Este começo de 2006 vem sendo pródigo em reconhecimento de fraudes na literatura. Primeiro foi o caso, melhor dizendo, ocaso de JT Leroy. O escritor, descobriu-se, era mulher. Até aí, nada de mais. Transformações assim ocorrem em todo o mundo há séculos, fora e dentro das artes e por muitas artes. Gênero de sexo jamais foi um impedimento para a qualidade do que se escreve. Pode até ser um referencial de bom nível, quando nos lembramos da afirmação ‘Madame Bovary sou eu’, de Flaubert, que assim se defendeu, sabemos, em outro contexto.
Pero melhor que essa descoberta do sexo do autor, da pessoa física do autor, foi o saber que o escritor JT Leroy nem mesmo escritor era. Sim, havia uma pessoa que comparecia a entrevistas, que dava autógrafos, que atendia a telefonemas, cuja vida gerou um filme em Hollywood, Maldito Coração, que, maldita delação, era na verdade Savanahh Knoop, modelo inexpressiva, que jamais escreveu uma só expressiva linha.
Pero os livros, os ‘seus’ livros, existiam. Se ‘JT Leroy’ não era quem se dizia ser, alguma pessoa era, queremos dizer, havia alguém que em seu lugar escrevia. E, pelo visto, pelo que se dizia na crítica especializada, ‘especializada’, dos Estados Unidos à Europa, ‘Europa’, dos Estados Unidos ao Brasil, ‘Brazil’, os seus livros, de tão bons, nem precisavam daquela figura magrinha, deliciosamente mignon, de óculos escuros, peruca e chapéu, um Michael Jackson mais belo e radical, que causava espanto e loucura pelas respostas, inteligentes, criativas, nas rodas de imprensa. ‘Este é meu alter-ego para que meu outro lado continue anônimo’, dizia, e os repórteres suspiravam, ah, que escritor brilhante!
Ossos de pênis de guaxinim
Ossos de pênis de raccoon, de guaxinim, em português mais próximo desse ‘artefato’, JT usava como colar, como prova de que sua vida se expressava na realidade do que escrevia. Segundo ‘ele’, este pênis de raccoon era amuleto entre as prostitutas do Sul dos Estados Unidos, prostituta como ‘ele’ certo dia fora, conforme a obra máxima de JT, Sarah.
‘Um ex-prostituto salvo pela palavra’, este era o belo título que anunciava o texto de O Estado de S.Paulo (edição de 2/7/2005), quando os ossos do pênis do guaxinim eram um regalo enviados aos críticos de plantão dos periódicos. E o Estadão não estava só em sua lírica. De Norte a Sul, da Europa aos Estados Unidos, melhor dizendo, na ordem inversa, dos Estados Unidos para todo o mundo globalizado todos se deliciavam com as fortes palavras do relato da prostituição, crua, real, do escritor à beira do mal, quem sabe, da Aids. Boy andrógino, comparavam-no, sintam o nível, a Oscar Wilde, um wilde sem arte, sem sarcasmo, sem espírito, que importa – JT era a vida expressa em um novo ritmo…. de marketing, mas que assim não parecia, pois que esta era a sua maior e melhor arte.
Esse mundo tem a sorte de a ressurreição não existir. Se ela houvesse, se ela fosse possível, a dignidade de Baudelaire, o gênio de Baudelaire, a pessoa de Baudelaire jorraria um tsunami de vômito. Verde, caudaloso e com ímpeto para naufragar em toda a terra essa mistificação de mercadoria que invadiu o mundo da arte. A ‘obra’ desse Leroy seria a narração de suas memórias de prostituto na infância, a história de sua mãe, Sarah, uma garota de programa – Padre nosso que estais nos céus, por que tamanha infelicidade? – e ele, o autor, teria sido vestido como mulher desde pequeno. Alcançaram Oscar Wilde? Leroy teria ainda servido de Lolita para motoristas de caminhão, teria experimentado muitas drogas, porque um acréscimo pornográfico nunca é pouco, e, para melhor sorte de best seller, tomava hormônios femininos.
