Nas últimas semanas, dois lançamentos editoriais importantes resgatam capítulos importantes da história da imprensa brasileira nos anos de chumbo. O primeiro traz o testemunho gravado em vídeo de dezenas de jornalistas. O segundo, de que falamos nas últimas páginas deste texto, é a narrativa, em livro, da luta do jornal Movimento, acompanhada de uma coleção de todos os números do jornal em DVD.
A história contada por quem a registrou. Essa é a tônica do projeto Resistir é preciso… – Os protagonistas desta história, que joga luz sobre o trabalho de 60 profissionais que fizeram a imprensa de oposição à ditadura entre 1964 e 1979, agora reunidos em 12 DVDs com resumos dessas histórias. O projeto, patrocinado pela Petrobras, nasce de um casamento recente. De um lado está o Instituto Vladimir Herzog, criado em 2009 para resgatar e preservar a memória brasileira das últimas décadas. O intuito da entidade, que rende homenagem a Vlado, jornalista morto pela repressão em 1975, é assegurar que o Brasil conheça a história e aprofunde a reflexão sobre os fatos desencadeados pelo golpe de 1964. Do outro lado está Ricardo Carvalho, veterano jornalista que estreitou laços com setores progressistas da Igreja Católica, em especial com dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo, para denunciar as violações aos direitos humanos. Desde a década de 1980, quando finalizou um documentário sobre a história da imprensa brasileira, Carvalho atenta para a questão.
A imagem que passou a simbolizar Vlado
No ano passado, o Instituto Herzog deu um passo importante em sua missão ao lançar a coleção completa do jornal Ex-, nascido em 1973 e fechado justamente após fazer uma edição inteiramente dedicada à morte de Vlado (que outros jornais da chamada imprensa alternativa não puderam registrar por estarem sob censura prévia). “A gente não pode perder a narração das pessoas sobre esse período”, afirma Ivo Herzog, diretor do instituto e filho do jornalista assassinado.
É exatamente o registro dos personagens a força do Resistir é preciso... Desde o começo deste ano, foram colhidos 58 depoimentos dos profissionais que fizeram a imprensa alternativa – na visão do projeto, os protagonistas. O material soma 106 horas, que foram editadas ao longo de menos de três meses para se transformarem em 12 DVDs com depoimentos de, no máximo, 15 minutos. Quem tiver interesse em contar com as entrevistas na íntegra, em média com duas horas de duração, deve entrar em contato com o instituto. “É impressionante como tem novidade, do ponto de vista jornalístico e do ponto de vista histórico”, surpreende-se Carvalho com o próprio trabalho, lançado no final de junho, quando Vlado faria 74 anos.
A cerimônia ocorreu na Estação Pinacoteca, ponto simbólico de São Paulo por abrigar um museu sobre a resistência no mesmo local em que militantes eram torturados – ali funcionou o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops). O salão esteve repleto de protagonistas da imprensa de resistência para celebrar o lançamento do projeto, o resgate desses trabalhos e, também, a história de Herzog. Paulo Vannuchi, ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos, pontua que o instituto tem sido importante para superar a imagem que passou a simbolizar Vlado, na qual aparece enforcado em sua cela – cena montada pelos militares na tentativa de vender a tese de suicídio. “É importante destacar essa reviravolta que a família e os amigos de Vladimir Herzog conseguiram dar. Ele, antes dessa imagem terrível, lutou, venceu. É isso o que importa.”
Publicações feitas por brasileiros no exílio
A festa contou também com a presença de José Gregori, ex-ministro da Justiça, de Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo, e de protagonistas como Sérgio Gomes, Juca Kfouri, Maria Rita Kehl, Franklin Martins e Paulo Moreira Leite, todos devidamente entrevistados pelo Resistir é preciso… A grande celebração do projeto serviu como uma demonstração da importância do resgate de uma imprensa que, em suas páginas, mostrou aquilo que não estava publicado na chamada grande mídia por uma série de razões. “A ditadura acabou docemente. Não houve ruptura. Precisamos dar um salto assumindo que houve 21 anos de uma ditadura, que isso precisa ser completamente desestruturado. Valorizar a resistência à ditadura é parte desse processo civilizatório”, argumenta José Luiz Del Roio, pesquisador e figura central para o projeto.
