Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A literatura jornalística de Truman Capote

Poucas narrativas causaram tanto impacto como a obra magna de Truman Capote, A Sangue Frio. Agregada ao panteão de reportagens célebres do jornalismo literário, a história da família assassinada no Kansas em 1959 inaugurou, a título do próprio autor, o romance de não-ficção, mais uma modalidade dentre as que marcam as fronteiras entre jornalismo e literatura, apesar das acusações de que parte da trama teria sido recriada.

Capote já tinha sido reconhecido por seu livro ficcional Boneca de Luxo e precisava de uma força motriz para voltar a escrever com vivacidade. Para concluir A Sangue Frio, foram cinco anos de uma imersão que o fizeram adentrar um mundo de sentimentos envolvendo uma cadeia interminável de personagens, de investigadores a amigos íntimos das vítimas. E conseguiu fazê-lo sem necessariamente se colocar textualmente no meio da narração, como costumam fazer vários escritores que se embrenham na tentativa de produzir reportagens ‘de autor’.

O relato segue uma dinâmica sem perder de vista a linearidade. Revezam-se dois campos de ação até que o crime se consuma: o dia-a-dia dos Clutter em contraponto aos planos de Perry e Dick. Cenários distantes geográfico e psicologicamente ligados à idéia de que o destino já está traçado. ‘Mais ou menos seiscentos quilômetros a leste de onde Arthur Clutter se encontrava naquela ocasião, dois jovens dividiam uma mesa no Eagle Buffet, um restaurante de Kansas City’ (CAPOTE, 2006, p. 122).

Imersões psicológicas

Como pode ser observado a seguir, Capote via as minúcias de seus personagens, coisas simples como a hora de acordar, as crenças e o comportamento diário.

‘Normalmente, as manhãs do sr. Clutter começavam às seis e meia; era geralmente despertado pelo clangor dos baldes de leite e pela conversa sussurrada dos dois rapazes que costumavam trazê-los, filhos de um empregado chamado Vic Irsik’ (CAPOTE, 2006, p. 26).

Mais que descrever os detalhes de um acontecimento mórbido e comovente, o autor viajou no íntimo de seus entrevistados, fazendo das interpelações verdadeiras escutas psicológicas. Como exemplo de sua capacidade de envolver outros círculos de personagens, pode ser citado John Senior, que em certa ocasião chegou a ser expulso bêbado da propriedade dos Clutter e que por sua desavença atraiu para si desconfianças com relação ao homicídio. ‘John Senior dissera a um conhecido: `Sempre que eu penso naquele filho-da-mãe [Sr. Clutter], as minhas mãos ficam ansiosas para estrangular o homem´’ (p.119).

O texto capotiano é caracterizado pelo uso das aspas ocultas, o discurso indireto livre, elementos secundários e metáforas inusitadas que deixam transparecer um contato muito intenso com o objeto de investigação. Isso diz respeito até a momentos oníricos, como o do investigador Dewey, que teria visto durante um sonho os assassinos em um bar – evidência da paranóia em que o caso já estava se tornando.

Numa dessas descrições, Capote conta uma cena em que Perry, após o assassinato, chega a um hotel na cidade de Olathe. É notável o extremo cansaço físico e psicológico resultante da culpa pelo crime. ‘Perry dormia, com um rádio portátil cinzento murmurando a seu lado. Além de ter tirado as botas, não se tinha dado ao trabalho de mudar de roupa. Tinha simplesmente caído de cara na cama, como se o sono fosse uma arma que o tivesse atingido pelas costas’ (p. 106).

E mais que isso, transcreve o comportamento do subconsciente de Perry, rememorações do crime que se transformavam, por vezes, em ‘um clarão azulado explodindo num quarto escuro, dos olhos de vidro de um grande urso de brinquedo – e vozes, especialmente algumas palavras, começavam a incomodar sua cabeça: `Oh, não! Por favor! Não! Não! Não! Não! Pare! Oh, por favor, não faça isso, por favor´’ (p. 147).

Sangue e um urso de pelúcia

Contextualizando, Capote cita homicídios como o dos Clutter entre os anos 1950 e 1960 nos EUA e atenta para impressões coletivas em torno do assassinato. Uma delas é a desconfiança gerada entre os moradores da pacata Holcomb que jamais imaginariam na exemplar família um potencial alvo para um homicídio tão grotesco e aparentemente sem sentido – afinal, quem mataria por cinqüenta dólares?

‘Na ocasião, não foram ouvidos por ninguém na Holcomb adormecida – quatro disparos de espingarda que, no fim das contas, deram cabo de um total de seis vidas humanas. Depois deles, porém, os moradores do local, até aquele momento tão pouco desconfiados uns dos outros que quase nunca se davam ao trabalho de trancar suas portas, passaram a revivê-los vezes sem conta em suas fantasias – aqueles disparos sombrios que produziram clarões de suspeita à luz dos quais muitos velhos vizinhos começaram a olhar-se de um modo estranho e a se comportar como estranhos’ (CAPOTE, 2006, p. 24).

Oportunamente, Truman Capote aplica um desvelo frio e coerente que ratifica a gravidade do ato. E isso necessariamente não o faz se direcionar a detalhes aparentemente tão chocantes como o modus operandi dos assassinos, mas sim, a pequenas coisas que dentro de um contexto tão conturbado tornam-se arrepiantes. ‘(…) roupas de cama e colchões empapados de sangue, um tapete, um urso de pelúcia’ (p.109).

Os efeitos do homicídio

A teia tão perturbadora de detalhes e dúvidas, viagens dentro dos pensamentos dos protagonistas, em busca de motivos plausíveis para aquilo que não tinha explicação, incorpora momentos únicos de reflexão. Esboça-se um clímax durante pensamentos existenciais soltos por Andy Erhart, um amigo da família assassinada, diante da fogueira que naquela hora queimava pertences e destroços das vítimas. ‘Como podia ser que tanto esforço, tanta virtude, fossem de um dia para o outro reduzidos a essa fumaça rala que subia em direção ao céu amplo e aniquilador?’ (p.111).

Tomando para si as coisas que ouvia – dizem que conseguia apreender mais de 90% dos diálogos –, Capote chegava a ser contundente contra os assassinos, mesmo com o envolvimento íntimo tido com eles. Vide a expressão ‘tipo de fúria psicopata necessária para cometer esse tipo de crime’ (p.115).

E mesmo com um desfecho já conhecido por todos, ele consegue manter o ar de suspense, forjar a sensação de que a trama está apenas no princípio. ‘(…) ele [investigador Alvin Adams Dewey] tinha uma opinião sobre quantos eram os assassinos, um ou dois, mas preferia não revelá-la’ (p. 113).

Conclui-se que a grandiosidade da história do Kansas está em revelar os efeitos que o homicídio causou e, mais que isso, produzir uma análise transfigurada em um prognóstico tão negativo que vislumbra gerar uma vontade coletiva de que isso nunca mais aconteça.

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Jornalista, Franca, SP