Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A era do jornalismo barato

Ler José Inacio Werneck no velho Jornal do Brasil era um religioso e prazeroso hábito para toda uma geração, primeiro de torcedores de futebol, depois de praticantes de corrida – saudável mania que ele ajudou a consolidar em nosso país. No Rio, fim dos anos 1980, em qualquer lugar, da praia ao bar, ouviam-se conversas seriíssimas sobre os melhores ‘sapatos de corrida’ (leitor de José Inacio não dizia ‘tênis’, jamais!) para o Cooper ou a caminhada. A Maratona Jornal do Brasil, que ele inventou e o público consagrou, virou acontecimento aguardado ansiosamente.

Mas os interesses marqueteiros, dos quais é crítico irado, afastaram José Inácio primeiro do JB, depois do país – aí, com a ajuda de Collor de Mello e seu confisco das contas bancárias do cidadão. Aos 67 anos, 42 anos de profissão, os últimos 14 morando nos Estados Unidos, José Inacio encontrou ambiente e tempo para escrever seu primeiro livro, lançado em novembro: Com esperança no coração – Os imigrantes brasileiros nos Estados Unidos, pela Editora Augurium.

Você ouviu falar? Pois é, não ouviu, porque nossa imprensa fez um silêncio tumular a respeito. Como se sabe, a imprensa escolhe a dedo os livros que comenta, e provavelmente andava ocupada com a mais recente peça marqueteira de louvor a Roberto Marinho.

Além do mais, o livro de José Inacio não trata apenas dos imigrantes brasileiros – da primeira à última página, fala da imprensa daqui e de lá, e de jornalistas brasileiros, verdadeiros ou falsos, daqui e de lá. E lá ‘há jornais que, ao ver, você percebe logo que são feitos por agropecuaristas ou agentes de viagem’, diz. A mídia em geral vive situação de indigência: ‘Os proprietários ganham fortunas, enquanto os jornais estão submetidos a uma ‘walmartização’ [referência à cadeia americana de lojas Wal-Mart, de mercadorias a baixo preço], produzidos no barato e nas coxas’.

Por conta desse boicote, seus amigos vêm fazendo trabalho de formiguinha para divulgar Com esperança no coração, que pode ser comprado no Brasil em livrarias e no site da Augurium (www.auguriumeditora.com.br); nos Estados Unidos, no site da Luso-Brazilian Books (www.lusobraz.com).

Os fãs podem encontrar José Inacio também nas transmissões para o Brasil da ESPN internacional: com sua voz inconfundível, agrega sempre um algo mais aos comentários, freqüentemente na contramão da opinião geral. Semanas atrás, por exemplo, em conversa sobre ‘fenômenos’ do futebol com o narrador Luís Carlos Largo, disse (transcrição de memória, por isso sem aspas) mais ou menos o seguinte:

Eu hesito em usar essa palavra, fenômeno. Para mim, apenas um jogador mereceu ser chamado de fenômeno, pelo físico totalmente impróprio para o esporte: Garrincha. Pelé nasceu para jogar futebol, como Ronaldo, Ronaldinho e outros. Mas o físico de Garrincha era inadequado à prática do futebol, era quase impossível. E por isso ele foi um fenômeno.

Isso não significa que ele veja pouco talento em nossos craques atuais. Na transmissão de domingo 19/12 do jogo Inter 1 x 0 Brescia, José Inacio disse que se Ronaldinho Gaúcho não levasse o título de melhor jogador de 2004, da Fifa, seria grande injustiça.

Ele está também na Gazeta Esportiva.Net (www.gazetaesportiva.com.br/), onde fala de tudo, como sempre lhe permitiram a cultura e o preparo. Na coluna do dia 14/12 ele escreveu:

‘É época de Natal, o que significa que milhares de papais noéis vão suar em bicas dentro de suas roupas vermelhas, com botas e gorros, pelo Brasil afora, de acordo com as imagens consagradas nos países nórdicos, onde os bons velhinhos supostamente descem pelas chaminés para deixar presentes às crianças bem comportadas.

Como os cientistas afirmam que o aquecimento do globo é irreversível, daqui a alguns anos nem nos países nórdicos os papais noéis terão neve suficiente para justificar seus trenós, renas e outras parafernálias típicas do inverno. Sumirão primeiro os papais noéis ou as crianças bem comportadas? Deu agora nas folhas internacionais que, em uma cidade da Escócia, Papai Noel foi perseguido por uma turba de crianças que lhe atiravam pedras e impropérios.’

