Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A liberdade e o direito com responsabilidade

Como sói acontecer após cada tragédia envolvendo a atuação da polícia, ao serem elaboradas as ‘análises’ na busca de fixação de responsabilidades, em geral, com muita facilidade, apontam-se a os erros da polícia.

Desde o regime de exceção, dos anos 1960-80, as disfunções da polícia passaram a ser preocupação da classe média e de parte dos formadores de opinião, talvez por terem começado a fazer vítimas entre os integrantes daquela parte da sociedade. A polícia ineficiente, violenta, mas a serviço do poder local, quando só atingia o ‘andar de baixo’, a bem da verdade, não era alvo de preocupação da parte da sociedade com voz. Um policial corrupto era útil, na medida em que não causaria problemas se o filhinho-do-papai fosse apanhado em situação delituosa, ou quando o próprio genitor fosse apanhado em estranhas transações. Era o momento do famoso ‘sabe com quem está falando?’

Desde então, todo meliante é tratado como se fosse um Vladimir Herzog, e todo policial como um torturador do DOI-CODI.

Em vários episódios, para evitar que a violência policial fosse usada como recurso de rendição ou de execução, os infratores da lei passaram a chamar a imprensa e/ou representantes da igreja e das entidades de defesa dos direitos humanos, que passariam a vigiar a ação policial. Lembro-me do seqüestro de Abílio Diniz, quando os seqüestradores invocaram a presença do cardeal D. Evaristo Arns e profissionais da imprensa – entenda-se reportagens de TV –, quando se tentou dar caráter político ao seqüestro.

O caso do ônibus 174, no Rio, já convertido em documentário e filme comercial, é outro episódio acompanhado ao vivo pela TV, quando se assistiu o atirador da polícia matar a refém e não o seqüestrador, morto depois pela polícia, quando já desarmado.

Interceptações telefônicas

Após o desfecho do cárcere privado em Santo André, transmitido ao vivo pelo mesmo tempo em que durou, com a morte da refém Eloá, vieram os tais ‘consultores de segurança’, o antigo repórter policial, e um enorme contingente de palpiteiros, que se auto-atribuem denominação pomposa, a apontar os erros da polícia, que seria a responsável pelo óbito da refém, morta por seu ex-namorado.

Por força da prática de chamar a imprensa e as emissoras de TV – pois a imagem é tudo, como lembrado pelo jornalista e professor Eugênio Bucci em entrevista publicada no caderno ‘Aliás’ (pág. J 4) do jornal O Estado de S.Paulo (domingo, 26/10), a melhor matéria que li sobre o assunto – o ‘show’ foi explorado, dando espaço a entrevistas com o seqüestrador, filho amoroso, bom jogador de futebol, sem passagem na polícia, mas que demonstrou não ter tido dificuldade em comprar armas e munição, tendo atribuído à impunidade a facilidade em adquiri-las, quando indagado a respeito pelo entrevistador.

Toda a negociação foi acompanhada minuto a minuto, e da mesma forma que víamos as reportagens pela TV, o seqüestrador também as assistia, podendo articular seus próximos passos. Mantendo a atenção de toda a mídia por cerca de 100 horas, teve o domínio da situação todo o tempo. Chegou a fazer disparos a esmo, colocando em risco outras pessoas, sem que a polícia reagisse, e exibiu-se por trás da refém, apontando a arma para sua cabeça. Mesmo havendo previsão legal da legítima defesa de terceiro (art. 25 do Código Penal), a polícia não atirou no seqüestrador.

Todavia, a Polícia Militar de há muito é a ‘Geni’: se atirasse, não faltaria quem criticasse a violência como desnecessária, pois não esgotadas as negociações. Entidades de defesa dos direitos humanos acusariam a polícia de execução sumária, sem julgamento por juiz competente, violando o direito à ampla defesa e o princípio da dignidade da pessoas humana etc., etc.

Outros mencionaram os equipamentos dos quais poderia fazer uso a polícia para saber, exatamente, a posição do seqüestrador e das reféns, para melhor planejar a invasão do local do cativeiro, e que não foram utilizados. Sabemos todos como mal-equipada é a polícia. Será que não haveria ninguém que pudesse oferecer à polícia tal equipamento, naquele momento, estimulando a Secretaria de Segurança a adquiri-lo futuramente?

Mas pela forma como certos profissionais do direito se insurgem contra o uso das interceptações telefônicas (entre eles o presidente do Supremo Tribunal Federal), que se mostraram tão eficientes, bem possivelmente alguém argüiria a violação da intimidade do seqüestrador…

Direitos autorais

O triste episódio, que ceifou a vida de uma menina, teve como personagem central o seu assassino, mostrado pela imprensa como vítima: alguém com carências familiares, sem escolaridade, um ‘bom moço’… A(s) vítima(s) real(ais) era(m) a(s) refém(ns)! Outra confusão de papéis, tão freqüente desde que se passou a tratar infratores da lei como vítimas.

A exibição, ao vivo e em cores, do cárcere privado de Eloá fez com que a menina Nayara até se dispusesse a retornar ao local do cativeiro. Parece que a presença da TV passava a sensação de segurança, que nenhuma violência pudesse acontecer, pois tudo tomava ares de ficção. Descuidaram-se, pois Lindemberg é quem estava em reais condições de perpetrar violência, pois teve o domínio não só da refém, mas da polícia – temerosa de que sua ação fosse incriminada – e da imprensa de entretenimento.

Aquela situação criminosa virou espetáculo barato e fácil para jornais televisivos e programas que exploram o denominado ‘mundo-cão’, que transformam tudo e a todos em ‘celebridades’.

Fico a imaginar se a polícia tivesse atirado e ferido ou morto a refém, como ocorreu em 1990, na capital de São Paulo, quando seqüestrador e refém foram mortos por força de disparo feito por um atirador da polícia. Imagino que os policiais, que acompanharam aquelas 100 horas de tensão, devem ter se lembrado de todas essas ocorrências. E as emissoras de TV, tal qual abutres esperando o ápice, a cena de sangue.

O tão triste desfecho, a morte da garota Eloá, foi estimulado pela sensação de poder experimentado por Lindemberg, que se viu como ator central da novela e, por outro lado, protegido pela própria presença da imprensa. Matou Eloá e está preso, mas em segurança para não sofrer violência de outros presos, pois sob os cuidados do Estado deve ter preservada sua integridade. Se processado, com bom comportamento, cumprindo um sexto da pena, poderá sair da prisão – se antes um habeas corpus não anular todo o processo e colocá-lo em liberdade – com tempo de refazer sua vida, pois ainda é muito jovem. Quem sabe ainda não venda sua história para algum folhetim…

Situação de risco

Não estou a defender a violência policial como forma de solução dos problemas de criminalidade, mas a ponderar se a imprensa não poderia exercer um certo controle da atividade policial, em tempo real, mas não transmitindo ao vivo. Não poderia se pensar num acordo/pacto da imprensa com as atividades de segurança, para as situações nas quais há reféns, de só serem exibidas as imagens após o encerramento do caso? Lembro que a imprensa na Espanha, a partir de um certo momento, não noticiava as ações terroristas, pois é a divulgação que dava força ao movimento contrário à lei e contra a segurança de inocentes.

Estou a imaginar se não seria viável que o direito à informação fosse acompanhado de outras cautelas para que não fossem violados outros direitos, como o direito de serem protegidas as vítimas, por sua situação de risco. Será que a liberdade de imprensa e o direito à informação não podem ser exercidos com responsabilidade?

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Procuradora regional da República em São Paulo