Só pode ser por ironia que o escritor, professor e editor Jaime Pinsky organizou o livro Cultura & Elegância, em que conselheiros como o escritor Moacyr Scliar e o jornalista Daniel Piza indicam autores capazes de fazer o citador parecer – o livro é de etiqueta? – ‘um ser humano mais admirável’.
Moacyr Scliar receitou cinco brasileiros: Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Mário de Andrade, Machado de Assis e Jorge Amado. Precavido, tomou o cuidado de não citar nenhum colega da Academia e nenhum companheiro de ofício que esteja vivo. E dez clássicos, entre os quais Homero, Flaubert, Dickens, Dostoiévski.
Autor de obras referenciais de nossa prosa de ficção, como Exército de um homem só, A estranha nação de Rafael Mendes e O ciclo das águas, Moacyr Scliar integra a minoria da ABL que tem respeitável produção literária. Parece contraditório, mas, como todos sabemos, a ABL semelha um clube seleto que foi perdendo os critérios ao longo da história. Se tivesse mais de quarenta vagas, o peso de membros que se elegeram por motivos extraliterários seria menor, mas ela continua com o mesmo número de eleitos da segunda metade do século 19.
Encarregado de sugerir livros de não-ficção para Cultura & Elegância, o jornalista Daniel Piza, de O Estado de S.Paulo, citou Voltaire, Maquiavel, Nietzsche, Erasmo de Rotterdam e Montaigne. A dieta é nutritiva, mas como toda dieta desperta controvérsia. Ninguém do século passado ao menos? Nem Michel Foucault.
Cultura & Elegância é apenas mais um sinal da miséria intelectual que subjaz nas conversações de gente inculta, que se satisfaz com um verniz cultural, tão bem explicado em seus abomináveis objetivos por Nelson Werneck Sodré, em livros como História da Literatura Brasileira e História da Imprensa. E que não afeta apenas os que não têm o hábito de ler, mas também os profissionais do ramo e os leitores que lêem naturalmente, isto é, que não precisam ostentar ou disfarçar nada do tema, pois o livro ocupa lugar importante em suas vidas.
Como livro de primeiros passos na formação dos leitores, o livro de Jaime Pinsky, principalmente pelas lembranças de autores e livros dos convidados, é boa oportunidade de reflexão. Nossos ‘salões’ e ‘serões’ já foram mais bem freqüentados, a julgar pelas dicas que o livro passa. Ainda que o livro venha ser lido como ‘manual de etiqueta cultural’, digamos assim, se os destinatários seguirem as receitas, os benefícios serão admiráveis.
Muita coisa escondida
Um Manual de Etiqueta, seja de que tipo for, convida à reflexão. Por que aquelas recomendações e não outras? Não se franza o nariz diante de livro algum! Livro é livro! Ainda que como placebo, ninguém sai o mesmo da leitura de um livro.
Mas uma pergunta que não quer calar é a seguinte: que idéia de cultura é dominante no Brasil de hoje? E de livro? Quais são nossos livros indispensáveis, que compõem referências atualizadas do que têm sido os livros de autores como os citados? Mesmo a citação dos clássicos requer algum cuidado. Eça de Queiroz é, mais que gênio, oxigênio literário. Mas não o Eça de Queiroz de A tragédia da Rua das Flores, livro medíocre que ele jamais quis lançar e os herdeiros publicaram para fazer caixinha, sem aviso aos navegantes.
As escolhas públicas, vale dizer, as escolhas de interesse público, poderiam ser vistas sob outras luzes. A mídia anda escondendo muita coisa nessa área. Tomemos o exemplo do referendo. A mídia ficou devendo esclarecimentos, não apenas mais vastos, mas principalmente mais ousados.
O silêncio que se abate
Por exemplo, as pesquisas de opinião foram aceitas como oráculos. E o ‘não’ não estava à frente aqueles percentuais de um dígito. Compare-se o resultado! Bem que a tremenda ‘barriga’ poderia servir para matérias aprofundadas sobre nossa aceitação rapidíssima da urna eletrônica, mesmo depois do ‘escândalo Proconsult’, cuja estratégia mal encoberta tinha o fim de fraudar as eleições para o governo do Rio, impedindo a eleição de Leonel Brizola nos anos 80, quando tinha acabado de voltar do exílio. Não é inoportuna uma pergunta solerte: as urnas eletrônicas concordaram com as pesquisas de opinião muitas vezes! Agora, não! Quando erraram as pesquisas: agora ou antes? E que erros foram cometidos? Ou algo mais por trás dessas escolhas?
