Para quem (como eu) sempre, desde a infância, teve com o jornalismo impresso diário uma relação essencialmente vital, a possibilidade de participar de uma grande empreitada nessa área de atividade seria necessariamente empolgante.
Ocorreu-me a rara oportunidade de ter sido personagem de duas grandes experiências do jornalismo brasileiro contemporâneo: a concepção e implantação do ‘Projeto Folha‘ entre 1984 e 1987 e do Valor Econômico entre 2000 e 2004.
As duas foram muito importantes. O Valor Econômico foi o único diário de circulação nacional criado no país em uma geração. É verdade que houve o Jornal da República, mas infelizmente ele sobreviveu muito pouco tempo (de agosto de 1979 a janeiro de 1980). [O caso do Valor Econômico, relativamente recente, ainda aguarda um bom estudo acadêmico para explicá-lo. O do Jornal da República já mereceu o livro Dependência ou Morte, de Vera Lúcia Rodrigues (São Paulo: Germinal Editora, 2004).]
Ter sido um dos integrantes da equipe que, sob a direção de Celso Pinto, criou desde o princípio (quando o jornal nem tinha nome) e colocou no mercado um veículo que tão rapidamente se tornou referência de boa qualidade editorial como o Valor foi um privilégio excepcional.
Mas nada pode se comparar ao que vivi nos mil dias a que se refere o título deste livro. A Folha foi mais do que um jornal para as pessoas que eram pré-adolescentes quando ocorreu o golpe militar de 1964 e se opuseram ao regime na juventude, quando ele entrou na fase da ‘abertura lenta e gradual’, a partir da posse do presidente Ernesto Geisel, com todas as fases de avanços e recuos que se conhecem.
Naquele período da vida nacional, a Folha foi uma espécie de porta-voz das ansiedades da sociedade civil que se organizava para restabelecer o Estado de direito e a democracia. Havia entre leitores e jornal uma cumplicidade carregada de emoção e cheia de contradições que tornavam a sua leitura uma aventura intelectual diária.
Muitos jornalistas sonhavam com a chance de trabalhar naquela Folha. E os que o conseguiam passavam a desfrutar de certa aura entre os colegas e auto-assumida, similar à que houve em relação aos profissionais do Jornal da Tarde na segunda metade da década de 1960 e primeiros anos da de 1970, quando aquele veículo do grupo O Estado de S.Paulo era modelo de criatividade e ousadia editoriais.
Por isso, quando em 1983, por recomendação de meu amigo André Singer, fui num sábado calorento encontrar-me com Boris Casoy, então diretor de Redação da Folha, para eventual aproveitamento na sua equipe, estava muito ansioso, embora me esforçasse para não o demonstrar.
Além de leitor apaixonado da Folha, fazia alguns anos que eu já conhecia Singer (na época o coordenador de eventos e da seção ‘Tendências/Debates’) e Otavio Frias Filho, a quem havia entrevistado para revistas semi-acadêmicas (Cadernos de Comunicação Proal e Crítica da Informação) e convidado para debates na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde eu lecionava.
Meu desejo era ampliar minha experiência na prática jornalística. Trabalhara muitos anos nos Diários Associados, até ir para os EUA para um mestrado na Michigan State University. Ao voltar ao Brasil, fiz da vida acadêmica minha atividade fundamental, mas sempre achei importante não deixar as Redações. Fiz muito jornalismo alternativo e universitário, mas achava importante um tempo na chamada ‘grande imprensa’: minha passagem pelos Diários ocorreu já na época de sua decadência econômica e editorial.
Boris Casoy conversou comigo por mais de duas horas e eu fiquei impressionado com a sua disponibilidade. Minha ambição era uma vaga na ‘Ilustrada’, o suplemento cultural que naquela época tinha papel na vida nacional comparável ao do ‘Caderno B’ do Jornal do Brasil, 30 ou 20 anos antes: ele dava os motes fundamentais para os debates intelectuais e artísticos do país.
Mas acabei selecionado para trabalhar como repórter de geral da Agência Folhas, então dirigida por Adilson Laranjeira. Minha carreira na Folha foi meteórica. Em quatro meses passei de repórter a editor de ‘Cidades’ e secretário de Redação, o segundo cargo mais alto da hierarquia da Redação, ao lado de Caio Túlio Costa, que já o ocupava havia algum tempo, depois de ter sido o editor da ‘Ilustrada’.
Em maio de 1984, logo após a votação da emenda Dante de Oliveira, o frustrante capítulo final da campanha das Diretas-Já, episódio mais marcante da Folha como o veiculador dos anseios da sociedade civil, Otavio Frias Filho assumiu a direção de Redação do jornal e deu início ao processo que está descrito neste trabalho.
Orçamentos, números, planilhas
Mil Dias foi produzido no calor da luta. Forçado por meu mentor acadêmico, José Marques de Melo, que insistia na necessidade de eu prestar os exames para a obtenção do grau de livre-docência na Universidade de São Paulo, e premido pela evidente escassez de tempo provocada pela absorção do trabalho na Folha, onde eu passava pelo menos 14 frenéticas horas de cada dia, resolvi seguir o conselho de amigos antropólogos, para quem seria naturalmente recomendável utilizar a própria prática profissional como objeto de estudo acadêmico.
No prefácio da edição original deste livro, que foi publicado em 1988 pela editora Trajetória Cultural, de Gilberto Dupas, eu dizia que esse objeto de estudo ainda estava em curso e que ‘os sentimentos de reprovação ou aplauso [em relação ao livro] sejam muitas vezes justificados por motivos diversos dos da razão’. Eu achava, com razão, que não seria possível ‘para muitos dos que se sentem prejudicados ou beneficiados por ele [o Projeto Folha] manter a necessária distância do fato para julgá-lo com discernimento’.
Foi assim, de fato. A reação a Mil Dias na comunidade jornalística teve muito a ver com a polêmica que o ‘Projeto Folha‘ criara na categoria e que ainda estava ebuliente. Ele quebrou paradigmas, contrariou interesses, desafiou preconceitos, cometeu injustiças, foi juvenilmente arrogante. Como um crítico radical retardatário mas ainda respeitável diria 14 anos depois, ‘sua implantação introduziu no Brasil, em ritmo acelerado, uma lógica empresarial que a moderna imprensa capitalista construiu ao longo de várias décadas nos EUA e na Europa’ [José Arbex Jr., Showrnalismo – A Notícia Como Espetáculo (São Paulo: Casa Amarela, 2001), p. 141.].
Mesmo os mais ardorosos adversários agora concederão, contudo, que os pressupostos básicos do ‘Projeto Folha‘ foram incorporados pela imprensa brasileira, para o bem ou para o mal. Ninguém pode contestar que ele foi um precursor de tendências. Praticamente tudo que a Folha dos anos 80 fez sob apupos quase generalizados da concorrência acabou, positiva ou negativamente, adotado por ela – textos curtos, uso intensivo de gráficos e tabelas, cadernização do jornal, organização mais racional e metódica que a tradicional da atividade produtiva na redação jornalística e muito mais.
