Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A defesa irracional da razão

Têm aparecido na imprensa frequentemente – sobretudo em decorrência dos atentados terroristas perpetrados em Nova York e em Washington oito setembros atrás – artigos, livros e documentários sobre o pretenso conflito entre religião e ciência. Recentemente, os leitores brasileiros foram brindados com a publicação do livro A Morte da Fé, de Sam Harris. O autor faz PhD em neurociência: seu projeto é estudar as bases neurológicas da crença religiosa. Portanto, ele pretende falar em nome da ciência e, antes, da razão. O título não deixa dúvidas sobre a formulação principal do livro: todas modalidades religiosas estão fadadas ao fim, principalmente devido à superioridade da razão e da ciência sobre a desrazão, a fé e o fanatismo intrínsecos à religião.

Harris apresenta uma série de argumentos que pretendem sustentar sua concepção sobre o que ele considera ser os caracteres intrínsecos da crença religiosa. Nesse sentido, para me ater apenas a um exemplo, ele observa o fato de vários líderes extremistas de organização muçulmana terem estudado nas mais conceituadas universidades ocidentais (sobretudo, inglesas e norte-americanas). Isso, no seu entender, sugere que um aumento no grau de estudos e de educação entre a população muçulmana em geral seria algo ruim e indesejável.

A concepção oitocentista

Nietzsche trata de uma concepção de ciência, vigente no século 19, marcada pela autoglorificação e presunção do homem científico (entendido no sentido mais amplo de conhecimento, abrangendo tanto as chamadas ‘ciências da natureza’ quanto as ‘ciências do espírito’): ‘e a ciência, tendo-se afastado exitosamente da teologia, […], pretende agora, com toda a altivez e incompreensão, ditar leis à filosofia e fazer papel de senhor. Minha memória […] está repleta de ingenuidades arrogantes que ouvi de jovens pesquisadores e velhos médicos […]. É em especial a visão desses filósofos-de-mixórdia que se denominam ‘filósofos da realidade’ ou ‘positivistas’ que pode suscitar perigosa desconfiança em um jovem e ambicioso homem de ciência. […] Homens que, outrora, se impuseram algo mais sem terem direito a esse ‘mais’ e à responsabilidade que ele comporta’ (Para Além de Bem e Mal, # 204). Alhures, Nietzsche lembra que, para os antigos, a ciência era tida como apenas um meio, um instrumento modesto, de modo que aquela presunção dos homens de ciência a algo mais é uma traço recente, novo e imaturo. Trata-se de uma concepção de ciência marcada pela arrogância e incompreensão.

Enfim, a ciência não fornece critério para avaliar a religião, como querem todos os que, tal qual Harris, retomam, muitos deles provavelmente de maneira inadvertida, a concepção de ciência própria do século 19. É desnecessário ressaltar que essa concepção positivista de ciência é um caso particular da concepção irracionalista de razão.

Uma perspectiva fraca

Ao contrário do que Sam Harris escreve, não é o fato (líderes de organização islâmica de caracteres terroristas terem cursado algumas das mais prestigiadas universidades ocidentais) que sugere a ilação que ele faz (de modo geral, o aumento no nível educacional dos muçulmanos aumentaria concomitantemente a intolerância e o fanatismo da população muçulmana). É apenas uma interpretação feita de uma perspectiva fraca, eivada de uma concepção autoritária referente à razão e pautada por uma concepção positivista concernente à ciência, que leva àquela generalização feita por ele.

O pressuposto da ilação é que a religião muçulmana seria intrinsecamente fanática e intolerante. Por isso, Harris sugere (é ele, e não o fato de líderes do Hamas terem estudado em universidades de renome, que sugere) que seria ruim a população muçulmana em geral ter acesso a estudos. O autor, pretensamente em nome da razão, se posiciona contra a tolerância (e teria sido elogiado por isso pela publicação britânica The Observer, segundo o que foi sugerido pelo editor brasileiro de A Morte da Fé na contracapa do livro. Mas convém ressaltar que seria preciso ler o artigo de The Observer para saber se a passagem citada pelo editor brasileiro é efetivamente, ou não, um elogio; a maneira como a citação foi feita é que faz parecer tratar-se de um elogio. The Observer costuma ser mais ponderado do que aquela contracapa sugere. Assim, cabe lembrar: no ano passado, na página na internet da editora brasileira de As Benevolentes, era possível encontrar uma citação de Mario Vargas Llosa a propósito do livro de Jonathan Littell apresentada como se fosse um elogio; entretanto, Vargas Llosa detestou As Benevolentes, como deixa claro a leitura do artigo de onde foi retirada a passagem apresentada como um suposto elogio).

