‘Toda ordem traz uma semente de desordem; a clareza, uma semente de obscuridade’ (Raduan Nassar)
No empenho de conhecer um fato ou uma coisa, deles se faz inicialmente uma apreensão, ao mesmo tempo racional e sensível, condicionada tanto pela formação quanto pela posição social do indivíduo. Uma espécie de roupagem perceptiva e cognitiva cobre o objeto de conhecimento, não porque lhe seja uma aderência natural, mas em virtude do processo de mediação simbólica imprescindível ao ato de conhecer, que é, no limite, um jogo entre o homem e o mundo. Esse ‘pôr-se em jogo’ (em latim, in-ludo, donde, illusio) é o mesmo que ‘ilusão’. Atribui-se a palavra mito à mediação realizada pelo homem da Antiguidade: as ilusões míticas, os véus que cobriam as verdades comuns, mais revelavam do que explicavam o real. Assim regido, o homem antigo narrava os acontecimentos essenciais à conexão das coisas que, em sua totalidade, constituíam o cosmos ou o mundo enquanto forma primordial de sua existência. São indissociáveis do mito os acontecimentos relatados pelo primeiro ‘historiador’ do Ocidente, o grego Heródoto.
Na modernidade, a ilusão mítica dá lugar à ilusão metafísica, que Karl Marx viria a chamar de ideologia. Com efeito, o mito – que, na vigência da História, não mais se deixa narrar – cede lugar à ideologia, entendida inicialmente não como representação social organizada, e sim, como uma montagem racionalista das significações, com meios de expressão objetivos e claros. Este é, pelo menos, o sentido da palavra, ao ser entronizada no século 19 por Antoine Destutt de Tracy e Georges Cabanis, discípulos do filósofo sensualista Condillac, que consideravam as idéias em si mesmas, como derivações das sensações, mas destinadas à comunicação racional, sem falhas lógicas. Em termos práticos, a ideologia se apresentava como uma espécie de gramática da clarificação, no fundo, uma espécie de retorno à claridade mediterrânea do nous grego.
Uma força de integração social
Ao longo dos séculos, a palavra teve acepções e usos diversos, às vezes conotada como produção de falsa consciência (modo marxiano de designar a ilusão metafísica), às vezes como visão de mundo, o que acabou ampliando o seu escopo semântico e, naturalmente, complicando a sua trajetória conceitual. Persiste, entretanto, no vocabulário intelectual como uma espécie de índice das posições diferenciais dos discursos, por parte de sujeitos individuais e coletivos. Primeiramente, no sentido de representação com um viés hegemônico – sistema de idéias ou pensamentos organizados, por parte de um grupo ou um indivíduo, portanto, um instrumento doutrinário diferencial da classe em ascensão, sujeito às distorções da realidade ou dos fatos em favor da vitória na argumentação. Em termos resumidos, ideologia significa aqui a luta discursiva que se trava para decidir quem domina.
Depois – numa acepção que hoje diríamos semiótica, mas que remonta à releitura althusseriana de Marx nos anos 70 –, ideologia tem o sentido de sistema de decisões discursivas sobre axiomas de realidade, articulado com a ordem produtiva dominante. É, em última análise, a forma que os conteúdos (enunciados, processos, significações, imagens etc.) assumem na vida social, com vistas à produção de sentido. Longe de ser uma forma neutra, entretanto, é homológica, em níveis manifestos e latentes, ao modo de produção econômica dominante e às modulações culturais da organização social. Ideologia é aqui uma força de integração social. Com este viés, pode adquirir valor cognitivo, desde que se deixe bem claro o que se quer dizer com o termo.
A condição de panfletário
Ao fincar pé na História como o meio de comunicação preferencial da burguesia, a imprensa mostra-se ideológica em mais de um sentido. Não que tivesse participado explicitamente de qualquer embate acadêmico sobre a ideologia, mas a sua modernidade está visceralmente ligada às mesmas exigências históricas que presidem ao fenômeno da construção do mundo por meio do discurso esclarecido. Ou seja, às exigências que o mercado livre levava a classe burguesa dominante a fazer a si mesma, desde meados do século 17, com vistas a produzir uma racionalidade universal para o ato de fala, em que a legitimidade do enunciado proviesse da própria razão discursiva e não do lugar privilegiado do falante. Desde então, a imprensa ocidental alimenta-se, em seus melhores momentos, de uma ideologia da transparência pública.
