Os meios de comunicação passaram semanas centrando sua atenção na Tunísia no Egito. As insurreições populares que se desenvolveram após o sacrifício do jovem tunisiano Mohamed Bouazizi terminaram em poucos dias com a ditadura de Ben Ali e, na sequência, como peças enfileiradas de dominó, com a ‘presidência’ de Hosni Mubarack. Abriram-se processos democráticos em ambos os países. Manifestantes também saem às ruas árabes na Líbia, Iêmen, Argélia, Jordânia, Bahrein e Omã.
Em todos esse processos, as novas tecnologias jogam um papel chave primordial – em especial, as redes sociais, que permitem superar a censura. Ante esse desfecho histórico, Manuel Castells, catedrático sociólogo e diretor do Instituto Interdisciplinar sobre Internet, na Universitat Oberta de Catalunya, aprofunda a reflexão sob o que se passa e oferece chaves para entender um movimento cidadão que tira o máximo proveito dos novos canais de comunicação ao seu alcance.
A entrevista foi concedida a Jordi Rovira, publicada no portal da Universitad Oberta de Catalunya e reproduzida pelo sítio Outras Palavras, 01-03-2011. A tradução é de Cauê Ameni.
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Os movimentos sociais espontâneos na Tunísia e Egito pegaram desprevenidos os analistas políticos. Como sociólogo e estudioso da Comunicação, você foi surpreendido pela ação da sociedade-rede destes países, em sua mobilização?
Manuel Castells – Na verdade, não. No meu livro Comunicação e Poder dediquei muitas páginas para explicar, a partir de uma base empírica, como a transformação das tecnologias de comunicação cria novas possibilidades para a auto-organização e a auto-mobilização da sociedade, superando as barreiras da censura e repressão impostas pelo Estado. Claro que não depende apenas da tecnologia. A internet é uma condição necessária, mas não suficiente. As raízes da rebelião estão na exploração, opressão e humilhação. Entretanto, a possibilidade de rebelar-se sem ser esmagado de imediato dependeu da densidade e rapidez da mobilização e isto relaciona se com a capacidade criada pelas tecnologias do que chamei de ‘auto-comunicação de massas’.
Poderíamos considerar estas insurreições populares um novo ponto de inflexão na história e evolução da internet? Ou teríamos que analisá-las como consequência lógica, ainda de grande envergadura, da implantação da rede no mundo?
M.C. – As insurreições populares no mundo árabe são um ponto de inflexão na história social e política da humanidade. E talvez a mais importante das muitas transformações que a internet induziu e facilitou, em todos os âmbitos da vida, sociedade, economia e cultura. Estamos apenas começando, porque o movimento se acelera, embora a internet seja uma tecnologia antiga, implantada pela primeira vez em 1969.
Uma predisposição ideológica
A juventude egípcia desempenhou um papel chave nas insurreições populares graças ao uso das novas tecnologias. No entanto, segundo os cálculos de Issandr El Amrani, analista político independente no Cairo, apenas uma pequena parte da população egípcia dispõe de acesso à internet. Pensa que esta situação pode criar uma brecha – usando suas próprias palavras, entre ‘conectados’ e ‘desconectados’ – ainda maior que a que se dá nos países desenvolvidos?
M.C. – O dado já está antiquado. De acordo com uma pesquisa recente (2010), da empresa informação Ovum, cerca de 40% dos egípcios maiores de 16 anos estão conectados à internet – se levarmos em conta não apenas as ligações domiciliares, mas também os cibercafés e os centros de estudo. Entre os jovens urbanos, as taxas chegam a 70%. Além disso, segundo dados recentes, 80% da população adulta urbana esta conectada por celulares. E de qualquer maneira, estamos falando de um país com 80 milhões de habitantes. Ainda que apenas um quarto deles estivessem conectados, já poderia haver milhões de pessoas nas ruas. Nem todo o Egito se manifestou, mas um número de cidadãos suficiente para que se sentissem unidos e pudessem derrotar o ditador.
A história da brecha digital em termos de acesso é velha, falsa hoje em dia e rabugenta. Parte de uma predisposição ideológica de certos intelectuais interessados em minimizar a importância da internet. Há 2 bilhões de internautas no planeta, bilhões de usuários de celulares. Os pobres também têm telefones móveis e existem ainda outras formas de acessar a internet. A verdadeira diferença se dá na banda e na qualidade de conexão, não no acesso em si, que está se difundindo com rapidez maior que qualquer outra tecnologia na história.
Cohn Bendit era símbolo, não um líder
Até que ponto o poder dispõe de ferramentas necessárias para sufocar as insurreições promovidas desde a rede?
M.C. – Não as tem. No Egito, inclusive, tentaram desconectar toda a rede e não conseguiram. Houve mil formas, incluindo conexões fixas de telefone a número no exterior, que transformavam automaticamente as mensagens em tweets e fax no país. E o custo econômico e funcional da desconexão da internet é tão alto que tiveram que restaurá-la rapidamente.
Hoje em dia, um apagão da rede é como um elétrico. Ben Ali não caiu tão rápido, houve um mês de manifestações e massacres. O Irã não pode se desconectar a rede: os manifestantes estiveram sempre comunicando-se e expondo suas ações em vídeos no YouTube. A diferença é que ali, politicamente, o regime teve força para reprimir selvagemente sem que interviesse o exército. Porém as sementes da rebelião estão plantadas e os jovens iranianos, 70% da população, estão agora maciçamente contra o regime. É questão de tempo.
A mobilização popular através dos meios digitais criou heróis da cibernética no Egito – como Weal Ghonim, o jovem executivo do Google. Que papel podem desempenhar esses novos lideres no futuro de seus países?
M.C. – O importante das ‘wikirrevoluções’ (as que se auto-geram e se auto-organizam) é que as lideranças não contam, são puros símbolos. Símbolos que não mandam nada, pois ninguém os obedeceria e eles tampouco tentariam impor-se. Pode ser que, uma vez institucionalizada, a revolução coopte se algumas destas pessoas como símbolos de mudanças – ainda que eu duvide muito que Ghonim queira ser político. Cohn Bendit era também um símbolo, não um líder. Foi estudante e amigo meu em 68. Ele era um autêntico anarquista: rechaçava as decisões dos líderes e utilizava seu carisma (foi o primeiro a ser reprimido) para ajudar a mobilização espontânea. Walesa foi diferente, um vaticanista do aparato sindical. Por isso, tornou-se político rapidamente. Cohn Bendit tardou muito mais e ainda assim é, fundamentalmente um verde, que mantém valores de respeito às origens dos movimentos sociais.
72% dos chineses apoiam o governo
A aliança entre meios de comunicação convencional e novas tecnologias é o caminho a seguir no futuro para enfrentar com êxito os grandes desafios?
M.C. – Os grande meios de comunicação não têm escolha. Ou se aliam com a internet e com o jornalismo cidadão, ou irão se marginalizando e tornando-se economicamente insustentáveis. Mas hoje, essa aliança ainda é decisiva para a mudança social. Sem Al Jazira não teria havido revolução na Tunísia.
Em um artigo intitulado ‘Comunicação e Revolução’, você recordou que em 5 de fevereiro a China havia proibido a palavra Egito na internet. Acredita que existem condições para que possa ocorrer, no gigante asiático, um movimento popular parecido com o que está percorrendo o mundo árabe?
M.C. – Não, porque 72% dos chineses apoiam seu governo. A classe média urbana, sobretudo os jovens, estão muito ocupados enriquecendo-se. Os verdadeiros problemas do campesinato e operários – ou seja, os verdadeiros problemas sociais da China – encontram se muito longe. O governo resguarda-se demais porque a censura antagoniza muita gente que não está realmente contra o regime. Na China, a democracia não é, hoje, um problema para a maioria das pessoas, diferente do que ocorria na Tunísia e no Egito.
Os EUA consideram prioritária a ciberguerra
Esse novo tipo de comunicação, globalizada, atomizada e que se nutre da colaboração de milhões de usuários, pode chegar a transformar nossa maneira de entender a comunicação interpessoal? Ou é apenas uma ferramenta potente a mais à nossa disposição?
M.C. – Já transformou. Ninguém que está inserido diariamente nas rede sociais (este é o caso de 700 dos 1,2 milhões de usuários) segue sendo a mesma pessoa. Mas não é um mundo esotérico: há uma inter-relação online/off-line. Como esta comunicação mudou, e muda a cada dia, é uma questão que se deve responder por meio de investigação acadêmica, não através de especialistas em fofocas. E por isso empreendemos o Projeto Internet Catalunha na UOC.
Podemos dizer que os ciber-ataques serão a guerra do futuro?
M.C. – Na realidade, esta guerra já faz parte do presente. Os Estados Unidos consideram prioritária a ciberguerra. Destinaram a este tema um orçamento dez vezes maior que todos os demais países juntos. Na Espanha, as Forças Armadas também estão se equipando rapidamente na mesma direção. A internet é o espaço do poder e da felicidade, da paz e da guerra. É o espaço social do nosso mundo, um lugar híbrido, construído na interface entre a experiência direta e a mediada pela comunicação e, sobretudo, pela comunicação na internet.
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Da Redação da IHU