Há uma contradição cristalina entre os conceitos e a teoria dominantes de globalização, ou de uma ‘aldeia global’, e sua prática diária na grande mídia no que se refere à cobertura dos temas da América Latina. Pode-se dizer que a grande mídia corporativa brasileira vive de costas para os nossos vizinhos. Quando uma notícia sobre a AL sai na grande mídia, é quase sempre diminuta e desvinculada de um contexto mais abrangente. Outro fato paralelo é a redução do espaço, na mídia brasileira, para o noticiário internacional. Daí que a AL está reduzida ao mínimo de notícias. E apresentada, quase sempre, de forma a reforçar alguns estereótipos.
Estas são as palavras do jornalista Mário Augusto Jakobskind, na introdução a seu novo livro, América que não está na mídia, da Editora Adia (Associação para o Desenvolvimento da Imprensa Alternativa). A obra, a nona escrita pelo jornalista carioca, é composta de 31 artigos de análise sobre a situação da maioria dos países latino-americanos. Alguns artigos são inéditos. Outros foram publicados no exterior, basicamente no semanário uruguaio Brecha.
No capítulo quarto, Jakobskind escreve sobre o Brasil e o jornalismo brasileiro. Sempre com arguta visão crítica, em estilo acessível, que não esconde uma profunda indignação com a situação de exclusão a que são submetidos os povos de nossa América, Jakobskind vai desmontando, aos poucos, a farsa do ‘pensamento único’ que invade as redações brasileiras.
Democracia formal
Este livro é tão mais importante para seus leitores quando se sabe que, este ano, haverá nada menos que oito eleições presidenciais até dezembro de 2006: Costa Rica (fevereiro), Peru (abril), Colômbia (maio), México (julho), Equador (outubro), Brasil (outubro), Nicarágua (novembro) e Venezuela (dezembro). Esta importância pode ser comparada a um fato único: nos últimos cinco anos, nada menos que 11 presidentes latino-americanos foram derrubados pelo povo nas ruas. Todos estavam comprometidos com o neoliberalismo, modelo esgotado e que não serve, ou nunca serviu, para nossa região.
Mas a importância das eleições presidenciais nestes oito países da AL não deve obscurecer outro fato importante: há uma impossibilidade de se promoverem transformações mais radicais pela via institucional, isso se considerarmos a debilidade dos governos de esquerda já eleitos.
Segundo o sociólogo argentino Atílio Borón, em entrevista ao jornal Brasil de Fato (12 de janeiro de 2005), ‘há um mandato eleitoral proveniente das bases, que pedem uma política de transformação, e governos que estão sumamente cautelosos. Há um excessivo temor da influência dos Estados Unidos nos países, e de aprofundamento das políticas do Consenso de Washington’.
Em paralelo a essa timidez dos governos de esquerda já eleitos, percebe-se um crescimento do nível de consciência popular. Só que aí surge um fato preocupante: a democracia na América Latina é formal. Apenas formal. E onde sobrevivem enormes desigualdades sociais. Segundo a expressão de Borón, ‘são democracias onde cada vez mais temos menos cidadãos’. Ou seja, a convivência entre democracia e capitalismo está esgotada. Há ainda um ritual democrático: as pessoas vão às urnas, mas não elegem uma alternativa que atenda seus anseios. Todas as candidaturas parecem iguais.
Promessas sem ruptura
Todo este cenário acaba se refletindo na mídia de países como o Brasil. Diz Jakobskind:
A mídia conservadora, que posa de imparcial, adota como prática a filosofia do ‘pensamento único’. É preciso furar o bloqueio, exigindo-se, pelo menos, um tratamento midiático em pé de igualdade. Sem isso, não há democracia na verdadeira acepção da palavra. O movimento social é tratado pela grande mídia conservadora de forma preconceituosa. E com o claro objetivo de levar a opinião pública a encarar o movimento social como se fossem todos eles uns marginais.
É curioso comparar, rapidamente, esta nova obra de Jakobskind com outra de sua autoria, mas de 1985: América Latina: Histórias de dominação e libertação, da Editora Papirus, de São Paulo. Há 21 anos, a nossa região começava a libertar-se das ditaduras militares. Dizia, então, Jakobskind:
Muitas cartas continuarão sendo jogadas no continente latino-americano para a manutenção do esquema de domínio, com estratégias diferentes, talvez, das de hoje em dia. Não seria de se estranhar que os computadores do Pentágono já tenham feito suas previsões nesse sentido. E até tenham encontrado uma resposta que , sofisticadamente, esteja sendo colocada em prática, buscando a continuidade da dominação.
No livro de 1985, Jakobskind mostrava como políticos daqueles anos se elegiam com promessas de barrar o capital financeiro especulativo. Empossados, entregavam as economias de seus países à supervisão do FMI. Hoje, 21 anos depois, a resposta à continuidade da dominação vem do Consenso de Washington. E os políticos progressistas, para se eleger, continuam prometendo rupturas que não se realizam na prática. Qualquer semelhança não será coincidência.
Dramas e tragédias
O novo livro de Jakobskind busca formar e informar. Procura formar os jornalistas para que não se limitem a transferir para suas mídias as informações recebidas das agências de notícias internacionais, emanadas diretamente do governo dos EUA ou de associações empresariais voltadas para o lucro, dentro da norma conhecida: notícia não passa de mercadoria. Daí vem uma profunda desinformação, reduzindo o mundo às falas dos grupos econômicos e políticos dominantes, e sua tecnoarrogância, com um profundo desprezo pelos povos e pelas maiorias subjugadas, hipnotizadas e narcotizadas pelas doses diárias de imagens e programas imbecilizantes.
Na apresentação de América que não está na mídia, a professora Virginia Fontes, do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense, afirma que ‘não é mais uma imprensa, mas um arsenal de propaganda, que, há muito tempo, deixou para trás a busca da informação’. O livro mostra também como a mídia serve como mecanismo de controle da sociedade. Esse controle se expressa pelo reforço diário, constante e obsessivo junto à sociedade dos conceitos básicos do capitalismo neoliberal: a concorrência, o consumismo, o lucro, a ‘sociedade do mercado’, a propriedade privada, a exclusão.
O enfoque dos artigos que compõem a obra é sempre buscar apresentar o contexto dos fatos relativos à América Latina. E isso não se encontra muito facilmente nas coberturas e análises da nossa imprensa diária. Por tudo isso, América que não está na mídia é leitura obrigatória. E não só para jornalistas. Mas para todos que se preocupam e vivem, diariamente, os dramas e tragédias de nossa América.
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Jornalista, integrante da Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul