como estão sendo difundidas as chamadas 90 e 00?

W.M – Acho isso como uma espécie de superficialidade do espírito. A idéia de geração tem um certo sentido em análise literária, mas no que se diz a longo prazo. Uma geração literária só se modifica num prazo que, segundo os autores, varia entre 15, 20, 30 anos. Aí há diferenças profundas. De ano para ano, apenas pela diferença da data de nascimento dos autores, não significa nada. Qual a diferença de qualidade ou de natureza entre a literatura de 1960 e 1965? Não há. É um pouco da busca do que chamaria de popularidade: a idéia de propor uma novidade que não existe.

O senhor identifica traços comuns na literatura brasileira contemporânea?

W.M – Na literatura em geral não há características comuns. Hoje estamos vivendo aquela famosa situação de que é cada um por si e Deus contra todos. A idéia de que cada escritor quer renovar alguma coisa sozinho. Não há idéia de movimento, nem de grupos homogêneos como era clássico em tempos antigos. Tirando movimentos superficiais que não duram mais do que 3, 4 anos, realmente a idéia grupal desapareceu. Há muito mais individualismo na criação literária do que anteriormente.

Há um gênero literário em evidência no momento?

W.M – Ainda de maneira meio vaga, o gênero que está predominando é o romance. A poesia tem uma imensa produção, mas de uma subpoesia que não vai ficar na história da literatura. O que tem aparecido são bons romancistas. E diria, antes, bons romances. São obras que também continuam isoladas, de forma que essa idéia de movimento desapareceu.

O que o senhor mais observa na produção nacional: a compreensão do país ou estilo do autor?

W.M – Vamos colocar na ótica do romance. O romance que está correndo atualmente tem as temáticas mais variadas. Há romances de cunho histórico, outros mais enigmáticos. Desse ponto de vista, não se pode dizer que há uma ligação direta entre literatura e realidade. Mas fica claro que a realidade de forma sutil está agindo na literatura. Não é a literatura, é o autor que está imerso num universo, no Brasil. E, indiretamente, a cabeça do autor filtra a realidade que resulta na obra. Ainda há uma preocupação, mesmo que vaga, com temas ligados à história do Brasil, às camadas populares. Há um sentimento de realidade, mesmo que não sejam realistas no sentido direto da palavra.

Seria a permanência de um regionalismo, mas de caráter universal?

W.M – É preciso notar que o período de 30 foi excepcional nele mesmo. Coincidiu com o aparecimento de uma ideologia política esquerdista e o surgimento de numerosos escritores chamados do nordeste que traziam aquela temática local. Essa espécie de unificação da temática, do estilo e da visão literária foi excepcional naquele tempo. Agora é preciso notar que o chamado romance nordestino foi escrito no Rio de Janeiro. Autores de Pernambuco, da Bahia, do Ceará, mas que, na verdade, escreviam no Rio de Janeiro. Eles estavam refletindo uma ideologia urbana, a ideologia política daquele momento. A literatura como documento social, mas sempre de um ponto de vista urbano. Os nordestinos, digamos comuns, não viam o mundo desta maneira. Quem viam eram os escritores educados literariamente e com leituras internacionais, que viam essa realidade de fora. Essa é que é a verdade. Seja Jorge Amado, Graciliano Ramos, no fundo, são homens de cidade, viveram seus temas locais, mas transpondo-os para um plano literário que já estava acima da realidade material de todo o dia.