E o autor, e o autor?, queremos dizer, se isso existe ainda, onde o verdadeiro autor, onde está o verdadeiro e de verdade autor, um ser de carne e osso, que come, arrota e defeca a obra dos seus livros? Bom, esse pervertido, esse acidente literário era e é a senhora Laura Albert, uma, provou-se, imaginosa cantora de rock. Isto, por supuesto, se ela própria não for a mais recente personalidade de outro ghost-writer. Quem nos garante? Talvez os críticos, os escritores, os periodistas que saudaram a qualidade artística do livro Sarah e disso não se arrependem, mesmo diante dessa ‘nova’ realidade. Sentem-se todos incapazes de olhar com verdade para essa farsa, e dizerem, e se dizerem, eu, pecador confesso, nesse vale de lágrimas… todos se dizem que a burla é do autor, porque a obra, sim, porque a obra é boa e verdadeira, é bem escrita, tem lances de gênio, e assim dizem com o ar de quem bebe um café sem açúcar, sem adoçante, um café velho e muito amargo, mas com a cara mais cínica e lisa que conseguem. Provam-no, sorriem, e comentam: ‘Really, its wonderful’.
Ossos de um milhão
Apertem o cinto, porque vamos voar. Vejam: ‘Um dilacerante livro de estréia… Ele escreveu o Guerra e Paz da dependência química… É implacável ao mergulhar num mundo em que as personagens…. Este é o livro mais abrangente sobre dependência produzido por essa geração – que domínio da escrita, que honestidade poética …’.
Calma, temos piedade, não continuaremos a citar, porque nesse ritmo ultrapassaremos as nuvens muito além de Cervantes e Shakespeare. Escrevemos voar, e não foi por acaso. Porque, se nos permitem uma honesta citação de vigor poético, do mundo da publicidade, citaremos:
‘Imagine acordar num avião. Você não tem idéia de onde esteve e nem de para onde vai. Não lembra de nada do que aconteceu nas duas últimas semanas e descobre que perdeu os dentes da frente, seu nariz está quebrado e tem um corte profundo no rosto. Está sem carteira, sem dinheiro e sem emprego. A polícia de três estados procura por você. Imagine ainda que você é alcoólatra há dez anos e viciado em crack há três.
‘Para o autor americano este não era um enredo de ficção, mas a sua vida real. Ao reconstituir sua história de abuso de drogas, dependência e reabilitação – com uma narrativa pungente e vertiginosa – ele foi saudado por crítica e leitores de vários países como uma voz autêntica e de raro talento da literatura contemporânea.
‘Escrito num ritmo ágil e minimalista – com direitos já vendidos para a Inglaterra, Alemanha, Holanda, França, Itália, Espanha, Suécia, Israel, Hungria – o livro traz uma abordagem direta que rejeita autopiedade, cinismo e indulgência’.
Viram, voaram e sonharam. Um texto assim, escrito na página de vendas do livro, nós, os espertos, os sábios, não acreditamos. Temos que sofrer a sedução de outras páginas, da chamada crítica especializada (em quê, sobre o quê, não perguntem), em suma, temos que ir às seções de livros da grande imprensa. Aí, sim, recebemos o cerco e a vitória sobre a nossa ponderada e sensata desconfiança. E por isso vemos, e nos encantamos, com a sagração do autor em uma página da revista Época (nº 283, de 20/10/2003):
‘Aos 33 anos, James Frey é a nova promessa da literatura de língua inglesa…
‘Não tenho vergonha de dizer que quero ser o melhor da minha geração.’ A declaração é de James Frey, de 33 anos, americano considerado a mais nova promessa da literatura de língua inglesa. Frey chega para fazer companhia a Dave Eggers (de Uma Comovente Obra de Espantoso Talento) e Zadie Smith (de Dentes Brancos), jovens e talentosos como ele. A diferença é que Frey é menos modesto. Não se acanha ao afirmar que ninguém escreve como ele, e diz que dá continuidade à tradição de Ernest Hemingway.
James Frey é um sujeito metidinho, mas escreve bem à beça. Um Milhão de Pedacinhos, a obra de estréia que acaba de chegar ao Brasil, é um relato autobiográfico de seu passado como dependente de drogas e álcool. Os dez anos de overdoses, desmaios e ânsias de vômito diárias (descritas sem a menor delicadeza) são relembrados em flashbacks, enquanto ele passa três meses numa clínica de desintoxicação. Frey saiu de lá recuperado. Seu estilo, ríspido e direto, é ímpar’.