Del Roio foi uma espécie de guardião da imprensa de resistência. Ele foi um “herdeiro” dos arquivos de Astrojildo Pereira, fundador do Partido Comunista do Brasil. Jornais e revistas, além de atas mostrando a formação da sigla, registram as lutas do movimento operário nacional entre o fim do século 19 e as primeiras décadas do século 20. Em 1969, Del Roio cai na clandestinidade e começa a rodar o mundo. Cuba, Chile, Peru, França, Argélia e União Soviética são algumas das passagens desse militante, que participou da criação da Ação Libertadora Nacional (ALN), com Carlos Marighella. O ano de 1977 foi particularmente longo por conta da transferência desses arquivos, em risco no Brasil. Uma tonelada e meia de papel foi colocada dentro de um contêiner que, oficialmente, transportava a mudança de uma família. “Foi bastante terrível para meu coração porque esse navio demorou oito meses para ir de Santos a Gênova [Itália]”, conta. “Tínhamos noção de que se perdêssemos aquilo estaríamos perdendo um pedaço da história do Brasil. Não era justo. Não para nós. Para o futuro.”
Del Roio somou ao arquivo uma série de publicações feitas por brasileiros que viviam no exílio. Eram veículos de vida curta e com diferentes funções. Alguns tentavam manter informados, não sem considerável atraso, os que estavam longe do Brasil. Outros se dedicavam a analisar o contexto. E alguns eram publicados em outras línguas para denunciar, na Europa, as violações cometidas pelo aparelho repressivo brasileiro. A Fundação Giacomo Feltrinelli, em Milão, teve consigo todo esse material ao longo de 17 anos, batizado de Archivio Storico del Movimento Operaio Brasiliano. Em 1994, um acordo permitiu repatriá-lo. Agora, está no Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Cedem-Unesp), na região central paulistana, e disponível à consulta pública. Del Roio, casado com uma italiana, acabaria por se filiar, na Itália, ao Partido da Refundação Comunista, pelo qual foi eleito em 2006 senador pela região da Lombardia.
Imprensa alternativa, clandestina e do exílio
Aos arquivos do Cedem se somou uma série de outros para montar um painel dos veículos que ofereceram resistência ao regime. Há documentos na Biblioteca Nacional, no Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Essa documentação não apenas informa o que aconteceu com as pessoas durante a ditadura, como mostra a importância de preservar aquilo que ateste as ações do Estado. As boas e as más”, analisa Carlos de Almeida Prado Bacellar, coordenador do Arquivo Público do estado de São Paulo, que está sendo analisado pelos integrantes de Resistir é preciso…
Outro braço do projeto também terá poucos meses para concluir um grande trabalho. Trezentos títulos da imprensa alternativa estão sendo procurados, copiados e registrados em um portal que será abrigado na página do Instituto Herzog. Tudo será microfilmado para garantir que não se perca com o tempo. Os jornais estarão disponíveis ao público até o fim do ano em uma base de dados que vai permitir a busca virtual por veículo e por profissional da imprensa. “Preservar a memória, possibilitar uma reflexão, contribuir para a discussão da verdade”, resume o jornalista Vladimir Sacchetta, coordenador desse trabalho.
Somada aos vídeos, essa outra “ala” dos projetos dará espaço a uma melhor compreensão sobre como era o trabalho desses profissionais – não só jornalistas, mas diagramadores, chargistas e até integrantes de departamentos financeiros. Os coordenadores de Resistir é preciso… optaram por dividir a produção do período em três blocos: imprensa alternativa, clandestina e do exílio. A primeira era aquela que existia de maneira legal ou semilegal e que fazia, grosso modo, um contraponto à mídia convencional. A segunda, no geral, estava ligada a partidos, sindicatos ou associações de base e era rodada em pequenas quantidades. A terceira era, como já se viu, voltada para quem estava no exterior.
História da sociedade
As entrevistas de Resistir é preciso… revelam a dificuldade em lidar com a repressão e com a censura. Esses veículos anteciparam debates importantes para o futuro do Brasil. Direitos trabalhistas, reforma agrária e violência no campo, a formação do MDB, o custo de vida para os pobres e até as primeiras escorregadas éticas de Vicente Matheus, folclórico ex-presidente do Corinthians. A última das 24 edições de O Varadouro, um jornal do Acre, poderia ser publicada hoje. “A maconha joga milhares de jovens na marginalidade e nas garras da polícia (…), ao mesmo tempo [em] que enriquece muita gente ‘da alta’ que, por trás das bocas, comando o tráfico”, pontuava o veículo em um debate sobre a descriminalização.
Outras publicações discutiram a questão de gênero em meio a uma sociedade comandada por militares pouco abertos à participação feminina. Houve, ainda, a criação de O Lampião, primeira publicação voltada à comunidade LGBT, em 1978. Conquistar a confiança dos jornaleiros foi tarefa complexa. Aguinaldo Silva, um dos responsáveis pelo veículo, conta que todos ficaram enfurecidos quando descobriram que estava sendo editado um jornal “para veado”, e foi preciso um longo trabalho de convencimento. “No final de quatro meses, nós estávamos tomando cachaça de madrugada com os caras nos botequins, conversando sobre vários assuntos, e o jornal estava exposto nas bancas”, afirma o hoje autor de novelas em um dos depoimentos de Resistir é preciso….
