Nos anos 70, a Bloch Editores publicou uma antologia de grandes momentos de nosso jornalismo intitulada As Reportagens que Abalaram o Brasil. O responsável pela seleção escolheu textos marcantes, como as entrevistas do assassino de Euclydes da Cunha, general Dilermando de Assis, a Francisco de Assis Barbosa; de José Américo de Almeida a Carlos Lacerda, um libelo publicado pelo Correio da Manhã que driblou a censura feroz do Estado Novo de Getúlio Vargas; e deste a Samuel Wainer, então repórter de O Jornal, de Assis Chateaubriand, que serviu de pretexto para a volta do ex-ditador à Presidência pelas urnas. Se essa coletânea tivesse de ser publicada hoje, teria de incluir o resumo que a revista piauí fez do livro do repórter Raimundo Rodrigues Pereira a respeito das Operações Chacal e Satiagraha, da Polícia Federal.
A obra, editada pela Editora Manifesto, de Belo Horizonte, traça um retrato perfeito do ‘teatro de marketing e bravatas’, expressão usada em editorial publicado pelo Estado de S. Paulo em 15 de abril de 2005, depois da prisão de Daniel Dantas, discípulo de Mário Henrique Simonsen e bem-sucedido administrador do fundo de investimentos Opportunity e da então presidente da Brasil Telecom, Carla Cico, subordinada dele, pela Polícia Federal. Eles eram acusados de terem usado detetives particulares da empresa americana Kroll para espionar diretores de uma sócia hostil, a Telecom Italia, e autoridades do primeiro escalão do primeiro governo Lula.
Farsa foi o pretexto
Intitulado O Escândalo Daniel Dantas – Duas Investigações, o livro dá lições de jornalismo investigativo honesto e esclarecedor. Em 315 páginas, reduz a pó argumentos falaciosos e canhestros usados pelo delegado federal Protógenes Queiroz, com o apoio do procurador Rodrigo de Grandis e do juiz Fausto De Sanctis, para levar o financista duas vezes à prisão. E desmascara a participação de arapongas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), agentes da Polícia Federal (PF), dirigentes dos fundos de pensão das estatais e jornalistas amigos numa farsa armada para expelir os gestores do Opportunity da Brasil Telecom, da Telemig e da Amazônia Celular, em benefício de seus parceiros estrangeiros, o citado grupo italiano e a operadora canadense TIW.
O mais relevante no levantamento exaustivo do repórter é que, ao contrário do que se imaginou até esse relato vir a lume, não houve perseguição ideológica (que poderia ter sido causada pela assessoria de um dos pais do Plano Real, Pérsio Arida, a Dantas) movida pelos novos donos do poder ao ‘amigo de tucanos’, mas mero conflito de interesses: tudo foi só negócio.
Pode-se argumentar que o repórter teve a tarefa facilitada pelo conhecimento do teor da documentação produzida pela Procuradoria de Milão, na qual se esclarece que, na verdade, não era a Kroll que espionava autoridades federais brasileiras, entre elas o então poderoso ministro das Comunicações, Luiz Gushiken. Mas, sim, os sócios italianos hostis a Daniel Dantas, que ousaram grampear até o telefone do então presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. Depoimentos de membros do topo da Telecom Italia, sob controle acionário, primeiro, da Olivetti e, depois, da Pirelli, narraram ainda, contando com o benefício da delação premiada, que a Operação Chacal teve como pretexto uma farsa: executivos dos serviços de segurança e de cibernética da operadora italiana produziram em Milão o CD-ROM que apresentaram falsamente à PF.
Lançamento salutar e oportuno
Mas, enquanto aqui os repórteres de jornais e revistas reproduziam sem questionar a interpretação enviesada da degravação dos grampos telefônicos de Protógenes, Raimundo teve a pachorra de ler, entender e catalogar os documentos italianos para relatar o que de fato ocorreu. E mais: identificou e introduziu no livro cada presepada do delegado encarregado do inquérito, como, por exemplo, a confusão que ele fez entre uma propriedade rural chamada Ponta do Curral e a suspeita ‘Conta Curral’. Ou ainda a determinação aleatória de personagens citadas nas conversas gravadas: certo Giba virou Gilberto Carvalho, secretário da Presidência da República, sem nenhum outro indício que autorizasse a associação entre o apelido e a autoridade.
Raimundo não teve condescendência alguma com o que classifica de ‘mau jornalismo’, que tratou frutos da imaginação do delegado como se fatos fossem. E contou o que não precisou mandar traduzir, pois consta da investigação que, descoberta a farsa de Protógenes, a corporação a que este pertence abriu para identificar suas violações de regras funcionais e leis. Uma destas mentiras que pilhou envolve a encenação de um flagrante de tentativa de suborno de um policial por dois executivos ligados a Dantas, motivo de sua segunda prisão. Ao contrário do que ele reportou aos superiores, tal como o CD-ROM da Telecom Italia que desencadeou a Operação Chacal, o vídeo que embasou a ordem de prisão do réu da Operação Satiagraha não foi produzido por seus agentes, mas por uma equipe da TV Globo a serviço do repórter César Tralli. A emissora nunca se explicou sobre esta flagrante falta de ética.
Antes que se acuse o repórter de parcialidade em benefício de um milionário, esclareça-se que Raimundo Rodrigues Pereira foi repórter da excepcional revista mensal Realidade e um dos fundadores da semanal Veja, além de ter dirigido duas publicações da imprensa alternativa de resistência à ditadura militar – Movimento e Opinião. Tem também laços profissionais e pessoais com o colega Mino Carta, que, na direção da revista CartaCapital, se tornou o mais implacável perseguidor na imprensa do investidor Daniel Dantas, a quem apelidou de ‘orelhudo’ por causa da acusação de que teria mandado espionar desafetos e autoridades da República ‘pete-lulista’.
É salutar que Raimundo lance o livro quando a privatização, que gerou a guerra pelo controle das teles, entra no debate do segundo turno da eleição. E irônico o fato de Protógenes ter virado deputado por obra e graça das sobras de votos do palhaço Tiririca.
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Jornalista e escritor; editorialista do Jornal da Tarde