Há pouco, terminei de reler Memorial de Aires. Li devagar, como quem degusta um vinho. Livro delicioso, aconchegante, personagens com uma densidade que salta do romance, demonstração da supremacia absoluta do escritor. Os ranhetas cismam com a falta de enredo, mas ali está o enredo do cotidiano simples do protagonista e a relação dele com dois velhos que tentam permanecer próximos aos filhos postiços. O enredo é a solidão desses personagens. Dizem que Machado não era um narrador descritivo, não revelava ambientes e o cenário da cidade em seus textos, mas é nele que mais me sinto inserido no Rio de Janeiro daquele fim do século 19. Em Machado está guardado um intenso espírito de época que o tornou universal. Virei a última página com tristeza saudosa antes de emergir novamente no inóspito e pandêmico século 21.
Sílvio Romero, um dos progenitores da nossa crítica literária, acreditou que Machado de Assis fabricava um pessimismo que não integrava o caráter do brasileiro. Faltou a Sílvio Romero conhecer a nossa produção contemporânea para verificar a entronização da melancolia inócua e premiada que paira sobre os textos de ficção hoje publicados. Nossos autores seriam mais expressivos se fossem capazes de reconstruir o agudo e irônico pessimismo de Machado.
A literatura foi perdendo a centralidade dentro do panorama cultural do nosso país. Nestes tempos de pandemia, quando todos estamos confinados e com restritas escolhas de lazer, não observo muitas referências aos livros. O que prevalece intensamente são as lives (o novo fenômeno propagado pela tecnologia), as séries da Netflix, uns poucos filmes e mais nada. Apesar de as séries e filmes se originarem no trabalho do texto, a literatura é quase um elemento invisível no resultado das produções.
Existem os youtubers literários – poderia alguém me lembrar, tentando fazer justiça à visibilidade da palavra. Reconheço que os youtubers que comentam livros concretizam uma bela iniciativa, mas dos poucos que assisti ficou-me o sentimento de que desejam chamar mais atenção para eles próprios do que às obras apresentadas. Repito que foi uma sensação genérica que me ocorreu, não está livre de ser um equívoco de interpretação. Além desses críticos amadores em vídeos da Internet, temos os resenhistas da grande imprensa. Infelizmente, os resenhistas não conseguem ocultar um sintoma crônico, escrevem como se fossem patrocinados pelas grandes editoras ou pela camaradagem com autores.
“A profissão de crítico deve ser uma luta constante contra todas essas dependências pessoais, que desautorizam seus juízos, sem deixar de perverter a opinião. Para que a crítica seja mestra é preciso que seja imparcial, – armada contra a insuficiência dos seus amigos, solícita pelo mérito dos seus adversários.” – Ensinava Machado na ancestralidade de O ideal do crítico.
Nos jornais, desapareceram os suplementos sobre literatura, tudo que se vê no arremedo simplório de crítica dos nossos dias contraria o ancestral “Ideal do crítico”, que estabeleceu uma “crítica pensadora, sincera, perseverante e elevada” – segundo Machado de Assis. A revelação óbvia é que a imensa pluralidade das publicações despejadas nos últimos anos inviabilizou o ofício da crítica séria e abrangente, que se exilou no feudo intelectual das universidades. “A crítica desamparada pelos esclarecidos é exercida pelos incompetentes” – sentenciou Machado.
Derrame de autores no mercado editorial não significa potência literária. Pelo contrário, o sentido da literatura se corrompeu, desbotou-se, diluiu-se numa infinidade de obras construídas por fórmulas prontas e conceitos comerciais. Alguns dos nossos escritores, principalmente os mais jovens, resgataram o aspecto inventariante do realismo. As maiores editoras focalizam em nomes famosos da mídia para turbinar vendas setorizadas, vendas que não sustentam as grandes redes de livrarias, livrarias que caem nas mãos de bancos que cobram melhores resultados financeiros. Outros autores investem mais em marketing do que em conteúdo. Pequenas editoras não distribuem os livros que produzem, são onerosas para o autor, cobram alto pelo envio do que publicam, transformam o mercado dos livros numa firma de agiotagem cultural.
“(…) houve todo um planejamento de marketing para escrever o livro que o mercado pedia.” – Dizia Sérgio Sant’Anna sobre um escritor americano ao criticar a intervenção do marketing na obra literária.
A situação se agrava ao constatarmos que o escritor brasileiro não quer aprender a ler outros escritores, ele só quer aprender a ser lido. A recíproca não surge sem má vontade. Os índices mostram que o Brasil possui poucos leitores ativos (média de leitura é de 5 livros por ano). Numa proporção ainda menor estão os leitores de qualidade. A degradação geral da leitura e da criação, aliada a um sistema educacional precário, fizeram da resenha dos tietes opção à crítica acadêmica. Para completar, as feiras literárias e outros eventos dedicados aos livros servem mais ao comércio e ao lucro do que à formação de leitores. A literatura se tornou um braço forte do negócio publicitário, canonizam autores pueris, divulgam celebridades que são escritores de ocasião e restringem o foco a nichos que geram os best-sellers. A literatura virou uma sala barulhenta cheia de ninguém. Buscam o lucro com a ficção através da farsa. O resultado é que a estratégia não alimenta as corporações que controlam as livrarias de maior porte, terminam na falência. Não formamos leitores, formamos compradores aleatórios de livros e decoradores de estantes.
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Alexandre da Costa Leite é jornalista e escritor.