Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘A mídia não se interessa pelo caso Jean Charles’

Londres, sexta-feira, 22 de julho de 2005. Deveria ser mais um dia de trabalho para o eletricista Jean Charles de Menezes, 27 anos. Pela manhã, ele deixou o prédio onde morava em Tulse Hill, uma área residencial ao sul de Londres, para ir trabalhar. Sem desconfiar de nada, foi seguido por policiais da Scotland Yard. Na estação de metrô de Stockwell, foi alcançado, dominado e executado com sete tiros na cabeça. Havia sido confundido com Osman Hussein, um jovem etíope naturalizado britânico.

Como tantos conterrâneos, Jean deixou o Brasil em busca de um sonho. Em março de 2002, foi tentar a vida na Inglaterra. Deixou para trás a família em Córrego dos Ratos, uma pequena localidade do município de Gonzaga, Minas Gerais.

Após o crime, a polícia londrina construiu várias versões fantasiosas para o assassinato, tentando encobrir seus erros. Mais tarde, a verdade viria à tona. Os bastidores dessa tragédia estão narrados no livro Em nome de sua majestade, o novo lançamento do escritor carioca Ivan Sant’Anna.

Ex-operador da Bolsa, Ivan já escreveu sobre o mercado financeiro, o 11 de Setembro, desastres aéreos e os caminhoneiros brasileiros, nos livros Rapina, Plano de ataque, Caixa preta e Carga perigosa, todos sucesso de público.

Ivan não ficou satisfeito com a cobertura dada à morte de Jean Charles e decidiu escrever o livro. ‘Pressenti que a história oficial estava mal contada’, disse nesta entrevista concedida por e-mail. Seu esforço o fez viajar a Londres, onde ouviu amigos e parentes de Jean Charles. Ivan consultou testemunhas, pesquisou arquivos e refez os últimos passos do brasileiro até o dramático desenlace no metrô londrino. Buscou explicações de fontes oficiais brasileiras e britânicas. Visitou os pais de Jean Charles em Minas Gerais.

O resultado desse esforço é uma narrativa enxuta e vibrante. A reconstituição minuciosa dos fatos é pontuada por rompantes irônicos. Não é para menos. A Scotland Yard, uma organização lendária, símbolo de eficiência que chegou a inspirar personagens como James Bond, se revelou arrogante e corporativa nesse episódio.

Foi auxiliada por uma imprensa que não mostrou interesse em desvendar o caso. ‘A mídia brasileira não investigou praticamente nada’, critica Ivan. A própria imprensa britânica, num primeiro momento, se resumiu a comprar a versão da polícia. A coisa toda sofreu uma guinada após o ato corajoso de Lana Vandenberghe, secretária da corregedoria da polícia metropolitana de Londres. Ela teve acesso aos relatórios oficiais sobre a morte de Jean Charles. Contou o segredo à amiga Louise McGing, noiva do jornalista de TV Neil Garrett, que levou a história a seu editor na ITV. E assim a ação desastrada da polícia se tornou pública. Mas a ousadia teve um preço: Lana, Louise e Neil acabaram sendo intimidados pela Scotland Yard. A seguir, a entrevista.

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O senhor já escreveu sobre o 11 de setembro, mercado financeiro, desastres aéreos e caminhoneiros brasileiros. O que o levou a se interessar pela morte de Jean Charles de Menezes?

Ivan Sant’Anna – Porque pressenti que a ‘história oficial’ estava mal contada.

De tudo que o senhor pesquisou sobre o assunto, o que mais o surpreendeu?

I.S. – A vilania da Scotland Yard ao encobrir os fatos e ao atemorizar a Lana, a Louise e o Neil.

Na Inglaterra, onde o senhor efetuou parte da investigação para o livro, houve algum tipo de barreira ao seu trabalho?

I.S. – Não. Nenhuma.

Como estavam os ânimos das pessoas que eram próximas a Jean Charles em Londres, no momento em que o senhor as entrevistou?

I.S. – Continuavam revoltadas, embora um ano e quatro meses já tivessem se passado desde a morte de Jean.

Pelo que foi relatado no seu livro, ficamos sabendo que a Scotland Yard incorreu numa sucessão de erros primários que acabaram levando à execução de Jean Charles. Neste sentido, podemos afirmar que é uma polícia de Terceiro Mundo num país de Primeiro Mundo?

I.S. – Não diria de terceiro mundo, mas não é aquela Scotland Yard que a gente sempre respeitou. É uma polícia arrogante, arbitrária, preconceituosa e corporativa.

Seu livro revela a incrível figura de Lana Vandenberghe, funcionária de um órgão da própria Scotland Yard que acabou vazando informações confidenciais sobre o assassinato do brasileiro. Se não fosse por ela, a verdade ainda estaria encoberta?

I.S. – Com certeza. O vazamento da Lana estragou os planos da Polícia Metropolitana de encobrir a verdadeira história.

Outro personagem importante é Neil Garrett, o jornalista da emissora de televisão ITV que levou ao ar as denúncias de Lana Vandenberghe. Como foi seu contato com ele em Londres?

I.S. – Foi ótimo. Ele acabou se casando com a Louise. Tiveram uma filha, Joni. Eu estive na casa deles, no nordeste de Londres.

Como o senhor analisa o fato de jornais como The Independent, e a própria BBC, terem, num primeiro momento, comprado a versão oficial sobre a morte de Jean Charles?

I.S. – Até o surgimento da reportagem na ITV, todo mundo comprou a versão falsa. Tanto a imprensa quanto o público.

E o papel da mídia brasileira? O senhor acha que ela poderia ter investigado mais o assunto, já que se tratava de um brasileiro no centro dos acontecimentos?

I.S. – Com certeza. A mídia brasileira não investigou praticamente nada. Até hoje não se interessa muito pelo caso Jean Charles. Se este fosse argentino, por exemplo, teria havido uma grande revolta na Argentina.

No livro, o senhor descreve a visita que o presidente Lula fez à Inglaterra um ano após a morte de Jean Charles. E que, nessa visita, pouco foi discutido sobre o caso. O governo brasileiro foi subserviente?

I.S. – O Lula gosta é de status, de mordomia. Foi lá, não cobrou nada a respeito da morte de Jean Charles e ainda se hospedou no palácio de Buckingham.

O senhor cita, inclusive, suas tentativas mal-sucedidas de contatos com o Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. A que o senhor atribui esse silêncio?

I.S. – Ao descaso com a morte de Jean. O governo brasileiro não ligou a mínima.

A família de Jean Charles de Menezes recebeu algum tipo de indenização do governo inglês?

I.S. – Até agora, apenas 15 mil libras para o translado do corpo, a viagem dos parentes e o enterro em Gonzaga. Quinze mil libras, o Jean Charles ganhava em três meses.

E como anda o processo que a família está movendo na própria Inglaterra?

I.S. – A família está perdendo em todas as instâncias.

O senhor acredita que o erro da polícia britânica poderá ser reparado um dia?

I.S. – Não. Não acredito. Vai ficar por isso mesmo, tal como aqui. A gente não vai nem saber o nome dos policiais que executaram o Jean.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias