A evolução da televisão no Brasil está intimamente ligada à evolução da identidade brasileira nas últimas cinco décadas. A TV como elemento aglutinador, como agenda política, como a ficção aparentemente palpável das novelas e, mais recentemente, dos reality shows, é um fenômeno que, dado o seu poder de influência sobre o comportamento social, ainda é carente de bibliografia, seja ela historiográfica ou crítica. Uma história da TV Cultura, de Jorge da Cunha Lima, consegue realizar a proeza de ter ambas as qualidades. Paralela a uma (necessária) linha do tempo, se reúnem neste lançamento alguns dos melhores textos já escritos sobre o tão exigido – ainda que as cobranças muitas vezes fossem disparadas a esmo – papel da TV no Brasil, com particular atenção, naturalmente, ao da TV pública.
A TV Cultura de São Paulo, particularmente pelo caráter inovador nas áreas da programação infantil e do jornalismo, é certamente a emissora estatal que melhor soube se projetar por todo o território nacional com um conteúdo que, como frisa o prefácio de Eugênio Bucci, soube ser brilhante quando independente. Para dar a dimensão e refletir sobre alguns preconceitos embutidos na idéia da TV pública brasileira, Bucci, membro do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta (entidade de direito privado com autonomia para gerir as emissoras de Rádio Cultura de São Paulo AM e FM e TV Cultura), faz uma tomografia completa – um tanto ‘cruel’ segundo o autor do livro – do que a TV Cultura espelhou e refletiu enquanto uma entidade ‘pública’, assim entre aspas por estar a palavra comumente desequilibrada sobre a fissura que divide os interesses políticos (e privados) dos interesses da sociedade.
Audiência e programação
O texto de Bucci, ‘cruel’ como um dedo na ferida, não poderia prestar melhor serviço ao livro que pretende não apenas documentar programas e uma evolução tecnológica, como particularmente inferir a atribuição dada à TV Cultura dentro do cenário político em que ela nasceu e cresceu. Afinal de contas, uma emissora que surge com o pressuposto de servir como porta-voz da população no olho do furacão de uma ditadura militar e, a despeito de tudo, consegue criar uma programação independente, e que, anos mais tarde, em um regime democrático, demonstra ceder aos imperativos do mercado, tem pelo menos uma interessante história a contar.
Como o livro bem pontua, a Cultura nasceu quase um ano depois da primeira transmissão de TV pública no Brasil, realizada pela TV Universitária do Recife em novembro de 1968. Em junho de 69, o governador de São Paulo, Roberto de Abreu Sodré, descrito aqui como um visionário da TV pública brasileira, inaugura as transmissões do canal 2 paulista. A partir daí, Jorge da Cunha Lima divide os capítulos a princípio a partir da gestão do governo do Estado e, depois, segundo as diferentes administrações da própria Fundação Padre Anchieta, do qual ele foi presidente por duas vezes consecutivas, entre 1995 e 2004.
Existe uma preocupação muito grande do livro com aquilo que sempre esteve na proposta jornalística da emissora: contexto. As notícias nacionais e internacionais introduzem sempre algum grande acontecimento da TV Cultura, proposta que posiciona a instituição não apenas como um órgão que observou a história passar, como por vários momentos foi parte dessa narrativa nacional. O episódio da tortura e morte de Vladimir Herzog, o Vlado, ganha algumas páginas à parte, assim como a criação de programas que são exibidos até hoje, caso do Roda viva, Castelo Rá-Tim-Bum e, mais recentemente, Cocoricó. Aliás, o foco nos projetos jornalísticos e infantis, pratas da casa, se torna fundamental para entender as diferenças entre aquilo que, como explica o autor deste título, deveria apontar o norte da emissora: ‘O produto da TV comercial é a audiência (que se vende), enquanto o produto da TV pública é a programação (que é gratuita).’ Entendemos aqui que, por várias ocasiões, não foi tão fácil (ou politicamente oportuno) fazer essa divisão.
Perspectiva multilateral de decisões
A edição primorosa da Imprensa Oficial dá lastro para o intenso trabalho de pesquisa histórica dividida com Renato Ganhito, Rosana Miziara e Arnaldo Ferreira Marques Jr., pesquisa essa que ganha força com as aspas de nomes importantes tais como os dos jornalistas Laurindo Leal Filho, Roberto Muylaert, Paulo Markun (atual presidente da Fundação Padre Anchieta) e de figuras que marcaram a trajetória da emissora, como Cao Hamburguer, diretor do Castelo Rá-Tim-Bum, do maestro Júlio Medaglia e do acadêmico José Mindlin.
As opções editoriais de Jorge da Cunha Lima foram cuidadosamente pensadas para se passar uma idéia de isenção (até onde é possível) na avaliação das linhas a serem seguidas pelo canal, tendo em vista o fato de a administração do próprio Cunha Lima ter sido por muitos bombardeada. Algumas dessas críticas são publicadas nesta edição e, embora a voz do narrador termine sempre dando o ponto final dos argumentos, a escolha em utilizar o maior número possível de depoimentos de quem participou direta e indiretamente da construção da TV Cultura, dá uma perspectiva multilateral sobre algumas decisões – ainda que algumas vezes não as justifique.