Ao lado, uma foto desse imenso talento, com a legenda, a indispensável legenda, a que atesta, e não se diz, porque esta é a marca do marketing de gênio: ‘Precoce – O escritor começou a se drogar aos 12 anos’. Um pequeno trecho da escrita do autor, sim, um pequenino trecho, para não nos matar num acesso de deslumbramento ante a genialidade:
‘Estou em outro Quarto branco, e o odeio. (…) Há outra cama, outra mesa, outra cadeira, e tenho vontade de destruí-las. Há uma janela. Quero me jogar por ela. Sigo minha rotina. Rastejo até o banheiro. Vomito. Deito no chão. Vomito. Deito no chão. Vomito. Deito no chão’.
E uma declaração do gênio, que se publica sem qualquer comentário (quem contestaria, na Idade Média, Aristóteles?), de que ‘Escrevo como penso. E quando penso não há parágrafos ou aspas, não há pontuação’. É um bárbaro, enfim, e ninguém diz. O bárbaro por método. A regressão à estupidez por lema e objetivo. Ora, elementar dos elementares, um grito pode ser uma expressão de dor para o infeliz dono do sofrimento. Mas a expressão artística desse grito é que vai fazer compreender e sentir ao público, até então alheio ao sofrimento, quão grande é essa dor. E para isso, o pensamento, esse corcel bravo, indomável, precisa ser agarrado na veia pulsante. Precisa sofrer uma tentativa de domínio.
Daí vêm as filtradas palavras, as aspas, a pontuação, os parágrafos, a raiva, a caganeira, a felicidade. Esse processo elementar, sem o qual pensamento escrito jamais será pensamento realizado, o gênio citado despreza, e isso passa sem discussão, sem o mais breve comentário, porque a bula e a burla da mercadoria informavam, ‘o escritor começou a se drogar aos 12 anos’.
Pero eis que chega 2006, e essa marca do gênio, que vem a ser a autobiografia do escândalo, começa a cair. Em Um Milhão de Pedacinhos. O livro com esse título havia se tornado um sucesso porque um programa de televisão havia feito dele um guia para a regeneração de viciados, de costa a costa, de veia a veia dos Estados Unidos. ‘Eis o depoimento de quem desceu aos infernos, e o caminho da cura’ (para não virar Rimbaud, acrescentamos), dizia-se. O livro se vendeu, o livro ganhou méritos de estilista, o autor, etc.etc.etc. e mais etc. que Homero, e, sabe-se, atingiu a Espanha, Inglaterra, Europa, Rio de Janeiro e Pernambuco. Até o fim de 2005.
Na última notícia que temos de tamanha celebridade, ele, o autor, o arrogante autor, admitiu humilde e cordeirinho a uma apresentadora de TV, Oprah Winfley, que inventou detalhes sobre todos os personagens de Um Milhão de Pedacinhos, o seu livro de memórias. Segundo informa o Globo Online (27/1/2006):
‘– Eu fiquei realmente constrangida com isso – disse Oprah Winfrey, cujos elogios ao livro de James Frey feitos em setembro ajudaram a torná-lo um best-seller nos Estados Unidos, no ano passado. – Realmente me sinto enganada. E esta resposta que recebeu do autor, costa-a-costa dos Estados Unidos:
‘– Eu menti – disse James Frey. – Não é algo fácil de fazer em frente a uma platéia cheia de gente e em frente a muitas outras pessoas que estão vendo o programa na TV… Se sair desta experiência aprendendo algo, como ser uma pessoa melhor e aprender com meus erros, garanto que não vou repeti-los…
‘James Frey também disse que passou duas horas preso, e não 87 dias de prisão, como havia escrito’
Baudelaire, reprima o vômito
Nota-se que a criação, a literatura, transformou-se em acidente. A verdade que ela expressa, a imensa e insuperável verdade que ela nos ensina, transformou-se em fato, em fato acontecido tal qual se deu. Substituíram a verdade por um boletim de ocorrência em uma delegacia de polícia. Substituíram-se o sentimento e a inteligência pela pura biografia, supondo-se, claro, que uma biografia seja um retrato fiel quando vista e reconstruída em diferentes memórias. Para essa nova realidade, quando eu digo, se eu disser, ‘naquela tarde eu fui expulso de um navio no cais como um cão’, a verdade que a narração contiver para essa frase receberá as indagações, ‘Em que tarde? Em que dia? Você recebeu mesmo um pontapé no traseiro? Foi com força, você caiu? Como você prova?’. Se eu disser, quando eu disser, que o trabalho de bancário para um escritor é um câncer, isto somente receberá valor estético se contiver o meu atestado de óbito, com a localização precisa e insofismável do meu túmulo.