Havia, inclusive, entre os que conceberam e implantaram o ‘Projeto Folha‘ a certeza íntima de que essa imitação ocorreria. Na apresentação de Mil Dias, Otavio Frias Filho se arriscou até a prever um prazo para que as premissas do Projeto se tornassem padrão nas Redações brasileiras: dez ou 15 anos [Otavio Frias Filho, ‘Apresentação’, em: Mil Dias (São Paulo: Trajetória Cultural, 1988), p. 25.] Ele estava certo.
Quando Arthur Nestrovski, da Publifolha, me sugeriu que Mil Dias fosse reeditado, mais de seis mil dias depois, achei que poderia ser uma boa idéia. O tempo transcorrido e o fim do debate sobre os pressupostos do ‘Projeto Folha‘ podem dar aos leitores deste trabalho a isenção necessária para examinar com frieza um acontecimento que já se tornou história.
Nestrovski sugeriu que eu produzisse um capítulo adicional ao livro, que mais ou menos atualizasse seu conteúdo. Inicialmente, achei que ele deveria seguir rigor similar ao adotado para a produção do original, ou seja, adequado ao caráter científico da tese de livre-docência apresentada à Universidade de São Paulo. Isso exigiria uma série de entrevistas em profundidade com as pessoas que foram responsáveis pela Folha nos 18 anos posteriores ao final do período aqui analisado, já que eu mesmo deixei o núcleo de direção do jornal em 4 de setembro de 1989.
Mil Dias refere-se ao processo vivido pelo jornal entre maio de 1984 e maio de 1987. Em julho de 1987, eu fui para Washington para passar um ano acadêmico no Woodrow Wilson International Center for Scholars, durante o qual revisei e adaptei minha tese de livre-docência sobre o ‘Projeto Folha‘ para publicação em forma de livro e produzi uma monografia sobre a influência do jornalismo americano sobre o brasileiro, depois editada no Brasil com o título de O Adiantado da Hora [Carlos Eduardo Lins da Silva, O Adiantado da Hora (São Paulo: Summus, 1991)].
No meu regresso, assumi em 23 de setembro de 1988 o recém-criado posto de diretor-adjunto de Redação da Folha. Durante o período em que passei no Wilson Center, eu e Caio Túlio Costa havíamos sido substituídos na secretaria de Redação respectivamente por Matinas Suzuki Junior (área de edição) e André Singer (área de produção). Caio Túlio tornara-se correspondente em Paris e eu, concomitantemente a meu trabalho acadêmico, fora correspondente em Washington.
Ao meu retorno, Otavio Frias Filho deslocou André Singer para a edição da coluna ‘Painel’ e Matinas Suzuki Junior para a concepção e execução de projetos especiais. Abaixo de mim, como secretários de Redação ficaram Mário Vitor Santos e Leão Serva. Esse time se desfez menos de um ano depois, quando eu fui nomeado diretor de Planejamento e Recursos Humanos da Empresa Folha da Manhã S.A. e deixei a Redação do jornal.
A intenção dos acionistas da empresa com minha nomeação era ‘contaminar’ positivamente a sua administração com o que era visto como a experiência bem-sucedida dos que haviam liderado as mudanças na Redação, às quais se creditava – corretamente, creio – o extraordinário avanço de venda avulsa, assinaturas e prestígio social e político obtidos pela Folha no período. Além de mim, outros jornalistas envolvidos no desenho e na aplicação do ‘Projeto Folha‘ (Leão Serva e Caio Túlio Costa, entre outros) também foram ‘remetidos’ para o setor administrativo da empresa, com resultados mistos de sucesso e fracasso.
No meu caso, a tentativa não deu certo. Afastado da Redação às vésperas da primeira eleição presidencial pelo voto direto em 39 anos (a de 1989), eu me senti frustrado e infeliz, embora honrado com a grande confiança que os acionistas da empresa depositavam em mim. Posteriormente, a prática demonstrou que minhas aptidões com orçamentos e números não correspondiam às expectativas e necessidades da empresa e os desafios com esse tipo de trabalho não atendiam aos meus desejos e interesses pro fissionais. Não demorou muito para ficar claro para os dois lados que o novo casamento não estava funcionando.
Risoto e suflê
Em meados de 1990, fui transferido para a direção da Agência Folha, com a tarefa específica de conceber e implantar cinco edições regionais do jornal no estado de São Paulo, na linha do que vinham fazendo diversos jornais americanos como uma das fórmulas para tentar reverter o declínio de circulação paga que se acentuava já naquele tempo nos EUA.
Essa experiência foi um êxito do ponto de vista editorial e tecnológico, graças à equipe aguerrida que foi formada, sob o comando de Luiz Carlos Caversan, Ana Estela de Souza Pinto e Melchiades Filho. As edições regionais da Folha chacoalharam o então modorrento jornalismo do interior do estado de São Paulo, elevaram a qualidade da mídia regional paulista, provocaram elevação de salários significativa para os jornalistas locais e aumentaram a identidade entre a Folha e os leitores das áreas abrangidas. As dificuldades da economia nacional, após os poucos anos radiosos de progresso obtido pelo Plano Real, no entanto, forçaram o fim de quase todas as edições regionais da Folha, de onde saíram muitos dos jornalistas que atualmente comandam o jornal.
Realizada essa tarefa, em junho de 1991 fui deslocado para o posto de correspondente sênior do jornal nos EUA, baseado em Washington, posto em que permaneci até o final de 1998. De volta ao Brasil, passei à condição de repórter especial na sucursal de Brasília, de onde saí em novembro de 1999 para integrar a equipe embrionária do Valor Econômico (formada por Celso Pinto, Vera Brandimarte e mim). De maio de 2000 a janeiro de 2004, fui (junto com Brandimarte) o diretor-adjunto de Redação desse jornal, que pertence aos grupos Folha e Globo. Em fevereiro de 2004, deixei o jornalismo diário para me integrar à equipe da Patri Relações Governamentais & Políticas Públicas, fundada e liderada por Eduardo Carlos Ricardo.
Portanto, de 1989 em diante, embora até 2004 ainda fosse integrante do grupo Folha e por vezes tivesse estado próximo de processos importantes da vida do jornal – participei de todas as equipes que prepararam as diversas versões do Manual da Redação, dei contribuições para as diversas versões do Projeto Editorial do jornal, fui membro do júri do Prêmio Folha, compareci como com vidado a muitos almoços dos editores no nono andar, ajudei a preparar cursos sobre a Folha ou ministrados por seus jornalistas em universidades –, não mais participei da tomada de decisões. Desconheço, portanto, a lógica interna que as guiou.