Na volta da folga de sábado 18/12, que aproveitou para passear (enquanto é possível) no trenzinho de Papai Noel com dois de seus quatro netos (o quinto está a caminho), José Inacio respondeu por e-mail às perguntas do Observatório.

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Você mora em Bristol, Flórida? Há umas ‘600’ cidades chamadas Bristol nos Estados Unidos…

José Inacio Werneck – Moro em Bristol, Connecticut, homenagem à Bristol original, na Inglaterra. Há pelo menos mais 15 cidades chamadas Bristol nos Estados Unidos, inclusive uma aqui pertinho, em Rhode Island [há 25 cidades chamadas Bristol em 23 estados americanos, informa o site britânico Bristol – Places in the USA (members.lycos.co.uk/brisray/brisusa/brisusa1.htm), de um morador da Bristol original].

Há quantos anos está nos EUA? Você deixou o Rio pensando em ficar de vez ou era uma temporada transitória? Foi um convite direto da ESPN?

J. I. W. – Estou nos Estados Unidos desde setembro de 1990. Fui um náufrago do desgoverno Collor e outros pequenos acidentes de percurso. Vim com a firme determinação de afundar ou flutuar. Flutuei. Não vim com um convite direto da ESPN. Vim numa aventura. A ESPN foi um rio que passou em minha vida e me deixei levar.

Trabalhava em algum jornal quando resolveu ir embora? Você já passava dos 50 anos… Levou a família? Insisto nisso porque parece uma grande maluquice largar seu país, onde você tinha um nome consagrado, e ‘fazer a América’…

J. I. W. – Eu trabalhava na TVE, no Jornal dos Sports e no Dia quando saí do Brasil. Obrigado pelo ‘nome consagrado’. Admito que era razoavelmente conhecido, mas ganhava uma miséria. A revista Viva [publicação pioneira no país, do Jornal do Brasil, dedicada à corrida de rua e aos esportes afins] fechara, fui expurgado da Maratona do Jornal do Brasil [a primeira do país, que ele idealizou] porque alguns marqueteiros de lá achavam que entendiam mais do assunto do que eu. O resultado é que a maratona acabou… Eu abandonara meu emprego de advogado na Companhia Siderúrgica Nacional justamente por acreditar na Viva. O canto da sereia me enganara. Achei-me pobre mas na classe média, classificação talvez só possível em nossa terra. Collor era presidente, as catástrofes se acumulavam e compreendi que estava na hora de partir.

Aos 53 anos, fui talvez o emigrante mais velho do mundo. Trouxe toda a família. Não tive que lavar pratos, mas candidatei-me ao staff doméstico de Thomas Paine, descendente de um dos grandes vultos da república americana. Talvez hoje eu estivesse lá atendendo telefones e dizendo, em voz circunspecta, ‘Paine’s residence’, mas surgiu o convite da ESPN, que iniciava suas transmissões para o Brasil. No ínterim, dirigira também uma Clínica de Futebol, o Brazil Soccer Camp, e fundara um jornal, O Brado Retumbante, que ainda estava no vermelho. Nunca saberei se retumbaria ou não, pois fui tratar de outra vida.

Com esperança no coração é seu primeiro livro?

J. I. W. – É meu primeiro livro. Escrevi-o, fui para a Europa, ao cabo de três semanas retornei, não tivera ainda uma resposta da Record e da Geração, candidatas a publicá-lo, resolvi formar uma sociedade com o cientista político Bolívar Lamounier, da Augurium. No dia seguinte, recebi e-mails da Record e da Geração, querendo publicar o livro. Mas respondi como Júlio César, no Rubicão: alea jacta est. Já estou trabalhando no meu segundo livro, que será de ficção. Tenho a sinopse, o início, o fim, o nome e até a capa. Falta o miolo.

A que você atribui o silêncio da imprensa brasileira sobre o livro? Não há uma só resenha a respeito.

J. I. W. – Suspeito que esse silêncio na imprensa ocorra porque falo dela praticamente da primeira à última página e quase nunca – ou nunca – em termos elogiosos. Mas a degradação da imprensa é um fenômeno mundial: ela se divide em órgãos que se tornam instrumentos de propaganda do poder estabelecido e naqueles que se acovardam diante do poder.

Ainda agora nos Estados Unidos temos a escandalosa aliança de Rupert Murdoch – que acaba de comprar um apartamento na Quinta Avenida por 44 milhões de dólares, cash – com o governo George W. Bush. Na Itália, a mídia (Berlusconi) é o próprio poder (também Berlusconi). É interessante notar ainda que ele, proprietário do time de futebol Mílan, roubou o grito de guerra da torcida em Copas do Mundo – Forza Italia – transformando-o no nome de seu partido político.

