Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A linguagem da exceção

LTI – A Linguagem do Terceiro Reich, de Victor Klemperer (1881-1960), até pode ser tachado como mais um livro sobre o nazismo, mas deve-se reconhecer que ele ocupa um lugar único nessa categoria. A razão da singularidade está na própria trajetória de Klemperer: professor universitário especializado no iluminismo francês, filho de rabino, convertido ao luteranismo e que passou a quase totalidade dos 12 anos de nazismo na Alemanha sem precisar esconder-se nem ter sido levado a um campo de concentração.

O ‘privilégio’ se explica pelo fato de ele ser casado com uma ariana, o que, pelas leis de Nuremberg, lhe dava a possibilidade de viver nas ‘Judenhäuser’ – as casas de judeus –, nas quais as pessoas eram submetidas a um regime brutal de trabalho escravo e proibições, mas tinham a chance de sobreviver.

Foi só no finzinho da guerra, após o fatídico bombardeio aliado a Dresden, cidade onde habitava, que o autor decidiu aproveitar o caos que se seguiu e o previsível colapso do nazismo para desfazer-se de sua estrela amarela e viver clandestinamente como se fosse ariano. Privado de livros e de quase tudo nos piores anos, Klemperer dedicou toda sua energia intelectual a escrever seus diários, hábito que cultivava desde 1919 e manteve até 1959. Peter Gay, biógrafo de Freud, o considerou o melhor escritor de diários em língua alemã.

Foi assim que Klemperer nos legou um meticuloso registro de tudo o que ocorreu à sua volta entre a ascensão e a morte de Adolf Hitler (1889-1945). Filólogo por formação, deu ênfase à questão da linguagem, de como a ideologia nazista contaminou o idioma alemão e as pessoas – incluindo judeus – que dele se serviam.

Passada a guerra, Klemperer optou por não publicar seus diários (que só ganharam edições nos anos 90, mais de três décadas após a morte do autor), preferindo usar os apontamentos para redigir a ‘LTI’ (‘Lingua Tertii Imperii’, o título original é em latim). Vale observar que a bem feita e bem anotada edição brasileira tomou o cuidado de conservar o texto alemão nas passagens em que isso era relevante.

O olhar de um judeu

De maneira bastante hábil, Klemperer foi capaz de dar um sentido histórico às suas impressões, sem perder o aspecto anedótico, o valioso testemunho de um dos poucos judeus que puderam acompanhar de dentro e até o fim a transformação da Alemanha sob o regime nazista.

Sua perspectiva única nos permite tomar conhecimento de detalhes que passariam despercebidos pelo historiador, como a norma que proibiu os judeus de manterem animais de estimação – o que resultou no sacrifício de milhares de cães, gatos, passarinhos etc.

Após a guerra, Klemperer e sua mulher, Eva, voltaram para Dresden, onde ele se tornou destacada figura do mundo cultural da Alemanha comunista. As análises da linguagem feitas por Klemperer são absolutamente pertinentes e nos remetem mais para o campo da psicologia social do que o da linguística propriamente dita.

Um exemplo curioso é o da obsessão de Hitler – e, por conseguinte, de seus asseclas – pelo ineditismo e pela eternidade: ‘qualquer insignificância que servisse aos propósitos do regime passava a ser um ato `histórico´. Qualquer discurso que o Führer proferisse se tornava ´histórico´, mesmo que ele repetisse cem vezes a mesma coisa (…) Eram `históricas´ a vitória de um automóvel de corrida e a inauguração de uma estrada, de cada estrada e de cada trecho de estrada’.

A semelhança com o discurso de personagens contemporâneos não chega a incomodar. Embora a mania pelo ‘histórico’ possa fazer parte da linguagem totalitária, na análise de Klemperer ela denota antes um desejo do governante de mostrar-se seguro da perenidade de suas instituições.

Para o autor, o veneno específico do nazismo vem da combinação do antissemitismo racial (por oposição ao de matriz religiosa) com o romantismo: ‘Pois tudo o que interessa ao nazismo já está contido, em germe, no romantismo: o destronamento da razão, a animalização do ser humano, a exaltação da ideia de poder, do predador, da besta loura…’.

Por esses e muitos outros insights e análises, LTI é um recurso único e bastante valioso para todos aqueles que buscam entender como e por que um dos mais civilizados e cultos países da Europa caiu no abismo em que caiu.

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Da equipe de articulistas da Folha de S.Paulo