Assim, achei que para redigir esta atualização de Mil Dias dentro do espírito que havia orientado o original (o de explicar metódica e minuciosamente a racionalidade que motivara as mudanças no ‘modo de produção jornalística’ na Folha), seria necessário, mas talvez insuficiente, entrevistar longamente os que tomaram as decisões na Redação nestes 16 anos.
Logo me dei conta, em acréscimo, que mesmo se fizesse isso os pressupostos metodológicos do trabalho não seriam respeitados, já que eles tinham como vetor essencial o que se poderia chamar de ‘observação participante’ do autor. Por mais que eu fosse bem-sucedido em reconstituir os acontecimentos no núcleo diretor do jornal nesses anos todos, faltaria a minha presença ali e tal presença era indispensável do ponto de vista metodológico para replicar a experiência.
Uma das críticas mais agudas a Mil Dias foi a que publicou a revista Veja em dezembro de 1988. Basicamente, ela dizia que eu tinha em mãos um material extremamente rico e havia produzido um relato pobre do processo que resultara no ‘Projeto Folha‘ por me abster de contar de forma engajada, emotiva e detalhada os conflitos humanos, a luta pelo poder, as incoerências, dúvidas e incertezas que certamente haviam feito parte dos acontecimentos da Redação do jornal naquele período entre 1984 e 1987.
A crítica, embora me tivesse aborrecido muito à época, era obviamente procedente. Mil Dias não é, por exemplo, O Reino e o Poder [Gay Talese, The Kingdom and the Power (New York: Dell Publishing Co., 1981; ed.bras.: O Reino e o Poder (São Paulo: Companhia das Letras, 2000)], a história do New York Times excepcionalmente bem escrita por Gay Talese. Primeiro, é claro, porque me falta o talento extraordinário de Talese. Mas também porque não era o objetivo de Mil Dias relatar de maneira romanesca os fatos que marcaram a vida da Redação da Folha naquele período. Tratava-se de uma análise o mais científica possível dos métodos utilizados para reformar a maneira de fazer o jornal e os resultados obtidos. Criticá-la por não ser diferente disso seria como atacar um chef que se propusesse a fazer um risoto porque o resultado de seu trabalho não foi um suflê.
De qualquer maneira, a intenção – mesmo à custa de novos ataques similares aos de Veja há 17 anos – de atualizar o livro por meio da reconstrução exata dos seis mil dias posteriores, como eu havia feito em relação aos primeiros mil dias, não se realizou como pretendido originalmente.
Texto ‘impressionista’
Além da impossibilidade material de repetir o método antropológico, as restrições corriqueiras de tempo típicas de quem no Brasil se dispõe à tarefa de produzir livros ao mesmo tempo que trata de sobreviver no mercado de trabalho se impuseram.
É verdade que, mesmo sem o testemunho pessoal do autor, a reconstituição dos anos posteriores aos ‘mil dias’ iniciais do ‘Projeto Folha‘ poderia ser enriquecida por meio de entrevistas com os remanescentes que levaram o jornal adiante dali para a frente. Mas isso foi impossível, não só por causa da incompatibilidade de agendas, mas também porque elas não permitiriam um elemento importantíssimo para chancelar as conclusões deste exercício: a comparação efetiva por quem viveu as duas fases.
Das 26 pessoas que, a meu ver, foram os principais motores do início do ‘Projeto Folha‘, apenas cinco ainda estavam no jornal em julho de 2005 (Otavio Frias Filho, Marcos Augusto Gonçalves, Marcelo Beraba, Marcelo Coelho e Gilberto Dimenstein) e, destas, só duas – Otavio e Marcos Augusto – em posições que implicam tomada de decisões na área editorial (ainda assim, Marcos Augusto passou vários anos fora da Folha na virada de século).
A alta rotatividade dos quadros jornalísticos da Folha sempre foi uma das minhas grandes preocupações como integrante da equipe dirigente do jornal (como se pode notar no capítulo ‘O Profissional’). Meus temores em relação aos efeitos das altas taxas de turn-over entre os jornalistas da equipe não eram consensuais na direção, como também está registrado no capítulo acima referido. Havia quem considerasse a rotatividade um dos fatores de impulsão às mudanças positivas na Redação.
Eu a considerava nociva. Parecia-me então (como hoje) irracional treinar equipes, capacitá-las, fazê-las trabalhar num padrão de qualidade satisfatório apenas para vê-las em pouco tempo desmanteladas, o que exigiria ou outro esforço para ‘educar’ novas pessoas ou abrir mão das conquistas obtidas antes.
Nunca me ocorreu que a rotatividade pudesse incluir também a equipe dirigente do jornal, como ocorreu, afinal. Para Otavio Frias Filho, ‘essa ‘diáspora’ era mais ou menos de esperar, decorridos mais de 20 anos daquele período específico’ [Frias Filho, entrevista por correio eletrônico ao autor em 1/8/2005]. Sobre as causas dessa dispersão, Frias Filho menciona duas: o próprio crescimento profissional das pessoas que formavam o núcleo de comando do jornal (segundo ele, algumas ficaram ‘maiores’ do que a função que exerciam na Folha e outras foram atraídas para governos, conforme partidos como o PSDB e o PT chegavam ao poder) e o dinamismo da imprensa e da mídia brasileiras, que provocou alternância de pessoas em diferentes veículos.
Na opinião de Frias Filho, no entanto, ‘a Folha é ainda uma publicação bastante ‘autárquica’, onde o jornalismo é dirigido por quadros quase sempre formados dentro do jornal’. Ele lembra que os secretários de Redação em agosto de 2005 haviam entrado no jornal em 1987 e 1991 e os editores de ‘Brasil’ e de ‘Economia’ em 1989 e 1990, da mesma forma que os diretores das sucursais de Brasília e Rio.
Por todos esses motivos, resolvi escrever este texto fora dos padrões que o ‘Projeto Folha‘ original consideraria recomendáveis. Este é um texto ‘impressionista’, adjetivo que nos tempos ‘revolucionários’ da Folha usávamos para discriminar os exemplos mais gritantes de inadequação ao tipo de jornalismo que tentávamos implantar. Ele é baseado quase exclusivamente na análise e lembranças do autor, que viveu o processo descrito à distância, e em entrevistas feitas com Otavio Frias Filho, o principal autor e mentor do Projeto e condutor dos destinos editoriais do jornal ao longo destes 21 anos.
De certo modo, a decisão de assim redigir esta nota introdutória à reedição de Mil Dias talvez nem seja considerada um desvio fundamental dos rumos do ‘Projeto Folha‘, já que ele próprio foi, com o passar do tempo, abrandando (ou – diriam alguns – superando) muitos dos traços que dogmaticamente havia adotado ao princípio.
