Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A literatura que não vende a alma

“Este não é um trabalho acadêmico. Mas como pertenci à Ordem durante mais de 20 anos e estou longe do claustro ainda há pouco tempo, certamente muitas marcas do mundo acadêmico vão transparecer na minha linguagem…”

“(…) dois ou três sucessos momentâneos – na escala brasileira – e nasce uma certa sensação de que sou romancista, o que é um lugar marcado em geral no mau sentido, se estamos no Brasil, mas somando tudo confere uma certa ilusão de autoridade…” (O espírito da prosa, de Cristóvão Tezza – Ed Record)

Conheci Cristóvão Tezza em 2014, durante o evento Vozes Contemporâneas, realizado na Academia Brasileira de Letras. Era uma tarde amena de terça-feira, dessas em que a gente anseia por beber um pouco das paixões que nos consolam. A aparente primeira impressão foi a de estar diante de um homem reservado e simples, que chega a nos despertar certo sentimento de ilusória intimidade, um contraponto que conflitava com a admiração que guardo pelo gigantismo do autor. No entanto, nossas preferências pessoais nunca devem obscurecer a visão crítica e eu estava ali para testemunhar a palestra de Tezza sobre a sua obra.

É inegável que atravessamos um momento em que a liturgia de escrever tomou ares de uma atividade fashion, um modismo que desfila pelas passarelas do Word. Há uns poucos que escrevem por vocação, outros pela trivial necessidade de se expressarem, alguns pela solidão e muitos pela carência vaidosa de reconhecimento. No século 21 a arte literária aluga suas virtudes para o discurso egocêntrico.

Tezza afirma que a boa literatura não brota dos felizes; diz que livros são frutos de um desconforto íntimo de pessoas que abdicam dos divertimentos mundanos e se trancam solitárias para engendrarem suas produções. Para Tezza, escrever é um verbo produzido por um substantivo: infelicidade. Escrever não é ação, é reação.

No circo regado por holofotes onde a literatura agora se apresenta, Tezza figura como um personagem em extinção. É um operário que ergueu seu nome a partir da obra. Um artesão que esculpe as palavras, é a joia que reluz entre o brilho fosco dos empresários autores que constroem a obra a partir do nome. Literatura é o que nasce da lapidação, um autor não é uma fábrica de livros.

“Um leque de ansiedades felizes”

“Tentei de novo falar com você esta madrugada, mas o quintal estava povoado de lobos ganindo contra minha sombra…” (Trapo, Cristóvão Tezza – Ed Rocco).

Em Trapo tive o primeiro contato com a obra do autor, num enredo que inquieta. Trapo, um poeta marginal e suicida. Morto, deixa um calhamaço de mil páginas que termina nas mãos de um rigoroso professor. Chamam o livro de romance metapoético, mas quando me recordo da leitura o que me ocorre é a imagem singular de uma narrativa apneica.

“Outra frase ao acaso, no meio do que parece ser uma carta: A poesia é uma merda. A dele, naturalmente. Dois pronomes oblíquos na mão desses poetas e eles morrem atropelados pela língua” (Trapo, C. Tezza – Ed Rocco, pág. 50).

Vocação é um coice pressentido em nossas costas, não nos deixa desistir, atormenta. E, acumulando mais de uma dezena de romances, Cristóvão Tezza nunca fraquejou. Lançou-se à frente, construindo uma trajetória sólida, preservando a paciência e a determinação que conquista espaço. Então, chega a hora e nasce O filho eterno, a catapulta que o arremessou à merecida fama.

“Sim, distraído quem sabe! Alguém provisório, talvez; alguém que, aos 28 anos, ainda não começou a viver. A rigor, exceto por um leque de ansiedades felizes, ele não tem nada, e não é ainda exatamente nada” (O filho eterno, C. Tezza – Ed Record).

Uma timidez indisfarçável

Assim discorrem as primeiras linhas de O filho eterno, um folhear de tantas páginas que nos levam por uma incômoda reflexão sobre o fracasso e o amadurecimento através dele. Não nos estranha ser esse livro a marca de maior sucesso do autor.

“Tudo bem: escritor. Aceito o título. Melhor: prosador. Escritor é uma boa definição, a meu favor – cabe tudo. Prosador é mais preciso, e também nele cabe quase tudo, exceto a poesia. Já romancista é uma coisa antiga, para determinada faixa de compreensão” (O espírito da prosa, C. Tezza – Ed Record).

Tezza define o realismo como a sua escola. Idolatra o cientificismo do russo Mikhail Bakhtin (1895/1975). Talvez haja nisso o autoengano de um autor que ordenha poesia da prosa. Quem, além de um poeta, largaria o idílio nacional de um emprego público como professor universitário para mergulhar de corpo inteiro no oceano incerto da literatura? Cristóvão Tezza o fez.

O espírito da prosa não é um manual de escrita, muito menos um tutorial para romances, coisas que andam em voga por aí, mas com certeza é um guia imaterial obrigatório e inevitável para aqueles que se sabem artesãos.

Cristóvão Tezza sobe ao palco do auditório da ABL e revela sua indisfarçável timidez ao puxar um maço de papéis e anunciar que prefere ler o que pensa a discursar de improviso. É o velho clichê do escritor avesso à fala. Tudo bem. De que serve a veneração se não para perdoar? Nós compreendemos, ele pode.

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Alexandre Coslei é jornalista e escritor