O conceito europeu de ‘esfera pública’ diz respeito ao espaço em que a ideologia ou a racionalidade burguesa se materializava em instituições (cafés, clubes, revistas, jornais) capazes de gerar um discurso político crítico e democrático. A palavra ‘pública’ pode levar a enganos de entendimento, porque não se trata de um mero espaço de comunicação – esta é só a sua superfície imediata –, e sim, de uma exterioridade dinâmica, um território marcado por linhas de força (nem sempre ‘públicas’ ou visíveis) que descentram as subjetividades sociais, deslocando-as de suas posições fixas, transformando-as por meio da circulação transitiva de idéias.
O jornalismo é apenas uma das atividades no interior dessa esfera. Tampouco é homogêneo o seu percurso na Europa: houve períodos em que o jornal diário não gozava da boa consideração que mais tarde lhe veio atribuir o espírito liberal. Enquanto Hegel pôde ver na leitura matinal dos jornais ‘a prece do homem moderno’, Balzac mostrou-se abertamente cáustico para com essa ela – ‘se a imprensa não existisse, seria preciso não inventá-la’ –, embora assumisse paradoxalmente a condição de panfletário: ‘O verdadeiro panfleto é obra do mais alto talento, se todavia não for o grito do gênio.’
Informação pura e opinião
É que até mesmo em seus instantes panfletários ou em seus manifestos típicos do publicismo (o jornal artesanalmente produzido, mas politicamente definido como tribune aggrandie, na formulação de Benjamin Constant), a imprensa queria de algum modo esclarecer um público, ora trazendo à luz o que se ocultava nos desvãos do Poder como ‘segredos de Estado’, ora tentando fazer passar uma idéia ou uma causa como indutoras de modernização e progresso. Emergindo historicamente na passagem do Estado absoluto ao Estado de direito, como porta-voz dos direitos (civis) que inauguram a modernidade da cidadania, a imprensa traz consigo a novidade ideológica da liberdade de expressão, mas sem abandonar por inteiro a garantia de alguns velhos recursos mitológicos, a exemplo da construção de uma narrativa sobre si mesma como entidade mítica que administra a verdade dos fatos sociais, e mais, a retórica encantatória na narração fragmentária sobre a atualidade.
Perpassada pelo compromisso histórico para com a ética do liberalismo, essa narrativa autoconfirmativa nos repete que cabe à imprensa, desde os começos do regime republicano europeu, assegurar ao cidadão a representatividade de sua palavra, de seus pensamentos particulares, garantindo assim a sua liberdade civil de exprimir-se ou manifestar-se publicamente. Esta função, que é a virtude intrínseca do jornalismo, lastreia eticamente o pacto implícito na relação entre os meios de comunicação e a sua comunidade receptora. Seja no jornalismo escrito ou eletrônico, o dever do jornalista para com o público-leitor é noticiar uma verdade, reconhecida como tal pelo senso comum, desde que o enunciado corresponda a um fato, selecionado por regras hierárquicas de importância. Se o jornalista não se especifica editorialmente como comentarista (comment é algo diverso de news), o seu enunciado ‘noticioso’ obriga-se a explicitar a distinção entre informação pura e opinião, isto é, entre o relato supostamente imparcial e objetivo de um acontecimento e a tomada de posição subjetiva sobre a natureza do fato.
A submissão do jornalismo à ‘Era Bush’
Essa virtude, decorrente do preceito das liberdades civis instituídas pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, resulta da definição e do empenho de liberais, a exemplo de Benjamin Constant, para quem a única de todas as liberdades que não pode ser suspensa é a de imprensa, por funcionar como uma efetiva condição das outras. Foi assim que a imprensa livre pôde ser reconhecida como obra do espírito objetivo moderno e, deste modo, constituir um pano de fundo ético-político que tornaria escandaloso para a consciência liberal, em qualquer parte do mundo, o fenômeno do jornalismo sensacionalista, ou tornaria condenável pela consciência moral do jornalista o falseamento ou o encobrimento da verdade factual.
Uma vez ultrapassada a fase artesanal e publicista, a imprensa passou a oscilar continuamente entre os seus interesses empresariais – dificilmente isentos das tentações da manipulação e da corrupção política – e os fatos relativos à realidade sócio-política de seu público, sempre cercada pela mística de defesa incondicional dos direitos da cidadania regional ou mundial. A busca de uma transparência discursiva ou ideológica, mas apoiada nas opacidades de seu próprio mito, é a ambivalência constitutiva do jornalismo.