Em busca da excelência
A História mostra que é quase sempre assim nos processos de mudanças profundas: a um período inicial de arraigamento ideológico extremado, sucedem-se outros em que os princípios vão sendo substituídos por posições mais realistas e menos conflitivas.
No caso da Folha, à medida que os seus concorrentes foram se apropriando de características importantes que antes a distinguiam deles, o jornal parece ter achado dispensável ou até mesmo recomendável não insistir nelas e concentrar esforços em outras áreas, onde os desgastes internos pudessem ser menores e os resultados – especialmente em termos de diferenciá-la aos olhos do público – maiores.
Isso já ficava claro no texto de atualização do Projeto Editorial de 1988, no qual se enfatizaram o acirramento da concorrência e a transformação em ‘patrimônio coletivo’ dos princípios que haviam renovado o jornalismo da Folha. Ao longo da década de 1990, os grandes diários brasileiros foram se tornando paulatinamente mais indistintos entre si e as marcas registradas da Folha cada vez menos exclusivas dela.
Não que o Projeto tenha sido ‘abandonado’. Algumas de suas idiossincrasias mais polêmicas deixaram de ser exigidas (por exemplo, a menção à idade do personagem da notícia ou a especificação da exata localização de onde se deu o fato registrado, ambas freqüentemente ridicularizadas pelos opositores do Projeto). Os repórteres e redatores foram incentivados ao longo do tempo a ousar mais na elaboração do texto, ao contrário do que se fizera, em geral, durante a fase de implantação do Projeto.
Provavelmente essa flexibilização fosse inevitável. Otavio Frias Filho afirmava claramente na apresentação a este livro em 1988: ‘… nada indica que a normatização possa funcionar como fórmula permanente. Tomada ao pé da letra, não seria surpresa se ela logo se mostrasse incapaz de revestir o relevo acidentado da notícia e se perdesse num discurso tanto mais inócuo quanto mais total, tanto mais abstrato quando mais preciso. Em outras palavras, ao menos no jornalismo parece que a normatização é capaz de debelar a doença, mas não de sustentar a saúde’ [Mil Dias, p. 25].
Ele talvez estivesse certo então e, igualmente, ao longo dos anos 90 quando foi soltando muitas das amarras normativas que alegadamente tolhiam o estilo dos jornalistas da Folha. Esse tolhimento, no entanto, nunca foi absoluto. Os melhores repórteres e articulistas nunca tiveram de se submeter a ele. Eu dizia com freqüência nos inúmeros debates em escolas de jornalismo e outros fóruns em que o Projeto era discutido, que a Redação era como uma orquestra, em que os solistas têm liberdade para improvisar, mas os músicos de base são obrigados a se ater rigidamente à pauta, sob o risco de perder-se toda a qualidade da apresentação. A Folha de 2005 não sofre de males nem de longe similares às incongruências de estilo que se justapunham na do início da década de 1980 e contra as quais, basicamente, se contrapôs a normatização do Projeto. Mas, em minha opinião de leitor, ela tampouco obteve a homogeneização de alta qualidade que idealizáramos ao iniciar a ‘revolução’ em 1984. O número de colunas no jornal aumentou e, em geral, são as colunas – cada uma delas estilisticamente comprometidas apenas consigo mesma e seu autor, como é natural – que mais identificam o veículo no público que o consome.
Novamente neste tópico, como em vários anteriores e posteriores, a explicação do fenômeno provavelmente decorra da sua inevitabilidade. O texto e a edição médios do jornal podem até ser superiores em qualidade ao que se tinha há 21 anos, mas certamente não atingiram o grau de excelência que almejávamos então e as razões podem ir da progressiva deterioração do ensino em todos os níveis no país às agruras econômicas por que a indústria da comunicação teve de passar nestes anos.
Candidato ao extermínio
Para mim, a questão fundamental ao escrever Mil Dias era saber se o ‘Projeto Folha‘ conseguiria melhorar o jornal em si e o jornalismo brasileiro em geral. Não há uma resposta indiscutível para a pergunta. Mas arrisco-me a dizer que sim, embora muito menos do que eu vislumbrara. O ponto que importa agora, a meu ver, é determinar se ainda é possível para os jornais impressos melhorarem a ponto de garantir sua sobrevivência no mercado.
A tendência de suas circulações pagas diminuírem parece irreversível em todo o mundo neste final da primeira metade da década inicial do século 21. Em agosto de 2005, o jornal (ainda) mais influente do hemisfério ocidental e possivelmente do mundo, The New York Times, anunciou ter decidido fundir as Redações do veículo impresso e a do eletrônico. Essa resolução indica com clareza a possibilidade de, em algum momento do futuro, a versão impressa se tornar caudatária da on-line ou mesmo desaparecer.
Talvez por simples conservadorismo, repugna-me a idéia de um mundo sem jornal impresso. Não é o caso de aqui reproduzir os intermináveis argumentos sobre as características das diversas ‘plataformas’ do jornalismo, sobre a noção de que uma privilegia a profundidade e outra a superfície, sobre a importância de editar os infinitos fatos que podem ser notícia para facilitar a vida do consumidor de informações. Essa discussão foge aos objetivos deste texto.
Basta afirmar, além da convicção de que o jornal impresso tem um papel próprio, relevante e intransferível a exercer numa sociedade democrática, a certeza de que ele só continuará a existir se for capaz de atender bem à demanda de seu público, o qual sempre foi e será cada vez mais constituído por uma parcela progressivamente menor da população, formada por sua elite intelectual e politicamente bem informada.
Para satisfazer a essas pessoas, que apesar de poucas são e continuarão a ser decisivas por desempenharem o papel de formadores de opinião, o jornal precisa ter a máxima qualidade editorial possível. Dadas as circunstâncias materiais e políticas dos tempos atuais e bastante provavelmente futuros, alcançar e manter esse nível de qualidade talvez implique diminuir o escopo de assuntos cobertos pelo jornal, que terá de ser muito menor e muito melhor.
Não faz mais sentido, em minha opinião, tentar abarcar toda a multiplicidade de acontecimentos que podem ser do interesse do leitor a um custo insuportável, quando há uma infinidade de meios pelos quais as pessoas podem se informar sobre esses assuntos de maneira mais rápida e até mais aprofundada. O que o jornal impresso pode oferecer distintivamente é a análise inteligente sobre os temas mais relevantes para a sociedade.
A história dos meios de comunicação de massa mostra que, apesar de muitos vaticínios contrários, a chegada de um veículo novo nunca provoca a extinção dos anteriores. Jornal, cinema, rádio, televisão, TV a cabo, internet acabam encontrando nichos de mercado que são capazes de sustentá-los, embora de maneira diversa da experimentada antes.