Ora, esse acanalhamento da expressão humana, essa redução da verdade ao particular biográfico, resulta numa imensa pornografia, num escândalo buscado e forçado por meios e pelos meios mais artificiais. Resulta numa imensa falsidade. Se um escritor disser, por exemplo, que é um travesti em um livro, isto somente receberá valor se ele realmente ficar a se oferecer a outros homens nas avenidas, e, portanto, mais valor terá o seu livro se comprovar que assim contraiu o mal da Aids, e tiver fotografias e cartas precisas de um burguês que ia com ele à cama. Este é o valor do seu livro.
A literatura ganhou o valor da pornografia como espetáculo. E dizemos pornografia na falta de termo mais eloqüente, dizemos pornografia sem pensar na grandeza do marquês de Sade, queremos dizer, quando dizemos pornografia, aquilo que se refere apenas ao bárbaro, à barbárie, a, achei a sua expressão, à sodomia e humilhação feita em cima de presos árabes! É o reino do insulto, da degradação. Quanto mais degradado, mais verdadeiro. Daí que o escritor de gênio é aquele que se drogou desde os 12 anos. Daí que o novelista de brilho é o que foi vendido como prostituto, e que envia aos repórteres colares de pênis. Baudelaire, reprima o vômito.
Nesses dois casos apontados, sem invenção, nesses dois casos really verdadeiros, factuais em toda sua brutalidade, nota-se que a descoberta da fraude não se deu a partir da crítica à obra mesma. Assim como ela veio e se valorizou por motivos exteriores, por motivos exteriores o seu véu de transcendência se desfez. Quantos casos e valorizações degradantes pululam neste exato momento em todo o mundo das artes e do espetáculo? Então vivemos a época da fraude, do roubo à sensibilidade e à inteligência? Então vivemos sob os meios mais cínicos de propaganda e publicidade do que é falso? O leitor já vê que fazemos perguntas cuja resposta é um óbvio sim. É como se vivêssemos em um mundo de valores entre aspas. Em lugar da beleza, do amor, do ódio, da criação, passamos ao mundo da ‘beleza’, do ‘amor’, do ‘ódio’, da ‘criação’. Vivemos e entramos no próprio ‘mundo’. Baudelaire, envie-nos por favor o seu tsunami.
Aquele verso de Pessoa, de o poeta ser um fingidor a fingir até mesmo a dor que deveras sente, que tantas vezes é mal traduzido para justificar uma fuga à verdade, como se houvesse criação que não fosse a busca mais dura para extrair a verdade, somente a verdade, esse verso de Pessoa ganhou uma nova versão: finge-se que é verdade o que não é. Antes, e em todo escritor de valor para todo o sempre, fingia-se mentir para melhor falar a verdade. Agora finge-se dizer o factual, um fui prostituta, fui garoto de programa, vejam o meu diário, sou a prostituta que a imprensa falou. A minha secreção impressa é a verdade. Que diferença, lembramo-nos, que diferença para a negra Dorotéia, aquela que ‘caminha, balançando com indolência o torso tão fino sobre as ancas tão largas… admirada e mimada por todos, seria de todo feliz se não fosse obrigada a juntar piastra por piastra para resgatar sua irmãzinha, que tem precisamente onze anos e já está madura, e tão linda! Ela o conseguirá, sem dúvida, a bela Dorotéia: o senhor da menina é tão avarento, tão avarento, que não compreende outra beleza a não ser a dos escudos!’. Que diferença, Baudelaire. Isto até hoje nos vem como um tsunami.
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Jornalista e escritor