A proximidade do centenário de nascimento de Nelson Rodrigues (1912-1980), em 23 de agosto do ano que vem, dá margem para revolver o inconsciente de sua obra dramática. Um exemplo de acuidade na reflexão sobre as 17 peças que esse pernambucano-fluminense autodidata escreveu em quatro décadas, a partir de 1941, são as 427 páginas do número 29 da revista Folhetim, que aparenta o formato de um livro. A publicação organizada pelo grupo teatro do Pequeno Gesto, do Rio, é totalmente dedicada ao artista. Mais da metade da edição especial compõe um dossiê de críticas garimpadas em jornais de época e ainda inéditas em outro suporte, exceto a recepção de Décio de Almeida Prado (1917-2000) ao clássico modernista Vestido de Noiva, de 1943, em temporada paulistana no ano seguinte.
“Causa mesmo espanto ver repentinamente surgir do nada que é o nosso teatro, quase por um milagre de geração espontânea, um autor com tanta audácia, que procura, logo nas primeiras tentativas teatrais, dominar virtuosisticamente o meio de expressão artística que escolheu”, anotou Almeida Prado. A série de documentos cobre seis décadas, desde a primeira montagem de A Mulher sem Pecado, de 1942, por Rodolfo Mayer, até A Falecida Vapt-Vupt, de 2009, por Antunes Filho.
As 98 críticas versam sobre 20 espetáculos, incluídas as adaptações. Envolve a percepção de 32 profissionais identificados em 15 periódicos dos acervos do Cedoc/Funarte, da Biblioteca Nacional e da Biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Segundo a tradutora e dramaturgista Fátima Saadi, editora da Folhetim, as análises permitem acompanhar as polêmicas e a progressiva aceitação da obra de Nelson. A prospecção feita entre março e novembro de 2010 resulta útil também aos estudiosos de outras áreas como sociologia, história, antropologia e comunicação.
“O imaginário poético e o fascínio sexual”
“Imaginei que, a partir daquele conjunto de críticas, seria possível estudar a relação entre a imprensa e o espaço público de discussão do teatro (até o Jornal dos Sports mantinha uma coluna de crítica teatral nos anos 1950). Esse espaço começa a minguar com o golpe militar e mais decididamente dos anos de 1980 em diante”, afirma Fátima. Transparecem o viés psicológico, primeiro prisma de aproximação das peças da fase inicial de Nelson, e o predomínio estético na abordagem pioneira de Almeida Prado, continuada por Sábato Magaldi e Yan Michalski (1932-1990).
O jornalista Frederico Guilherme Chateaubriand, de alcunha Freddy, escreve no Diário da Noite carioca, em 1950, que Doroteia é “extremamente poética”, indignado com “quem confunde duas realidades que nada têm de comum”: a poética e a propriamente dita. A crítica e pesquisadora Mariangela Alves de Lima argumenta sobre A Falecida Vapt-Vupt em O Estado de S. Paulo, em 2008, que Antunes privilegia “o imaginário poético contido nessa peça e deixa em fervura baixa, como lava, o ódio e o fascínio sexual”. Entre os demais nomes focados estão Alberto Guzik, Jefferson Del Rios, José Arrabal, Luiza Barreto Leite, Macksen Luiz, Miroel Silveira, Paschoal Carlos Magno, Paulo Francis e Sérgio Augusto.
Resistência filosófica e artística
Diretor do Centro de Pesquisa Teatral e do Grupo Macunaíma, Antunes discorre em longa entrevista sobre suas montagens rodriguianas desde 1965, com A Falecida, junto a alunos da Escola de Arte Dramática (EAD), passando pela paradigmática montagem de O Eterno Retorno, de 1981, reunião de Os Sete Gatinhos, Beijo no Asfalto e Toda Nudez Será Castigada – estruturadas sob o conceito do inconsciente coletivo do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961).
A tradução, a criação e a recepção crítica do dramaturgo na França são discutidas em artigos como o do diretor Alain Ollivier, morto no ano passado, e em entrevista com Ângela Leite Lopes, tradutora e professora da UFRJ. Outros ensaístas brasileiros dão lastro à diversidade de enfoques nesse painel que não se quer exaustivo, como observa Fátima, mas amplo no que se tem pensado sobre Nelson Rodrigues nos últimos anos.
Lançada na quarta-feira no Teatro Glaucio Gil, em Copacabana, Folhetim custa R$ 35,00 e pode ser adquirida por reembolso postal (folhetim@pequenogesto.com.br). No dia 23, o Pequeno Gesto entrou em cartaz com seu espetáculo mais recente, Antígona Creonte, que será apresentado até segunda-feira. Trata-se de uma adaptação livre da tragédia de Sófocles pelo diretor Antonio Guedes, com quem Fátima compartilha duas décadas de grupo e 13 anos de revista, dois atos de resistência filosófica e artística.
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[Valmir Santos, do Valor Econômico]