Alguns veículos, como acontece atualmente com o rádio, depois de terem perdido a hegemonia de que desfrutaram por muito tempo e experimentado períodos que se assemelhavam a derrocadas, passam por ressurgimentos que podem não os levar de volta aos momentos áureos, mas os refortalecem de modo às vezes surpreendente.
Nada garante, entretanto, que a sobrevivência de todos os meios seja certa indefinidamente. Para tudo pode haver uma primeira vez. Se hoje há um veículo candidato ao extermínio, ele é o jornal diário impresso. Para afastá-lo da beira do abismo, é necessária uma extraordinária dose de ousadia e coragem para mudar, possivelmente superior à que possibilitou o ‘Projeto Folha‘.
A dependência dos brindes
Nos últimos 21 anos, também ocorreram mudanças no panorama político-ideológico no Brasil e no mundo que aos poucos liquidaram a relação especial que se estabelecera entre a Folha e seu leitorado de 1975 a 1988 (e que é examinada com algum detalhe no texto de Mil Dias).
O Muro de Berlim tombou, a globalização sob o ‘consenso de Washington’ se impôs, as esquerdas ficaram sem rumo, o Brasil passou a eleger seus presidentes pelo voto direto universal e ingressou na democracia política plena a partir da promulgação da Carta de 1988. Enfim, como alguns analistas mais apressados equivocadamente vaticinaram, a História chegou ao fim. Nem tanto, como se vê todos os dias, mas o ambiente político, econômico, social e ideológico mudou muito.
De um lado, essas alterações arrefeceram muito o ímpeto contrário ao ‘Projeto Folha‘ que se verificara na década de 1980. O sentimento anticapitalista que em grande parte o movia deixou de ser tão importante no Brasil e um de seus braços mais importantes, o sindicalismo, praticamente desapareceu na atividade jornalística do país.
Os sindicatos dos jornalistas, que haviam estado entre os principais artífices da campanha contra o ‘Projeto Folha‘, caíram na quase completa inanição. Um dos últimos espasmos corporativistas da atividade, a tentativa de impor um Conselho Nacional de Jornalismo à profissão, fracassou incontestavelmente, apesar do apoio do governo Lula, por absoluta falta de apoio na sociedade e entre a categoria.
De outro lado, a ‘desideologização’ progressiva da sociedade rompeu a identificação arraigada entre o leitor e a Folha. O vínculo privilegiado entre ela e seu público teve ainda um último alento quando o presidente Fernando Collor de Mello a escolheu como um de seus alvos prioritários no fracassado intuito de estabelecer um regime autoritário de ligação direta com as massas de ‘descamisados’ e esta, corajosamente, dedicou-se a combater essa intenção com vigor incomparável.
Em março de 1990, agentes da Polícia Federal invadiram o jornal sob o pretexto de buscar irregularidades administrativas, mas com o inequívoco desejo de intimidar a Folha, que desde cedo se colocara editorialmente distante da bajulação pelo candidato e depois presidente Collor, que caracterizara o comportamento de boa parte da mídia nacional, assustada com a possibilidade da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência em novembro de 1989.
A Folha não cedeu e manteve vigilância jornalística permanente em relação ao governo Collor, fiel ao princípio de independência do ‘Projeto Folha‘. Foi o primeiro veículo de comunicação de massa a pedir, em 1991, o impeachment de Collor, que renunciou no ano seguinte para evitar a votação do Congresso Nacional que certamente o destituiria do cargo.
De 1990 a 1992, revigorou-se aquela identidade entre o jornal e seu leitor que havia sido tão marcante no período da distensão política no regime militar e, especialmente, durante a campanha das Diretas-Já. Depois disso, no entanto, como decorrência até natural da normalidade democrática de que o país passou a desfrutar, a ‘mágica’ deixou de existir.
De alguma forma, a inexistência dessa ‘cumplicidade’ entre a Folha e seu público foi conseqüência da cristalização de pelo menos alguns dos princípios básicos do ‘Projeto Folha‘, como apartidarismo, independência e espírito crítico. Na década de 1980, quando se cogitava a possibilidade de Fernando Henrique Cardoso vir a se tornar presidente da República, alguns dirigentes da Folha a encaravam com preocupação.
FHC era presença constante no jornal durante os anos da abertura democrática, tanto na condição de colaborador perma nente (foi por muitos anos um dos titulares da ‘coluna vertical’ na página A2) quanto na de interlocutor privilegiado dos donos e principais editores do jornal.
Pode-se dizer, sem medo, que a visão de país que o então sociólogo e depois suplente de senador, senador e candidato a prefeito tinha era muito próxima da dos diretores da Folha e da própria linha editorial do jornal. O publisher Octavio Frias de Oliveira não escondia de ninguém a opinião de que FHC era a pessoa mais preparada que ele conhecia para liderar o Brasil na direção que considerava correta.
Quando em 1985 Fernando Henrique Cardoso concorreu à Prefeitura de São Paulo, a Folha foi particularmente crítica de sua campanha. O objetivo era mostrar sem deixar margem a dúvidas seu compromisso com a independência editorial. Mas aqueles eram ainda os tempos de ‘revolução’ do ‘Projeto Folha‘. Temia-se, no núcleo dirigente do jornal, o ‘efeito Mitterrand’, que jogou o diário francês Le Monde numa crise de identidade, após a chegada do antigo aliado socialista ao poder na França.
A relação entre FHC e a Folha desde que ele assumiu o Ministério da Fazenda ainda no governo Itamar Franco até o fim de seu segundo mandato em 2002 mostrou que o jornal brasileiro escapou do risco. Fernando Henrique Cardoso certamente enxergava na Folha um inimigo. Tanto que, após ter deixado o Planalto, tornou-se colunista do principal competidor da Folha, O Estado de S. Paulo.
Do ponto de vista da excelência jornalística propugnada pelo ‘Projeto Folha‘, o confronto entre o jornal e o presidente Fernando Henrique Cardoso era inevitável e merecedor de aplausos. Mas ele acentuou a qualidade diferente da convivência entre o jornal e o leitorado, grande parte do qual se manteve leal ao ex-presidente (embora outra parcela considerável fosse petista e outra nem uma coisa nem outra). A unanimidade dos tempos das Diretas-Já e do impeachment de Collor nunca mais voltaria, como, aliás, previa o ‘Projeto Folha‘, o que tornava ainda mais imprescindível a manutenção da independência e do apartidarismo para segurar – e se possível ampliar – o público.
O alargamento do número de leitores se tornou concreto durante a década de 1990, mas não necessariamente devido à obediência (que – em geral – pode-se dizer que houve) aos princípios do ‘Projeto Folha‘. O sucesso do Plano Real de 1993 a 1997 proporcionou o acesso a bens de consumo simbólicos – como o jornal – a um número sem precedentes de pessoas.