De fato, ao longo de todo o século 20, o jornalismo mais bem estruturado do ponto de vista de sua realização técnica, de sua organização capitalista e de ideologia liberal – aquele praticado pela imprensa norte-americana – alternou sistematicamente as suas proclamações de objetividade, isenção e empenho ético com os silêncios e as adesões aos atos de guerra e massacres perpetrados pelos sucessivos governos de seu país contra os movimentos de autonomia civil por parte de populações nos vários continentes do mundo. A submissão do jornalismo americano ao espírito da ‘Era Bush’ acabou com as velhas ilusões liberais sobre a independência da imprensa.
‘Notícia não tem ideologia nem partido’
No entanto, a mitologia do liberalismo continua acompanhando a clarificação ideológica do Poder. Esta tarefa, continuamente levada a cabo pela imprensa, tem requerido mitos progressistas capazes de encobrir o jogo de poder que preside à constituição do discurso jornalístico: toda uma parafernália de formas de homogeneização dos discursos sociais e de edição dos acontecimentos a partir da mesma cultura eurocêntrica e colonial inerente ao nascimento da imprensa moderna. Podem variar as perspectivas ou os pontos de vista, mas a forma – a ideologia, no limite – assumida pela imprensa industrial como a conhecemos é universalmente burguesa e européia, tecnicamente aperfeiçoada pelos norte-americanos. Por isto, dessa mesma imprensa politicamente comprometida com o statu-quo universal, sempre partiram diretivas técnicas de modernização no tratamento dos fatos. As reformas gráficas e textuais dos jornais latino-americanos tiveram e continuam a ter como fontes, com raras exceções, os experimentos técnicos levados a cabo pela corporação jornalística nos Estados Unidos. As transformações e inovações dos formatos comunicativos acompanham a evolução das máquinas de informação, majoritariamente expandidas pelo mercado norte-americano.
E o conceito de notícia, tal como é entendido e praticado pelos profissionais do mundo ocidental – a narração do acontecimento, racionalizada como uma commodity –, é basicamente anglo-saxônico. Não à toa, os norte-americanos erigiram em Washington, na primeira década deste terceiro milênio, um monumental Museu da Notícia. Ainda que o jornal não se limite à veiculação de notícias no sentido estrito da palavra, essa forma comunicativa tem lastreado nos últimos dois séculos a idéia moderna de jornalismo, na medida em que dá margem à construção e manutenção de toda a mitologia da neutralidade que se atribui a uma mercadoria e que, portanto, sustenta os coeficientes de confiabilidade pública nos relatos. O curto trecho de um editorial jornalístico serve para resumir esses atributos: ‘Notícia não tem ideologia nem partido. Ela fala por si para os verdadeiros profissionais de imprensa e a mídia profissional. Reduzir o destaque de um fato por conveniências políticas só em diários oficiais, no antigo Pravda soviético e no Granma cubano’ (O Globo, 4/8/2007).
Estratégias de captação da escuta
O texto em questão pretende desconhecer que, onde existe discurso (produto básico do mercado simbólico da comunicação), há disputa em torno da produção de sentido, logo, ideologia. Além disso, cada jornal – ou cada veículo de comunicação – desenvolve estratégias de distinção, presumidamente capazes de lhe outorgar uma identidade discursiva ou editorial, tida como necessária para inculcar no público leitor a sua especificidade comercial. Essa identidade, que se constrói no interior da atmosfera de relacionamento entre o jornal e seu público, permite uma diferenciação frente a outros modos jornalísticos de enunciar os fatos cotidianos e, evidentemente, dá margem ao aparecimento de posições diferenciais – pontos de vista, doutrinas, preferências políticas, etc. –, que poderemos chamar de ‘ideológicas’.
Entretanto, a notícia, ao longo dos últimos dois séculos, tem sido a forma-lastro de uma invariância comunicativa, garantida pela suposto racionalismo mercantil atribuído aos produtos lançados no mercado. Daí, o interesse teórico dessa forma, enquanto modelo em última análise do discurso da informação. Esse racionalismo – na verdade, bastante ‘ideológico’ – não abre mão, entretanto, do que poderiam parecer, a iluministas desavisados, ‘resíduos’ míticos. A antiga função integradora da narrativa continua presente na comunicação do acontecimento, em geral mesclando realidade histórica com imaginário coletivo, como se dava na oralidade narrativa clássica. É contra essas formas imaginosas da linguagem que se levanta na modernidade a clarificação da ideologia, com muita ênfase no discurso jornalístico. No entanto, o cerne da objetividade ideológica da notícia é constituído dos mesmos materiais expressivos de que se valia o narrador antigo para cimentar com palavras os laços comunitários.