Nossa mídia mais esconde do que revela, mas alterna momentos de alto desempenho com modorras e cumplicidades alarmantes. No voto ou nos livros, cidadãos e leitores nem sempre podem contar com a mídia para fazer suas escolhas.
Ilustremos com exemplos concretos: o silêncio que se abate sobre os livros de autores brasileiros – nas livrarias, onde estão escondidos; nas resenhas da imprensa, onde apenas alguns poucos são lembrados; nas indicações, adoções, listas de compra por parte dos governos federal, estadual e municipal, feitas com critérios que raramente vêm a público – é normal? É apenas descaso? É apenas falta de profissionalismo? Todos pensavam que do PT se poderia esperar alguma incompetência, falta de manejo da coisa pública, mas corrupção, quem esperava? E a mídia não deu indícios de nada! Hoje sabemos – muito tarde talvez, principalmente para aqueles que dentro do partido não aprovavam métodos escusos – que tumores ímpios, localizados aqui e ali, contaminaram os justos e foram reproduzidos em larga escala, no Brasil inteiro!
Além dos estreitos limiares
Até há poucos anos, o silêncio vitimava preferencialmente os autores vivos. Mas ele já se estende também sobre tumbas. O exemplo mais claro desta falta que fala seja talvez o de Stefan Zweig. Ele está na ordem do dia das discussões na Europa. Por que não aqui?
Hugo Estenssoro lembra na revista Primeira Leitura deste mês (outubro de 2005, número 44, p. 86-87), ao comentar Morte no Paraíso, de Alberto Dines, alentada biografia que nesta terceira edição veio acrescida de informações e ilações que o biógrafo não tinha como obter antes, trecho de uma carta, citada por Dines, que Zweig enviou a Freud: ‘A meia piedade que não chega ao último sacrifício é mais letal do que a violência’.
Se o livro de Dines, assim como a obra de Zweig, não estivesse tão escondido no Brasil, teríamos aprofundado muito a questão da violência, levando o tema muito além dos estreitos limiares que confinaram a discussão sob um prisma simplório: o cidadão pode ou não comprar uma arma de fogo? Afinal, também o suicídio está na ordem do dia. E não no sentido metafórico. Tornou-se estratégia de guerra no Iraque, como já o fora para os japoneses na Segunda Guerra Mundial.
Que se abra a controvérsia
A Folha de S. Paulo poucas vezes terá dado tanto espaço a um livro numa coluna como Mônica Bergamo acabou dando a Cultura & Elegância. O que se pergunta é: que critérios presidem as escolhas de comentários de livros no maior jornal do Brasil? Não que o livro não faça por merecer o espaço que lhe foi atribuído, mas por que tantas exclusões sobre livros – daí, sim, não se trata de opiniões, mas de fatos editoriais! – inquestionavelmente mais relevantes?
A mídia precisa formular e responder a essas questões. Leitores e eleitores talvez comprem mais jornais e revistas, leiam mais, vejam mais televisão, pois logo perceberão o salto de qualidade.
E que – pel’amor de Deus, como diria Aldo Rebelo, presidente de Câmara, tentando evitar o desforço físico entre os deputados! – não se subestimem leitores e eleitores. Da Fernanda Montenegro e da Maitê Proença, a gente gosta muito, mas discorda do que apregoam sobre armas de fogo. O Chico Buarque, a gente adora e compra todos os seus cedês, além de nunca desligar o rádio quando ele é pautado. Mas que a mídia não nos imponha como referência solar de escritor no Brasil, que ele não é! Sob nenhum critério que se respeite. Se algum editor de páginas e espaços dedicados a livros na mídia acha o contrário, curve-se à ‘democracia como valor universal’ (apud Carlos Nelson Coutinho), reveja seus conceitos e abra a controvérsia.