A Folha resolveu apostar pesadamente numa estratégia de atrair esse contingente de potenciais consumidores por meio da distribuição de brindes (atlas, livros, discos, vídeos etc.). Esse artifício era largamente usado por jornais europeus, mas pouco nos EUA (onde, no entanto, sempre foi comum um estratagema de algum modo similar: os cupons de desconto para uso em lojas de varejo).
Diga-se, em benefício da decisão de adotá-los, que a Folha, ao contrário de outros jornais no Brasil e em outros países, limitou os brindes a produtos culturais (em vez de carros, imóveis ou objetos de uso doméstico). Deu certo: em 12 de março de 1995, a Folha atingiu a circulação paga de 1,6 milhão de exemplares, a maior da história da imprensa brasileira e superior à dos principais jornais de prestígio americanos.
Naquela época, eu era o correspondente do jornal nos EUA e via com preocupação a opção adotada pela empresa em que trabalhava. Em 1994, num seminário realizado pelo Laboratório Avançado de Estudos em Jornalismo (Labjor) da Universidade de Campinas, eu disse: ‘Minha dúvida, quanto ao crescimento dos jornais brasileiros, é até que ponto ele é provocado pela conquista de novos leitores ou pela adesão (necessariamente) temporária de usuários. Se for pela última, este é um crescimento que pode não se sustentar com o tempo. O único crescimento real, que se sustenta com o tempo, é o que se obtém pela conquista de novos leitores’.[ Carlos Eduardo Lins da Silva, ‘O Jornalismo Brasileiro Visto Pelos Correspondentes Estrangeiros’, em: Alberto Dines, Carlos Vogt e José Marques de Melo (orgs.), A Imprensa em Questão (Campinas: Editora da Unicamp, 1997), p. 29.]
Minha suspeita – infelizmente comprovada – era que a grande quantidade de pessoas que compravam a Folha por causa dos brindes a deixaria de lado assim que ou os brindes deixassem de ser atraentes ou o dinheiro voltasse a ficar curto. Assustavam-me os relatos que ouvia sobre pessoas que diziam ao jornaleiro que só queriam o brinde e deixavam o jornal na banca. Mais ainda, sentia-me consternado com guinadas editoriais em direção à tentativa (que se viu frustrada) de manter uma parcela daquele público desabituado com a leitura de jornais de qualidade e de baixo nível cultural.
O uso e o abuso
Essas indagações eram certamente compartilhadas por diversos dirigentes do jornal. No mesmo seminário na Unicamp acima mencionado, Luis Frias, diretor-presidente da Empresa Folha da Manhã, afirmou: ‘O problema é que a transformação do jornal em empresa e sua feroz concorrência pelo mercado estão fazendo com que o jornalismo atual padeça de uma sede sem limites por escândalos, uma vontade incontrolável de promover denúncias a qualquer preço… Faz atrocidades em nome de uma suposta liderança na cobertura de uma notícia. Quanto mais truculento, melhor’ [Luis Frias, ‘O Jornalismo Brasileiro Visto Pelos Empresários’, em: Dines et al., op.cit, p.58].
E eu me recordo vividamente de uma conversa com Otavio Frias Filho, quando mostrei a ele o texto que iria apresentar no encontro da Unicamp (em relação ao qual ele não demonstrou ter divergências de porte), e durante a qual ele afirmou que, no limite, os jornais teriam de oferecer ouro em pó como brinde para atrair e manter leitores.
Talvez tivesse sido, mais uma vez, inevitável cair na tentação populista nos anos dourados do Plano Real. Otavio Frias Filho declarou em entrevista para esta reedição, dez anos após aqueles momentos de delírio de vendas: ‘Ninguém seria louco de recusar centenas de milhares de leitores, nem de mudar o jornal após a chegada desses leitores, vindos de camadas mais populares’ [Otavio Frias Filho, entrevista pessoal ao autor em 1/5/2004].
O sucesso trazia em si próprio problemas, especialmente de ordem operacional. A infra-estrutura não era suficientemente equipada para atender à demanda aquecida com nível de qualidade aceitável. Faltavam jornais nas bancas, a entrega aos assinantes atrasava, os brindes não eram produzidos em tempo na quantidade necessária. Esses contratempos aborreciam tanto os leitores temporários quanto os fiéis de muitos anos.
O fenômeno de nivelamento por baixo para agradar à demanda crescente se alastrou por outras formas de comunicação, como a TV, por exemplo. O célebre ‘padrão Globo de qualidade’ desceu a patamares inimagináveis dez anos antes diante do asse dio do SBT e de outras redes que apelavam para os setores da população que, graças ao fim da inflação e à estabilidade da moeda, viviam um grande sonho de consumo, que – desgraçadamente para o país – durou pouco.
A disseminação do hábito de leitura da imprensa diária nos EUA e na Europa Ocidental ocorreu no século 19 em decorrência de diversas transformações sociais e econômicas (entre elas, alfabetização universal, diminuição da jornada média de trabalho, elevação significativa da renda média do trabalhador, urbanização acelerada) que criaram uma sociedade de mercado democrática, da qual o Brasil ainda está muito distante, mesmo 150 anos depois. Com o tempo, naquelas sociedades, criaram-se públicos estabelecidos tanto para a imprensa popular quanto para os jornais de prestígio.
A tentativa no período de euforia do Plano Real parecia ser a de queimar etapas no processo que nos EUA e na Europa levou quase um século para se consolidar e que incluiu, após as mudanças listadas acima, a ampliação do acesso de grandes massas ao ensino médio e superior de boa qualidade, o que evidentemente também não aconteceu ainda no Brasil.
O que me impressionava mais nas alterações editoriais que via nos jornais brasileiros não eram tanto os abusos do jornalismo investigativo (a que Luis Frias se referia), embora eles também tenham constantemente e até agora passado dos limites do bom senso, mas sim a vulgaridade e o sensacionalismo generalizados que, a meu ver, podiam ser percebidos em quase todas as editorias e seções.
Eu temia que essa busca pelo mínimo denominador comum do gosto e interesse dos leitores pudesse alienar os mais sofisticados, sem garantir a lealdade dos menos sofisticados. Muitos amigos exigentes em termos culturais me diziam estar abandonando a Folha em virtude dessas mudanças. Não disponho de dados para afirmar que foi isso o que ocorreu, mas tenho a sensação de que boa parte dos assinantes que deixaram o jornal durante e após a exuberância do Plano Real o fez por se sentir frustrada em relação ao que ele lhe oferecia. Atualmente, a circulação paga média da Folha é similar à do final da década de 1980, ainda superior à de seus principais competidores, mas muito inferior aos números sensacionais dos meados da década de 1990.