O presente trabalho visa a discutir a especificidade da notícia enquanto estratégia de construção e comunicação do acontecimento, posta em prática nos últimos dois séculos por um grupo profissional – a corporação jornalística – que vem desfilando na História com o estandarte de defesa dos direitos civis, com foco na liberdade de expressão e na ideologia do esclarecimento, sempre escudado em estratégias discursivas de captação da escuta das massas.
Produtos da imaginação literária
Evidentemente, o jornalismo – processo comunicativo de escopo bem mais amplo do que o da informação noticiosa pura e simples – mobiliza diferentes tipos de discurso, mas a sua moderna centralidade conceitual apóia-se na notícia. E esta forma de captação e comunicação do fato é uma dessas estratégias cuja mitologia liberal-mercadológica costuma fazer esquecer os procedimentos retóricos e imaginosos que presidem à construção do acontecimento. Não se trata de manipulações deliberadas, nem de mentiras, mas de interpretações que podem muitas vezes lançar mão de recursos típicos da ficção literária, com vistas à criação de uma atmosfera semântica mais compreensiva. Apesar de sua aposta histórica no esclarecimento neutro, a notícia não prescinde, em termos absolutos, do apelo à carga emocional contida nos estereótipos que derivam das ficcionalizações ou dos resíduos míticos.
A progressiva elaboração histórica da forma noticiosa sempre se fez e ainda se faz acompanhar de regiões do sensível, que não raras vezes torna o acontecimento irredutível à lógica da História. Isto vale tanto para o jornalismo corporativo quanto para a pequena informação diariamente produzida em todas as partes do mundo por anônimos autores de blogs, que hoje transformam o espaço eletrônico numa ponte para o mundo. Vale, sobretudo, para as derivações ficcionais das páginas dos jornais ou dos dispositivos audiovisuais, que ora se configuram como formas novas de produção das notícias, ora como produtos da imaginação literária, enfeixados em gêneros muito populares na indústria do entretenimento, a exemplo da narrativa policial.
‘Pobreza de experiências’
Mas o que se torna cada vez mais evidente é que ‘jornalismo’ não é uma categoria exclusiva das modalidades expressivas inscritas nos tradicionais meios de comunicação. O texto de jornal representa basicamente um tipo de intervenção na língua – com os recursos retóricos da clareza e da concisão – afinado com a estrutura ideológica do sistema informativo, cuja forma mais evidente é a presumida transparência da realidade, por meio da evidência noticiosa dos fatos. É, porém, uma presunção que esconde as refrações, as distorções e a mística do que se pretende erigir como espelho do real. De fato, embora a ideologia que preside à elaboração corporativa do discurso informativo pretenda cingir-se tão só às diretrizes do pragmatismo e da lógica mercantil, descartando a imaginação, o não-visto e o que esteja aquém ou além do fato, a parte excessiva do acontecimento o atrai, de um modo ou de outro, mas predominantemente por meio da narrativa, para algumas das águas turvas de onde surge o brilho da ficção.
Para discutir os limiares (não os limites absolutos, nem as fronteiras) dos discursos da informação e da ficção, partimos do problema da determinação do ‘noticiável’ para depois expormos as diferenças entre o ficcional e o factual e, finalmente, mostrarmos uma das principais derivações romanescas do fait divers. No centro de toda esta problemática está o tempo, explicitado em duas categorias que desenvolveremos na primeira e na segunda parte deste trabalho: o acontecimento e a experiência. O primeiro refere-se propriamente aos critérios de produção da notícia, enquanto estratégia de narração do fato social, e a segunda, ligada à narratividade, mas presumidamente tornada difícil, devido ao que Walter Benjamin chamou de ‘pobreza de experiências’ da modernidade. Nossa pesquisa, realizada sob os auspícios do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas (CNPq) – valeu-se de literatura acadêmica, mas principalmente de material garimpado na imprensa cotidiana.
******
Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro