Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A imprensa na obra do Bruxo

I

Um escritor que está para a literatura brasileira assim como Miguel de Cervantes (1547-1616) está para a literatura espanhola ou Léon Tolstói (1828-1910) para a russa – é assim que Machado de Assis (1839-1908) chega a 2008, ano do centenário de sua morte. Para associar-se a todas as homenagens que lhe têm sido feitas em todo o País, a Editora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) está reeditando neste ano uma série de livros do maior romancista da literatura brasileira, em edições bem cuidadas e acompanhadas por estudos, introduções críticas e filológicas e notas explicativas que ajudam o leitor a compreender melhor a época em que viveu o escritor.

É o caso de Bons dias!, coletânea de 49 crônicas publicadas por Machado de Assis na Gazeta do Rio de Janeiro, de 5 de abril a 1888 a 19 de agosto de 1889, numa média de quase três por mês. Todas começavam com a saudação ‘Bons dias!’ e acabavam na despedida que também funcionava como assinatura-pseudônimo (‘Boas noites!’). Assinadas dessa maneira, essas divertidas crônicas não foram reconhecidas como de sua autoria até a década de 1950.

Na maioria, têm um fascínio especial no que diz respeito às opiniões políticas do autor. A série coincide com um momento importantíssimo na história do Brasil — a abolição da escravatura e as vésperas do fim do Império. Além da política da época, trazem para o leitor de hoje certos temas favoritos de Machado, como a medicina popular, os neologismos e o espiritismo (que sempre combateu).

A primeira e a segunda edição deste livro estão esgotadas há muito tempo; esta terceira, atualizada, traz melhoramentos nas notas e uma nova introdução especialmente preparada por John Gledson, professor aposentado de Estudos Brasileiros da Universidade de Liverpool (Inglaterra), um dos mais argutos e fecundos estudiosos da obra machadiana e autor de três livros sobre o escritor: Machado de Assis: ficção e história (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986; 2ªed.2003), Machado de Assis: impostura e realismo (São Paulo, Companhia das Letras, 1991) e Por um novo Machado de Assis (São Paulo, Companhia das Letras, 2006).

Como as crônicas são reações imediatas ao que ocorre na cena pública, à época da abolição da escravatura o cronista Machado de Assis não podia se furtar a comentar o que lia e via nas ruas: parecia entediado ao ver a grandiloqüência daqueles que se batiam pelo fim da escravatura. Não que fosse defensor daquele regime iníquo, mas, cético, sabia que não se podia esperar nada com entusiasmo excessivo porque a abolição seria apenas a simples passagem de um relacionamento econômico e social opressivo e aviltante para outro. De propriedade, o escravo passaria a alugado. Com a desvantagem de que, quando não mais precisassem de seus serviços porque idosos, os patrões poderiam descartá-los, mandando-os às ruas sem mais nem menos.

Pelas crônicas, percebe-se também que o neto de escravos alforriados não acreditava também naquela idéia de república que parecia empolgar os mais jovens e afoitos. Preferia, isso sim, a monarquia com todos os defeitos que tinha, mas que eram sabidos e conhecidos. ‘Seria fácil provar que o Brasil é mais uma oligarquia absoluta do que uma monarquia constitucional’, escrevia, como a avisar que a república nasceria da oligarquia e, portanto, a mudança de regime seria mais uma troca de tabuletas, como na famosa cena do romance Esaú e Jacó. Para piorar, a república nasceria de um golpe de estado, que haveria de inocular o vírus da anarquia nas forças armadas.

Mostrando que não era um profeta de fatos consumados – expressão que lhe era cara –, Machado de Assis sabia que os regimes republicanos ofereciam oportunidades sem conta a aventureiros de todas as espécies. Em menos de quatro anos, a ditadura do marechal Floriano Peixoto seria uma prova inequívoca de que seus piores sentimentos às vésperas da proclamação da república tinham mesmo razão de ser. Superada a balbúrdia nos quartéis, viria o federalismo, ou seja, o poder exacerbado das oligarquias provinciais, sobretudo, dos cafeicultores de São Paulo. Tudo o que Machado previra.

Como observa Gledson na introdução, a exumação destas crônicas é importante porque revela opiniões nunca expressadas por Machado com tanta clareza e coerência – pois nos contos e romances estão sempre disfarçadas por muita ironia e insinuações nem sempre fáceis de captar hoje, mais de um século depois.

II

Comentários da semana reúne crônicas escritas entre outubro de 1861 e maio de 1862 para o jornal de perfil liberal Diário do Rio de Janeiro, a uma época em que o autor andava ao redor dos 22 anos de idade e estava longe de indicar o futuro mestre que haveria de se tornar. A série reaparece depois de uma única publicação em livro já há muito esgotada (em Obras completas, da finada Editora Jackson, do Rio de Janeiro, em 1937) e, se já deixa transparecer um pouco da ironia mordaz e fina que o caracterizaria na maturidade, a verdade é que só foi recuperada por causa do interesse que desperta toda a obra de um escritor canonizado. Escritas com o fim imediato de publicação em jornal, com certeza, nunca teriam saído da poeira dos arquivos, se dependesse da vontade de seu autor. E, de fato, não trazem o encanto das crônicas reunidas em Bons dias!.