Outra estratégia importante adotada pelo jornal para ampliar a base de leitores e manter a liderança do setor foi o investimento pesado em tecnologia que teve no parque gráfico de Tamboré (zona oeste de São Paulo), inaugurado em 4 de dezembro de 1995 (com a presença do presidente Fernando Henrique Cardoso), o seu principal elemento. Além de permitir a impressão de 1,7 milhão de cópias por hora, o novo centro tecnológico-gráfico duplicou a capacidade de utilização de cores nas edições do jornal.
O uso ostensivo e abusado de cores era outra coisa que me incomodava na Folha, vista à distância desde Washington. Durante a maior parte da minha vida e seguramente àquela época, eu tomei o jornalismo americano como ponto de referência positiva para a atividade (depois do 11 de setembro de 2001, essa convicção interna se abalou profundamente, mas esta é outra história).
Capacidade de consumo
Como leitor diário, eu testemunhei a prudência e parcimônia com que os sucedâneos norte-americanos da Folha (The New York Times, The Washington Post e outros) incorporaram as cores em suas edições na década de 1990 e me sentia um pouco horrorizado com a escandalosa utilização de cores pelos jornais brasileiros (a Folha, ao menos, teve a pudicícia de manter sua logomarca em preto, diferentemente de concorrentes que a tornaram lilás).
Nesse aspecto, ao contrário do anterior (o apelo ao sensacionalismo), julgo agora que minha impressão à distância talvez estivesse equivocada. Wim Wenders, o cineasta alemão, fez os anjos de seus filmes Asas do Desejo e Tão Longe, Tão Perto enxergarem o mundo sem cores porque, a seu ver, os anjos – seres espirituais, capazes de ver a verdade melhor que os humanos – não podiam se prender à superfície das coisas, ressaltada pelas cores; o branco-e-preto revela a essência, ao contrário das cores, que revelam o aparente.
Provavelmente é uma ponderação romântica e conservadora e eu não tenho nenhuma evidência para comprovar a tese de que o uso de cores tenha desqualificado de alguma forma os jornais que optaram por ele. Mas ainda fico com a sensação de que a profusão exagerada de cores naquele período ajudou a criar um clima favorável à vulgaridade que pode ter afastado consumidores mais sofisticados.
Enterrada a ilusão de que o Brasil seria um dos únicos países em que a circulação paga de jornais impressos iria disparar na virada do século 20 para o 21, a indústria jornalística em geral e a Folha especificamente tiveram de enfrentar os enormes desafios de seus similares em todo o mundo mais, no caso brasileiro, as adversidades exclusivas do país.
Os donos e gestores dos veículos de comunicação de massa aparentemente acreditaram com sinceridade que os primeiros anos do Plano Real seriam apenas o início de uma trajetória nacional de desenvolvimento sustentado capaz de levar o Brasil à tão sonhada situação de progresso contínuo, similar à experimentada por Espanha e Portugal.
Dessa vez, seus críticos não poderão acusar os ‘barões da mídia’ (como a esquerda costumava chamar os proprietários dos meios de comunicação de massa) de hipocrisia: eles realmente concordavam com que seus editoriais diziam e investiram pesadamente (muitas vezes por meio de vultosos empréstimos em dólar, feitos provavelmente na convicção de que o câmbio permaneceria para sempre ou por longo tempo numa situação de quase paridade entre o real e a moeda americana) para atender a uma demanda que, calculava-se, continuaria a progredir em escala acelerada.
Felizmente para a Folha, a empresa que a edita foi conservadora em seus empreendimentos na década de 1990, ao contrário de algumas concorrentes, as quais se viram em enormes apuros nos anos seguintes. Guardei por muito tempo uma observação recorrente de Octavio Frias de Oliveira (que a partir de 1992 passou a deter a totalidade do controle acionário da companhia e havia muito tempo antes era o principal responsável pelas decisões estratégicas da Empresa Folha da Manhã S.A.), segundo a qual o negócio de sua empresa era fazer jornal e que ele não desejava enveredar por outros ramos, mesmo que da comunicação social.
No entanto, nem sempre foi assim. Frias de Oliveira e seu sócio Carlos Caldeira Filho tiveram por algum tempo o controle da TV Excelsior de São Paulo no início da década de 1960, mas por motivos diversos abandonaram o empreendimento. No ardor do último decênio do século 20, sua empresa novamente cogitou se arriscar em outras atividades, como a da telefonia, mas por razões que não vêm ao caso discutir aqui, esses negócios não se concretizaram, o que pode ter sido uma bênção para o jornal.
Na ascendente área da internet, no entanto, a empresa se empenhou, com resultados que podem ser considerados satisfatórios do ponto de vista empresarial, apesar do estouro da bolha da informática no início do século 21. O Universo Online (Uol), lançado experimentalmente em abril de 1996 e fundido com o Brasil Online (do grupo Abril) em setembro do mesmo ano (na primeira associação de dois importantes conglomerados do setor da mídia no Brasil), tornou-se o líder entre os grandes portais de internet, posição que sustenta até agora. Ele garantiu à empresa significativos aportes financeiros dos EUA e da Europa por meio da venda de parte das ações, sem que o controle acionário do Universo Online ou da Folha tivesse deixado de ser da Empresa Folha da Manhã S.A.
Mesmo não tendo de arcar com os enormes custos financeiros que colocaram vários de seus competidores em situação extremamente vulnerável (principalmente aqueles que se arriscaram na área de TV por cabo), o grupo Folha sofreu os efeitos da crise que afetou o setor da comunicação de massa após a desvalorização do real no início de 1999 e se alastrou até pelo menos 2004.
Numa evidente demonstração do fim dos efeitos positivos do Plano Real sobre a capacidade de consumo de setores emergentes na sociedade brasileira, o jornal Notícias Populares, dedicado aos estratos de menor poder aquisitivo, deixou de circular em janeiro de 2001. Outro título do grupo, que tinha como meta as classes médias baixas, a Folha da Tarde, passou por total reformulação editorial, que incluiu até a alteração de seu título (que passou a ser Agora), em março de 1999, com sucesso empresarial limitado e êxito editorial controverso.
Mudanças necessárias
O carro-chefe do grupo, a Folha, não tem passado imune pela tormenta. Dos grandes anos da década de 1990, muitas das conquistas editoriais foram abandonadas. Por exemplo, a rede de correspondentes internacionais, que vinha sendo característica marcante do jornal desde a segunda metade dos anos 70 e que chegou ao seu auge no início da década de 1990. Quando eu fui para Washington, a Folha tinha sete correspondentes dos EUA, outros tantos na Europa, além de diversos mais em outras partes do mundo.
