Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A literatura do divã

Depois de concluir a leitura, em sequência, de quatro livros da promissora safra da nossa nova literatura, todos escritos por autores jovens e de extremo talento, não foi mais possível fugir à elaboração desta análise. Os títulos são: Biofobia, de Santiago Nazarian, Ed. Record, 2014; As fantasias Eletivas, de Carlos Henrique Schroeder, Ed. Record, 2014; O inventário das coisas ausentes, de Carola Saavedra, Ed. Cia das Letras, 2014; e Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera, Ed. Cia das Letras, 2012.

Não, não são obras descartáveis. Seria inútil dissertar sobre literatura de entretenimento, como denominam os defensores do gênero, se não observarmos nela a sincera experiência com a linguagem, nem a paixão pela palavra afinada com a ideia. A palavra, instrumento primeiro e venerado pelo escritor. A literatura de entretenimento, como se apresenta, guarda somente uma ansiedade mercantil. Essa aspiração quase intestinal pelo sucesso imediato sufoca as virtudes sociais, culturais e estéticos que perenizam a obra de arte.

Por que este artigo? Ele surgiu quando se fez possível compreender uma assombrosa e recorrente semelhança temática entre os livros citados. Neste século 21, num mundo onde todos estamos conectados pela Internet e pela vertiginosa evolução da tecnologia, os autores discursam sobre a solidão, sobre o autoexílio voluntário ou compulsório dos protagonistas, além de agregarem aspectos autobiográficos à trama, pequenos conflitos familiares e um imenso vazio existencial. É fascinante o destaque comum desses elementos em autores tão jovens e que caminham pelo começo da carreira literária. Reflexo do nosso tempo?

“Quem ainda estará lendo daqui a um século?” (Biofobia, Nazarian, pág. 66).

A questão, lançada por Santiago Nazarian, nos obriga a imaginar que um possível apocalipse literário estará mais associado ao que escrevemos hoje, somado à precária formação dos leitores e à estranha obsessão dos escritores contemporâneos com a migração imediata do texto para o audiovisual. Tudo isso sucateia muito mais a narrativa do que o caráter obsoleto que a literatura possa adquirir no futuro. A verdade explícita é que vivemos um momento oco na criatividade e na alma das coisas.

Semear o imprevisível

“Gantra: Os jovens autores brasileiros… ‘Peraí, deixa eu ver esse’, disse André. Pegou o volume, verificou os autores: Daniel Galera, Michel Laub, Emílio Fraia, Thomas Schimidt…. Nunca tinha ouvido falar. Fogo.” (Biofobia, Nazarian, pág. 139).

A sentença decretada pelo personagem, que lança às chamas autores que receberam reconhecimento, revela um sintoma e não uma ação de rebeldia vulgar. Sintoma de quê? Uma pergunta que ficará aberta para a livre interpretação. A literatura não é feita para nos dar retorno, mesmo quando nos dá sentido.

“… quando o amor acaba resta apenas a ficção” (O inventário das coisas ausentes, Saavedra, pág. 65).

“… tenho vontade de lhe dar um soco, nunca dei um soco em alguém, destruir, desfigurar um rosto, a mão coberta de sangue, como se a violência física pudesse dar vazão a outra coisa, uma violência muito mais arraigada”. (O inventário das coisas ausentes, Saavedra, pág. 90).

Vivemos o êxtase absoluto do materialismo, o amor é uma lenda urbana, miragem de uma Hollywood anacrônica. A disputa, a angústia pela visibilidade e a exigência implacável pelo consumo fugaz são as forças que erguem as bases da realidade. O sentimento aflorado é o de romper com a civilidade, semear o imprevisível. Basta olharmos o caos ao redor para termos certeza disso.

“Escrevo: … Nina não se sustenta em si mesma, precisa de ossos, uma estrutura que lhe dê concretude. Sem essa estrutura ela é apenas o espaço vazio, essa constante incerteza. Escrevo” (O inventário das coisas ausentes, Saavedra, pág.46)

O resgate do humano

Dos quatro autores evidenciados, surpreende constatar que a construção linguística melhor elaborada, com traços de louvável sofisticação e possível influência de Clarice Lispector, se encontre no texto de Carola Saavedra, uma chilena radicada no Brasil e que escreve em português.

Daniel Galera não foge do padrão da vitoriosa literatura brasileira produzida por jovens. Seu livro de maior sucesso (Barba ensopada de sangue) passeia pelas paisagens invernais e remotas de Santa Catarina, rumina incansavelmente sobre o desterro do principal personagem. A história direciona o fôlego final para a descrição de uma selvagem disputa em que o protagonista assume postura passiva e supostamente heroica diante da violência irracional.

Em todos esses livros não há amor. Prevalece neles um desajuste, uma procura que, invariavelmente, terminará em nada. São espelhos do nosso espírito.

“A fotografia quer congela um instante, e a literatura, recriá-lo, e ambas têm essa capacidade de permitir uma outra visão das coisas. Meu interesse pela fotografia começou justamente para tentar entender um pouco mais os processos literários; afinal, criar e contar histórias é desvelar imagens” (As fantasias eletivas, Schroeder, pág. 66).

É belíssima a definição de Carlos Augusto Schroeder que, por tabela, nos conduz a outro fenômeno: a atual sublimação da imagem sobre a escrita. Vemos com temor a agonia de alguns autores em anunciar o mais rápido possível que suas obras irão se transformar em filmes e roteiros para cinema ou TV. Escrevem com a intenção de materializar e não para “desvelar imagens” como ensina Schroeder. Tratam a literatura como o supérfluo que precisa ser transmutado em imagem concreta. O cinema está para jovens autores como estava a Pedra Filosofal para os alquimistas.

Por outro lado, o mercado editorial continua incentivando prioritariamente a produção pop ou a tradução de épicos fantasiosos, romances de erotismo tosco, dramas de amor com exagero de açúcar e outros conteúdos rasos. Querem escapar dos estilhaços do realismo. A alienação é que sugere potencial de comércio. Com isso, a maioria dos nossos autores neófitos se comporta como uma horda de deprimidos que preferem dormir e sonhar a ter que encarar os espinhos manchados de sangue e miséria que povoam o nosso universo contemporâneo.

Num território dominado pelos piores valores de um capitalismo desnorteado, a futilidade também é um fator inevitável.

Em todos os esses livros, o enredo é tênue, quase débil. O aspecto psicológico, o tom confessional e fortes doses de melancolia entremeiam os romances. O relevante, em qualquer caso, é que a arte continua traduzinho o que somos e prossegue compondo a curta mensagem que nasce das nossas entranhas. Buscamos alguma espécie de redenção, o resgate do humano na interconexão solitária, mas não há esperança… Não há.

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Alexandre Coslei é jornalista e escritor