Os proprietários ganham fortunas, enquanto os jornais são submetidos a uma ‘walmartização’; são produzidos no barato e nas coxas, a língua portuguesa vai para o raio-que-a-parta, os fatos são relegados ao ostracismo.

A propósito disso, você comenta o campeonato italiano e o espanhol pela TV, dos EUA. Esta é uma prática cada vez mais comum. Ela reduz a qualidade dos comentários? Ou isso depende do comentarista?

J. I. W. – Os comentários off-tube a que você se refere são outro mal da mídia mundial. Veja o que eu disse acima sobre a ‘walmartização’ da imprensa. É muito mais conveniente para as emissoras colocarem narradores e comentaristas numa cabina, a dezenas, centenas, milhares de quilômetros da ação. É verdade que eles têm imagem e têm informações do local. Mas, nas análises táticas e nas controvérsias sobre impedimento, você perde a visão ampla e necessária do campo.

Para fazer um bom trabalho, o repórter esportivo precisa ser exposto à ação, no momento e no local em que ela ocorre. Algo que também se aplica aos demais repórteres. O próprio termo reportar significa trazer, portar ao público alguma coisa que você viu porque estava lá. O bom repórter usa seus próprios olhos, não os dos outros ou os das câmeras.

Você acompanha a mídia esportiva no Brasil? A americana é pior ou melhor? Há comparação?

J. I. W. – A imprensa esportiva americana é muito mais diversificada do que a brasileira, excessivamente presa ao futebol. Na televisão, é de uma riqueza impressionante, com canais especializados, alguns focalizando um determinado esporte, outros se debruçando sobre determinadas épocas de determinados esportes. Mas mostra pouco espírito crítico. É mais para o oba-oba. Ou comercialismo, se quiserem. Há uma abrangente corrupção no esporte americano (drogas, interesses corporativos nos esportes universitários) que é em geral ignorada.

E o clima da redação de um jornal brasileiro? Você sente falta disso? No velho JB você trabalhou com grandes nomes, de João Saldanha e Sandro Moreyra a Armando Nogueira e Oldemário Touguinhó. Sente saudade daquele tempo?

J. I. W. – Sinto falta do clima de redação, mas preciso explicar. O clima de redação era ótimo no velho Jornal do Brasil, embora fizesse um calor de derreter os untos. Na Avenida Brasil, com ar-condicionado, não havia clima de redação. Era muito grande, estéril, insosso. Na volta do Jornal do Brasil para a Rio Branco tampouco alcançou-se um clima de redação. Estive lá e vi todo mundo amontoado, espremido. E você tem razão em outra coisa: antigamente havia personalidades nas redações, de repente entrava um Salim Simão [jornalista], estentórico. Hoje não há.

A editoria de Esportes do velho JB era quase toda botafoguense, mas isso não se refletia nas matérias. Hoje, nas redações do Rio, o pessoal do esporte é flamenguista e passa isso à cobertura. Você vê prejuízo para o leitor-torcedor de outros times?

J. I. W. – A presença de muitos botafoguenses na antiga redação de esportes do JB era pitoresca, mas inofensiva, pois havia um forte espírito de jornalismo. O que interessava era o fato. Agora, dizem-me que os jornais no Brasil procuram agradar as torcidas mais numerosas. É o marketing, são os marqueteiros. O que fazer? Sugiro o degredo.

Você se adaptou à TV americana com facilidade?

J. I. W. – Não tive qualquer dificuldade em me adaptar à TV americana, já que fazia TV no Brasil. Mas não gosto de trabalhar off-tube e nossos assinantes reclamam porque não podem ver a nossa cara. O espectador sempre quer ver a cara de quem fala.

No JB, ao qual você voltou em 2000 e de onde você foi afastado recentemente [ver remissão abaixo], numa atitude patética da direção do jornal, você era lido por leitores de todo tipo. Na Gazeta Esportiva (www.gazetaesportiva.com.br/), sua coluna é lida por torcedores. Esse publico traz tanta satisfação quanto o outro?

J. I. W. – Não há dúvida de que o leitor do Jornal do Brasil é mais eclético do que o da Gazeta Esportiva, órgão especializado. Mesmo assim, freqüentemente abordo assuntos como psicologia, política e economia – e tenho resposta. A direção do jornal parece não se incomodar e eu não saberia ficar preso exclusivamente ao beabá do futebol. Sempre que um leitor responde, enviando um e-mail, mesmo que seja para discordar, você tem satisfação.

Voltando ao livro, os jornalistas brasileiros que moram nos EUA mas não são correspondentes vivem bem? Vivem de jornalismo?

J. I. W. – Não estou muito seguro de que os correspondentes de jornais brasileiros aqui vivam bem. Acho que o último que o conseguiu foi o Paulo Francis. Quanto aos que são jornalistas aqui mesmo, para publicações brasileiras nos Estados Unidos, varia muito. Há jornais consolidados, como o The Brasilians, mas o Lucas Mendes me disse que paga muito mal a quem lá trabalha. É sem dúvida vasto o número de jornais brasileiros nos Estados Unidos, creio que em conseqüência do fato de que aqui é muito fácil abrir uma empresa, qualquer empresa. Como eu conto no livro, há quem venha para cá, abra em 24 horas uma empresa de limpeza doméstica e fique rico: você não precisa ser imigrante legal para abrir uma empresa nos Estados Unidos. Alguns jornais devem dar lucro ou pelo menos prestígio aos donos.

Na sua região há jornal em português, com brasileiros na redação? Se sim, são bons jornais ou pasquins para venda de anúncios?

J. I. W. – Há jornais em português, com brasileiros na redação, no país todo. Alguns, como o Gazeta Brazilian News, na Flórida, têm jornalistas de verdade, que já o eram no Brasil, como o Carlos Borges. O Eliakim Araújo, também jornalista de verdade, tem em Miami um site chamado Direto da Redação (www.diretodaredacao.com/), com a particularidade de não aceitar anúncios. Você teria que perguntar a ele qual é seu esquema financeiro, pois eu não sei, mas o site é bastante jornalístico. O Lucas Mendes, é claro, tem a The Brazilian Network [produtora independente com os sócios Lúcia Guimarães e Caio Blinder] e faz o Manhattan Connection [GNT]. Ele foi demitido da Globo por causa do Collor, como eu conto no livro. O Edilberto Luciano Mendes, editor-chefe do The Brasilians, já era jornalista no Brasil. Mas há jornais que, ao ver, você percebe logo que são feitos por agropecuaristas ou agentes de viagem.

Por que um livro sobre brasileiros nos EUA? Trata da colônia já antiga, adaptada, tanto que Teresa Kerry até a mencionou num discurso, ou dessa nova leva de Governador Valadares?

J. I. W. – A colônia brasileira nos Estados Unidos não é muito antiga. Ou melhor, há uma parte antiga, pequena, e uma parte moderna, grande. A parte moderna veio para cá nos últimos 25 anos, ou por aí, quando nossa economia parou de crescer ou passou a crescer em ritmo insuficiente para um país em desenvolvimento. Um país em desenvolvimento, com boa taxa de natalidade, não pode crescer apenas 4% ao ano. Tem que crescer bem mais, caso contrário não desconta o terreno em relação aos desenvolvidos. A Teresa Kerry, com o sotaque lusitano que a caracteriza, fez uma brevíssima referência aos brasileiros, na Convenção do Partido Democrata, para ilustrar seus dotes de poliglota: falou também em francês, italiano e espanhol, além de inglês. A referência abrangia a colônia portuguesa, bem mais antiga, e a brasileira. Há diversas coisas especiais no grupo que eu retrato em meu livro, inclusive o auspicioso indicador financeiro de que envia ao Brasil mais de 5 bilhões de dólares ao ano.

Esse grupo é fechado, como os brasileiros no Japão, ou se misturou facilmente?

J. I. W. – Os brasileiros mais cultos não são fechados em colônias. Mas há, como eu digo no livro, os que vieram para cá sem nunca na verdade terem saído de Pirassununga. Há os que se mesclam com os hispânicos e se tornam peritos em portunhol, sem aprenderem uma palavra de inglês.

Na semana passada mais de 50 brasileiros foram deportados pelos EUA, mandados de volta. A esperança continua? Ainda vale a pena largar o Brasil e ir tentar a vida na ‘terra dos livres e lar dos bravos’?

J. I. W. – Há brasileiros deportados o tempo todo, como mexicanos, dominicanos e outros menos votados. A esperança continua. Ninguém sai de sua terra sem esperança de algo melhor lá fora. A pergunta é: por que chegamos ao ponto em que o brasileiro tem que emigrar, tem que ter esperança em coisa melhor lá fora? Com a resposta, os diversos governos brasileiros. Éramos um país de imigração, que atraía italianos, portugueses, espanhóis, alemães, japoneses, poloneses, libaneses, hoje exportamos gente. Já fomos o país de maior crescimento econômico no mundo. Hoje crescemos pouco, tanto que os brasileiros vão embora. Para a maioria, acho que vale a pena tentar a vida nos Estados Unidos, mas há uns que fracassam.