A cobertura internacional independente foi uma das primeiras áreas drasticamente afetadas pelos cortes de custos que reduziram equipe e gastos durante muitos anos e que tiveram provavelmente seu momento mais traumático em meados de 2004, quando muitos dos melhores jornalistas do grupo que havia dado partida ao ‘Projeto Folha‘ 20 anos antes foram desligados da equipe pela imperiosa necessidade de conter despesas. Diferentemente do que ocorria nos anos iniciais do Projeto, quando as demissões em massa eram feitas com base em critérios de qualidade técnica, em 2004 elas afetaram especialmente os salários mais altos, pagos aos profissionais mais competentes.
Não ficaram nisso os estragos da ressaca contínua provocada pelo fim da bonança do Plano Real. Embora tenha sido mantida, apesar de tudo, a editoria de Treinamento, criada em 1991 como solução estratégica para o posicionamento do jornal no mercado, certamente foi uma das áreas do jornal que mais sofreram com o limite de gastos que os maus tempos impuseram. Diversas iniciativas de caráter pedagógico e/ou didático tomadas no início do ‘Projeto Folha‘ com o objetivo de tornar a atualização permanente da equipe (como, por exemplo, a publicação interna FiloFolha, a edição de manuais específicos para grandes coberturas – eleições, competições esportivas –, cursos e seminários internos periódicos) deixaram de existir.
Os jornais brasileiros, ao contrário de muitos entre os americanos, não se preocuparam (ou não tiveram condições de fazê-lo) em construir instituições capazes de garantir a melhoria progressiva e permanente da qualidade do jornalismo por meio de pesquisas, cursos, publicações. Desde o mestrado em jornalismo da Universidade Columbia até o Instituto Poynter, em Saint Petersbourg, Flórida, são inúmeros os exemplos de projetos acadêmicos ou semi-acadêmicos bancados por empresas jornalísticas americanas, que ajudaram a garantir a boa qualidade e, em última a instância, a prosperidade do negócio. A Folha, desde o início do Projeto, sempre flertou com a possibilidade de fazer algo grande nessa área, mas nunca chegou a tanto.
A editora Publifolha, criada em 1995, e a editoria de Treinamento, com seus cursos de treinamento e incentivos ao aprimoramento intelectual da equipe, de alguma forma vêm preenchendo as lacunas básicas dessas necessidades, mas sempre com inúmeras limitações que as distanciam muito do modelo desejado. Outras instituições cruciais para o espírito do ‘Projeto Folha‘, além da editoria de Treinamento, foram também preservadas, apesar das borrascas da virada do século. Entre elas, a do ombudsman, iniciada apenas em 1989, apesar de ter estado entre os primeiros objetivos do grupo que criou o Projeto.
O atraso na consecução da idéia (tão forte que desde 1986 havia uma sala com a placa ombudsman na Redação do jornal) se deu porque as pessoas originalmente convidadas para exercer a função se recusaram a aceitá-la, quase todos pelo receio das conseqüências desagradáveis que ela poderia lhes proporcionar, em particular junto a colegas de profissão (provavelmente em função do que acontecera com Alberto Dines, que foi uma espécie de precursor do ombudsman com sua coluna de crítica da mídia na própria Folha, no final dos anos 70).
Quem finalmente encarou o desafio foi Caio Túlio Costa, ao retornar do posto de correspondente em Paris. Ele relatou sua experiência em livro [Caio Túlio Costa, O Relógio de Pascal (São Paulo: Siciliano, 1991)]. Nele, estão descritas algumas das dificuldades iniciais, que poderiam ter feito naufragar ‘em dias’ o experimento, não fosse a determinação que norteou a implantação dos frutos dos ideais do ‘Projeto Folha‘. Seus sucessores talvez possam dar outros exemplos e todos, com certeza, atestarão como a empresa tem se empenhado em garantir a instituição do ombudsman.
O ombudsman foi uma das poucas inovações do Projeto que os concorrentes da Folha não copiaram. E não é pouco significativo esse fato. Ele é uma das demonstrações de como foi autenticamente radical o desejo de renovar que havia marcado o Projeto. O ombudsman, desde que a função seja exercida com a independência imprescindível para sua eficiência, é um desafio diário aos que exercem o poder editorial num jornal. O incômodo é evidente e tão grande que poucos entre os grandes diários do mundo se dispuseram a enfrentá-lo. O New York Times, por exemplo, apenas se rendeu à necessidade no início do século 21, após ter enfrentado a pior crise de credibilidade de sua centenária história, com os sucessivos fiascos na cobertura da Guerra do Iraque e nas reportagens fictícias de Jayson Blair. Talvez alguns diários brasileiros só venham a se dar conta da importância fundamental dessa instituição se passarem por trauma semelhante.
O ‘Projeto Folha‘ chega em 2005 a 21 anos da vida, o que no Brasil marca para o cidadão a maioridade completa. Jornalisticamente também é muito tempo, suficiente para uma avaliação justa. O que ele conseguiu não foi pouco nem ruim. Mas seguramente não foi tanto nem tão bom quanto seus idealizadores almejaram e talvez seja insuficiente para a dimensão dos desafios que estão à frente.
O jornal impresso diário corre risco efetivo de não sobreviver por muito tempo, tanto no Brasil quanto em quase todos os outros países. No Brasil, essa perspectiva é ainda mais frustrante porque ele nem chegou a ser um bem de acesso universal, como em outras nações.
Para evitar esse fim, os responsáveis pelos destinos dos grandes veículos brasileiros precisam ter determinação, arrojo para mudar drasticamente as características de seus produtos. Boa parte dos pressupostos para essas alterações já foi dada pelo sucesso do ‘Projeto Folha‘, disseminado por quase toda a indústria. Mas ainda falta muito.
Eu, particularmente, gostaria muito que a iniciativa nessa direção partisse novamente da Folha, o ‘meu’ jornal, que liderou a revolução no sentido da profissionalização da atividade 21 anos atrás. Será muito triste e empobrecedor para a sociedade brasileira se os jornais impressos diários continuarem a perder leitores e influência, como vem ocorrendo. A necessidade de mudar é evidente e ela não depende apenas dos veículos. Mas sem uma reforma profunda neles, as chances de sucesso ficarão muito reduzidas. Como cidadão e leitor, espero por ela, ao menos na Folha.
Estou seguro de que os dirigentes do jornal estão cientes dessa necessidade de mudanças. As alterações necessárias para esse redirecionamento certamente estão sendo concebidas e talvez até mesmo já tenham sido iniciadas e estejam à espera apenas de boas condições para serem plenamente implantadas. [São Paulo, agosto de 2005]
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Jornalista, livre-docente em Comunicação pela USP e diretor de relações institucionais da Patri Relações Governamentais & Políticas Públicas; foi repórter, editor, secretário de Redação, diretor-adjunto de Redação e correspondente em Washington da Folha de S.Paulo; autor de Muito Além do Jardim Botânico e O Adiantado da Hora, entre outros livros, foi também diretor-adjunto de Redação do jornal Valor Econômico.