Esses vídeos ganharão nova finalidade com a edição em documentários a serem exibidos em televisão e, possivelmente, um em formato para cinema. Até outubro deste ano, Carvalho espera lançar um livro contando as histórias de capas dos jornais de resistência, explicando o momento histórico e o contexto em que foram produzidas. E será realizada em 2012 uma exposição no Centro Cultural Banco do Brasil, com sedes espalhadas por algumas das capitais do país. “Para o cidadão exercer a cidadania de maneira plena e consciente, precisa entender a história da sociedade em que ele vive”, analisa Ivo Herzog.
Movimento, jornal dos jornalistas
Outro lançamento importante para a história da imprensa de resistência, ocorrido no início deste mês, é o livro Jornal Movimento – uma reportagem, do jornalista Carlos Azevedo, com patrocínio da Petrobras. Nascido em 7 de julho de 1975 e publicado até 23 de novembro de 1981, Movimento reuniu nomes como Chico Buarque, Fernando Henrique Cardoso, Orlando Villas Bôas, Alencar Furtado, Elifas Andreato, Chico de Oliveira e Flávio Aguiar entre os colaboradores ou integrantes do conselho editorial.
O trabalho de Carlos Azevedo (que é também um dos protagonistas do projeto Resistir é preciso…), com reportagens de Marina Amaral e Natalia Viana, baseia-se em documentos, entre eles dos próprios jornais, e em entrevistas. O leitor terá acesso a um DVD com as 334 edições do semanário. Azevedo conta que os personagens dessa história aceitaram falar com muito prazer ao longo de um ano de coleta de informações – foram outros seis meses para organizar e redigir o texto. Tonico Ferreira, um dos que ficaram no semanário ao longo de quase toda a existência, falou pela primeira vez a respeito do período.
“O livro procura contribuir para retirar esse debate do emocional. Não acho que seja a palavra final a respeito, mas damos um passo adiante porque apresentamos os documentos”, analisa o autor, que é também um personagem da trajetória de Movimento. Azevedo passou quase uma década como clandestino. Suas colaborações eram enviadas por sua mulher, que se encontrava com a mulher de Raimundo Pereira, o editor de Movimento, para fazer uma troca de sugestões de pauta e de entrega de material. Ao mesmo tempo, Azevedo era responsável por jornais clandestinos.
Um dos arquivos importantes para a busca de informações foi o do Instituto Sergio Motta. Aquele que viria a ser ministro das Comunicações de Fernando Henrique Cardoso foi um rigoroso organizador da parte financeira. Segundo o livro, Motta sugeriu que se desistisse da ideia de fundar uma cooperativa, argumentando que o melhor para a sobrevivência financeira do semanário seria uma empresa de caráter sociedade anônima. Com isso, foi possível “passar o chapéu” e recolher contribuições financeiras que foram as mantenedoras do jornal. Hélio Pellegrino, Dorrit Harrazim, Ricardo Kotscho, Paulo Sérgio Pinheiro, Rui Falcão e Eduardo Suplicy são alguns dos acionistas, pessoas que compraram uma cota de participação a fundo perdido, sabendo que não teriam retorno financeiro.
Um ponto fundamental para angariar recursos era que a turma de Movimento tinha um bom histórico. A espinha dorsal do grupo eram jornalistas com passagens por veículos importantes e que haviam fundado, no Rio, o Opinião, financiado pelo empresário Fernando Gasparian. Ao mesmo tempo, uma equipe tão credenciada atraiu os olhares dos militares e o semanário já nasceu sob censura prévia – ao longo de três anos, perderia 40% de sua produção, ou 4,5 milhões de palavras.
Os responsáveis pelo livro ouvem diferentes fontes a respeito do impacto que esses cortes tiveram sobre as vendas. Outro aspecto é uma contextualização do período, acompanhando as movimentações na caserna e os reflexos que isso tinha sobre a produção, tanto do ponto de vista jornalístico quanto de vendas. Quando cai a censura prévia, começam a ocorrer ameaças contra os jornaleiros que vendem a imprensa alternativa – um novo baque para Movimento e para os demais alternativos. “O jornal foi desbravando os temas jornalísticos que não eram cobertos pela grande imprensa. Esse papel pioneiro foi fundamental para quebrar tabus em torno de certos assuntos”, pondera Azevedo. Para ele, à medida que se avança na redemocratização, vão surgindo as tendências que refletem os projetos de Brasil. E Movimento, por uma série de razões, fecha as portas.
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[João Peres é jornalista]