Usando o pseudônimo Gil, Machado de Assis escreveu nove destas crônicas em outubro, novembro e dezembro de 1861. Depois, passou a assinar os textos com suas iniciais (M.A.). Na maioria delas, a preocupação é com os fatos políticos do momento, que o cronista acompanha com malícia e isenção. ‘(…) a crítica é afiada e não poupa endereçamentos desagradáveis aos ministros e ao governo: fatalistas, indolentes, medíocres, vulgares. Um olho atento à realidade dos fatos, o outro a comentá-los com personalidade crítica, a conversa com o leitor faz-se aqui, além de afiada, perigosa’, observam na introdução Lúcia Granja, doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp, e Jefferson Cano, doutor em História também pela Unicamp.

III

Depois de ter dividido a crítica durante muito tempo quanto a sua classificação textual (ensaio satírico ou peça de teatro?), Queda que as mulheres têm para os tolos, do belga Victor Hénaux, em tradução de Machado de Assis, ganha uma edição extremamente bem cuidada e anotada, que serve para afastar de vez as dúvidas e informações equivocadas a seu respeito que, ainda, são encontradas em pesquisa na Internet. A última vez que saiu à luz foi no livro Crônicas, XXII (Rio de Janeiro, Editora Jackson, 1953, p.-163-181).

Como bem explicam na introdução crítico-filológica as professoras Ana Cláudia Suriani da Silva, doutora em Letras Modernas pela Universidade de Oxford, e Eliane Fernanda Cunha Ferreira (1958-2007), doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais, este texto teve uma história bem controversa, desde que publicado pela primeira vez na revista carioca A Marmota, em edições de 19, 23, 26 e 30 de abril e 3 de maio de 1861, sem indicação de autor nem de que se tratava de uma tradução.

Foi o pesquisador francês Jean Michel Massa, autor de A juventude de Machado de Assis – 1839-1870 (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971), tradução de Marco Aurélio de Moura Matos de sua tese de doutorado La jeunesse de Machado de Assis (1839-1870): essai de bibliographie intellectuelle (Université de Poitiers, 1969, quem, ultimamente, sugeriu que Machado não era autor de Queda que as mulheres têm para os tolos, embora o livro publicado em 1861 pela Tipografia de F.Paula Brito, do Rio de Janeiro, deixasse claro na capa que se tratava de uma ‘traducção do snr. Machado de Assis’, sem se dignar a apontar o nome do autor. Era uma tradução de De l´amour des femmes pour les sots, de Victor Hénaux.

Em tese complementar, Machado de Assis traducteur, 2 vols., Université de Poitiers, 1970, o crítico francês foi além e comparou a tradução do escritor brasileiro com a quarta edição de Hénaux. Como o livro de Massa só agora foi publicado no Brasil – Machado de Assis, tradutor (Belo Horizonte, Editora Crisálida, 2008) em tradução de Oséias Silas Ferraz –, a crítica machadiana continuou ignorando olimpicamente a informação. Foi o que fizeram, por exemplo, estudiosos importantes da obra machadiana como Galante de Sousa, Lúcia Miguel Pereira e Afrânio Peixoto. E o erro se disseminou impunemente por artigos de jornais e revistas e em trabalhos acadêmicos e livros.

IV

Por desconhecimento, o texto foi considerado também peça de teatro, embora seja claramente um ensaio, como percebe quem lê apenas suas primeiras linhas. Não foi, porém, Massa quem primeiro insurgiu-se contra o equívoco. Já Amadeu Amaral em 1938, na revista Dom Casmurro, do Rio de Janeiro, já havia alertado para o fato de que o texto não era inédito nem de Machado de Assis, mas tradução. Mas, à época, poucos levaram consideração a advertência.

A ponto de Anita Novinsky em O olhar judaico em Machado de Assis (Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1990), José Raimundo Maia Neto em The Brazilian Phyrronian (West Lafayette/IN: Purdue University Press, 1994, e Ângela Canuto em Machado de Assis: memórias de um frasista (São Paulo: Lemos Editorial, 2002) considerarem Queda um texto original de Machado de Assis e o primeiro livro de sua carreira literária, como bem observaram as professoras Ana Cláudia e Eliane Fernanda na pesquisa que empreenderam.

Sem contar que Daniel Piza, no recente Machado de Assis: um gênio brasileiro (São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005), ainda assumiu uma postura hesitante, ao escrever que Queda é ‘provavelmente uma adaptação da obra do autor francês Victor Hénaux’. Na segunda edição do livro, de 2006, Piza corrigiu a informação, dando o texto como ‘uma adaptação (sem crédito) da obra do autor francês Victor Henaux’, mas continuou a chamar Henaux (sem acento) de francês, embora uma rápida pesquisa no Google tivesse sido suficiente para mostrar-lhe que o autor era belga.

Ana Cláudia e Eliane Fernanda trataram ainda de descobrir quem foi Hénaux, ‘um belga, jurista de profissão, que provavelmente atuava em Liège, dado serem todas as suas outras publicações relativas a essa cidade’. E levantaram que De l´amour teve repercussão na época de sua publicação na Bélgica, ‘uma vez que existem pelo menos quatro edições da obra, duas tendo sido publicadas num intervalo de apenas um ano’.

Para quem não conhece Queda, diga-se que se trata de um texto que defende a superioridade dos tolos sobre os intelectuais na conquista amorosa. Segundo Hénaux, os tolos saberiam aceitar tudo o que as mulheres desejam e elogiá-las, enquanto os homens de espírito acabariam por irritar as mulheres com suas elucubrações a respeito do amor. É um texto que não deixa de ser interessante, mas que teria permanecido para sempre esquecido, não tivesse tido a sorte de uma tradução de Machado de Assis.

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Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003)