A formulação de Harris sobre os muçulmanos em geral é condicionada por outra generalização sua referente a todas pessoas religiosas: qualquer modalidade de religião é marcada pela incompreensão, pelo obscurantismo e pelo fanatismo – essa, no seu entender, seria a essência da religião. Ambas as generalizações não se deixam submeter ao que efetivamente marca a razão e o caráter científico de qualquer enunciado: poder ser discutido segundo os critérios de razoabilidade. Assim, o livro de Harris desconsidera e suprime sumariamente as inúmeras evidências sobre os muçulmanos que não aprovam as práticas terroristas feitas pretensamente em nome do islamismo e sobre as pessoas religiosas, de diferentes modalidades religiosas, que são tolerantes, compreensivas e não-fanáticas. Para autores como ele, basta considerar como irrelevante, e assim desconsiderar, todas as fortes evidências efetivas que não se adequam à sua concepção – um procedimento vulgar que não se confunde com procedimento científico nem racional. Essa concepção sobre razão, ciência e religião simplesmente não é razoável. No que se refere à religião, o neurocientista Sam Harris é mais nervoso (de intolerante) do que científico (de razoável e racional).

Veiculação e recepção

O texto de Sam Harris talvez tenha uma retórica marcante (e esse, pelo visto, poderia ser o principal motivo pelo qual o livro tem sido elogiado). Por outro lado, o livro certamente é uma demonstração cabal de que o irracionalismo (tão bem representado e defendido por A Morte da Fé) não se prende a regras de consistência, podendo ser combinado com qualquer espécie de formulação, até mesmo com a pretensa defesa da razão. A apologia que ele pretende fazer da razão tem caracteres eminentemente irracionalistas – e autoritários, a ponto de ser ostensivamente intolerante (e o que ele sugere sobre a população muçulmana é apenas um exemplo; a intolerância no livro é, em mais de um sentido, generalizada). O elogio positivista que ele faz da ciência é arcaico – embora esteja, e esse é o problema, em uso, como mostram a veiculação e a recepção dessas ideias. Essa ideia de um pretenso conflito entre religião e ciência reativa uma noção sustentada em concepções que cresceram no século 19. Esse pretenso conflito só existe na visão tomada de uma perspectiva fraca; essa noção resulta de uma formulação de cunho irracionalista e feições autoritárias. Nem razão e ciência nem religião são o que é pensado sobre elas nessa perspectiva fraca.

Desta maneira, cabe ponderar, não é só devido à sua retórica que o livro recebe elogios: é pelos traços irracionalistas, autoritários e intolerantes constitutivos de sua concepção sobre ciência e religião que ele tem sido bem recebido. Infelizmente, a concepção positivista de ciência é arcaica, mas ainda não está ultrapassada. A apologia irracionalista da razão certamente está longe de ser superada. O problema deve estar também (mas não somente) nas universidades cursadas por ‘cientistas’ que, como Harris, se esmeram na apologia irracionalista da razão e da ciência, atacando todas as pessoas religiosas.

Se por um lado não se pode subestimar a capacidade que essas concepções têm de serem ainda hoje veiculadas e recebidas (o que se mede pela presença dessa espécie de discursos ali e acolá na imprensa), por outro lado não se deve exagerar essa sua capacidade: a maioria das pessoas tem bom senso para não aprovar essas concepções – necessitando, talvez, de mais e melhores argumentações para enfrentar esses discursos irrracionalistas.

Então, o que é dito por Harris sobre os muçulmanos em geral é imponderado: é o que os fundamentalistas islâmicos gostariam que os muçulmanos fossem. É irônico (mas desprovido de qualquer humor) que ao tratar de maneira generalizada e maciça todos os muçulmanos, o discurso de Harris se aproxima muito ao dos extremistas e fundamentalistas que ele inicialmente ataca. Afinal, convém lembrar, naqueles centros universitários onde estudam os líderes extremistas do fundamentalismo islâmico é onde também aprendem os ‘cientistas’ apologistas irracionais da razão: os fundamentalistas islâmicos que cursaram universidades de renome têm menos em comum com os muçulmanos em geral do que com os ‘cientistas’ apologistas irracionais da razão. O ataque de Harris ao extremismo é extremista, seu ataque à incompreensão e à irracionalidade é intolerante e imponderado e seu ataque à ignorância… Nenhum apologista irracional da razão e da ciência vai negar que esse tipo de discurso, tal qual formulado por Harris, seja intolerante e não deveria negar que é irracional.

Uma perspectiva forte e ponderada

Autores que, à maneira de Harris, se enquadram nessa linhagem de formulações irracionalistas e autoritárias referentes à razão, à ciência e à religião supõem que o fim de todas as formas religiosas é necessário para uma sociedade plena (o título do livro de Harris é claramente revelador sobre as concepções que o sustentam). Leitores do OI já puderam ler, mais de uma vez, alegações no sentido de que países com os melhores padrões de vida são países sem religião ou, pelo menos, com baixíssimos índices de pessoas religiosas. Os pressupostos dessas alegações: a religião seria a causa e a intolerância seria seu efeito; os níveis baixos de religiosidade seriam a causa e os ótimos padrões de vida seriam os efeitos.

No entanto, esse nexo causal alegado entre índice de religiosidade e padrão de vida (e entre religião e intolerância) resulta de uma inversão fraca, irracionalista e nada razoável, do que seria relação de causa e efeito. Então, o que Harris faz não é uma análise ponderada e pautada pelos princípios de razoabilidade: é uma apologia irracionalista partindo de princípios de caracteres dogmáticos. A formulação de Harris situa-se aquém de religião e ciência: o título escolhido para iniciar este artigo quer dizer que o livro de Harris não trata nem de religião nem de ciência tais como elas se fazem, mas tão somente trata de sua própria concepção irracionalista e visão fraca sobre seus pretensos objetos de discurso.

Em contrapartida, cabe e é perfeitamente plausível, adotando uma perspectiva forte e ponderada, reinverter essa relação de causa e efeito: nessa perspectiva melhor, a intolerância pode ser tida como condição de possibilidade e as formações religiosas são consequências possíveis da intolerância (mas inexistem nexos de causalidade necessária, de maneira que também há modalidades religiosas que não são vinculadas com a intolerância, como o bom senso nos faz perceber, do mesmo modo que também há casos de intolerância sem vínculos diretos com a religião, como as próprias formulações ostensivamente intolerantes e irracionalistas de autores como Harris mostram inequivocamente). Similarmente, pode-se entender os padrões de vida elevados como condições de possibilidade e o status religioso naqueles países como uma consequência possível (mas não necessária).

Argumento de autoridade

Questionados sobre a razoabilidade dos nexos causais que servem de parâmetros para suas formulações, os apologistas irracionais da razão rejeitam, com arrogância, a possibilidade de discutir sobre as relações de causalidade estipuladas em sua concepção. ‘Estando eu do lado da razão, por que eu deveria discutir os aspectos constitutivos, como as relações de causa e efeito, da minha concepção de razão?’, é o que eles, de uma forma ou de outra sempre prepotente, respondem [!], posando como autoridade máxima definitiva, assim rechaçando a efetiva discussão e não admitindo a livre crítica.

É desnecessário ressaltar que deveria ser porquê o traço principal que caracteriza a racionalidade é justamente aceitar a livre crítica concernente à razoabilidade dos fundamentos das afirmações que se fazem. Um enunciado racional ou científico deve ser expresso de tal forma que ele possa ser comprovado, isto é, abertamente discutido: argumento de autoridade não é procedimento racional nem é argumento ponderado. Mais ainda: a racionalidade é diametralmente oposta a essas modernas distopias platônicas de admiráveis novos mundos em que o crescimento da razão deva ser controlado ou planejado por alguma ‘razão’ superior. A racionalidade é modestamente razoável, não prepotente e autocomplacente.

Assim, não se trata de um mero confronto de idéias: trata-se, antes e mais importante, de um efetivo contraste completo entre, de um lado, uma concepção essencialista (por isso mesmo, irracionalista) de consequências intolerantes e, de outro lado, uma perspectiva nominalista.

Quando a imprensa se omite

Então, convém pensar religião, ciência etc., de maneira nominalista, levando em consideração, por exemplo, as importantes diferenças que distinguem as diversas modalidades religiosas, ao invés de desprezar essas diferenças, anulando-as e ignorando-as em favor de uma concepção essencialista (devemos falar em formações religiosas e em formulações científicas, evitando pensar em ‘a ciência’, ‘a religião’). É preciso distinguir, nas diferentes formações e formulações, entre aquelas em que há e aquelas em que não há formas de intolerância.

Muitos círculos que hoje em dia se pensam progressistas (como os apologistas ‘da ciência’ que atacam ‘a religião’) se mostram irracionalistas e intolerantes: nada de novo nesse front. Por sua vez, parcela da imprensa reforça ostensivamente as apologias irracionais da razão, enquanto outra parte, ainda, o faz de maneira menos direta ao não tratar adequadamente esses aspectos importantes, deixando de assinalar como essa apologia irracional da ciência – com seu correlato ataque, ao mesmo tempo intolerante e indiscriminado, a todas formações religiosas – joga contra a sociedade aberta.

Finalmente: o livro de Harris nos leva a pensar sobre a importância (e, talvez, a necessidade) de um trabalho, em neurociência, que estude as bases neurológicas das crenças contidas nas apologias irracionais da razão.

Em tempo: os dinossauros poderão zurrar. Já ouvimos esse barulho e conhecemos as formas como soam os ornejos que eles conseguem fazer, de modo que é previsível que um deles, eventualmente, tente acusar este texto de fazer a Harris ataques ad hominem. Deveria ser desnecessário dizer: evidentemente, não há, acima, nenhuma ofensa pessoal ao neurocientista (e é inútil contar o número de vezes que aparecem seu nome e o título de seu livro).

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Bacharel em História e doutor em Filosofia, Campinas, SP