Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A mídia oficiosa

Facts, facts only‘; a oração mandamental que já fez a glória dos cursos de jornalismo, hoje soa vazia ou até sarcástica, quando se observa de perto a realidade jornalística e midiática no contexto sociopolítico atual. Não que a luta pelo poder simbólico e o uso da mídia como ‘aparelho’ de alienação na corrida pela hegemonia sejam novidades em si. Mas a caracterização da mídia enquanto locus primeiro, quase absoluto, de enfrentamento dos setores e segmentos conflitantes da sociedade, a distorção de seu foco cidadão inicial e a total dissolução de sua missão nos meandros do mercado, constituem, com certeza, um ‘fato’ digno de atenção e um motivo de preocupação.

Não se trata apenas de considerar a impossibilidade de transmissão da realidade sem interferência por parte do sujeito-jornalista ou o órgão de imprensa, historicamente determinados, socialmente implicados, politicamente guiados, economicamente constrangidos, ideologicamente (in)formados e discursivamente constituídos. Sabemos, de fatos, que a centralidade desses fatores nos sistemas de conhecimento e nas relações sociais e humanas em geral, leva naturalmente a questionar o mito da objetividade nos processos comunicacionais como a própria a possibilidade de apreensão pura e fiel do real; já que, como afirma Humberto Maturana, ‘tudo que é dito é dito por um observador’.

Dizer‘ este que é, necessariamente, o eco e o reflexo do estado global e local, geral e específico da totalidade dos fluxos componentes da semiosfera na qual se inscrevem nosso devir e nosso agir e pela qual são significados nossos sentidos e nossos modos de percepção. Sendo a nossa subjetividade, as instâncias de sua enunciação e os moldes de sua produção nem a-históricos nem a-sociais, mas sim momentos e estações dialeticamente estruturados e semantizados pelo conjunto dos textos e discursos em circulação.

Trata-se antes, aqui neste estudo, de por em evidência (flagrar, no sentido de tornar flagrante) um campo específico de diálogo, complementaridade e interação entre os atores sociopolíticos verdadeiros detentores das rédeas do poder e a mídia mercantilista orgânica, encapada na fraseologia objetivista oca para melhor expressar sua vocação tácita de porta-voz da classe dominante e outorgar ao seu marketing político contornos investigativos, falsamente neutros. A análise perspicaz de Bruno Lima deixa claro que o que, muitas vezes, parece furo (‘scoop’), denúncia ou revelação não passa, na verdade, de uma flexibilização ideológica e uma terceirização enunciativa. Em soma, uma ‘divisão do discurso’ em perfeita sintonia com o desenho supremo de submissão de todas as esferas organizacionais, institucionais e até existenciais da Sociedade e do Estado ao dogma do Mercado; não apenas pela sua valoração peculiar (de pecúlio), mas principalmente, pela imposição do paradigma mercadológico ultraliberal como princípio vital original de seu funcionamento e de sua razão de ser.

De fato, um dos pontos mais intrigantes do estudo é de demonstrar que, com a privatização do capital social nacional tanto no nível concreto como no plano propagandista que o acompanha, as áreas mais nevrálgicas do aparelho do Estado, aquelas cuja vocação, em teoria, é de sobreviver aos diversos e possíveis cataclismos, se revelaram ser as primeiras desejosas de abdicar de sua essência vigilante para se entregar aos parâmetros ultraliberais que colocam o lucro acima de qualquer outro valor e cuja forma paroxística é o banditismo generalizado e a luta incessante de todos contra todos. Estágio de corrompimento alarmante, diante o qual o campo jornalístico só pode se tornar o habitat natural das vozes mafiosas e o cenário predileto para os acertos de contas da marginalidade política.

Porém a pesquisa de Bruno Lima é longe de ser um epitáfio para o jornalismo investigativo sério e dedicado; pelo contrário! A abordagem teórica – empírica – investigativa adotada pelo autor é um hino ao jornalismo ‘autoreflexivo‘ consistente e prenhe de uma visão social e política lúcida e responsável. Não apenas bebe nas fontes do jornalismo mais límpido e cristalino, mais seu próprio método é jornalístico à perfeição, figurando uma reportagem extensa e exaustiva sobre os males do jornalismo que se nega, se renega ou nem sequer chega a ter consciência da sua própria existência social e política.

De certo, qualquer um que já exerceu ou exerce o jornalismo sabe muito bem que os aspectos mais técnicos da profissão são, paradoxalmente, os mais fáceis de aprender; enquanto a pertinência e a originalidade do olhar e do ponto de vista, a perspicácia da análise e da argumentação são muito mais difíceis de construir e de adquirir. É que o olhar de que se trata não consiste numa habilidade meramente mecânica ou sistêmica, mas sim numa verdadeira faculdade cognitiva de apreensão do real de maneira clara e esclarecida, a partir de uma perspectiva total, coesa, coerente com o mundo e estruturada em função de seus múltiplos significados. Até os aspectos mais técnicos da atividade comunicativa requerem, na prática, um ‘despertar situacional‘, uma real capacidade de simbolização e de significação para poder dialogar e interagir com o público e a sociedade em geral. Além de saber o ‘que dizer‘ e dominar o seu ‘como dizer‘ a um primeiro e segundo nível de seu consciente, a faculdade ‘autoreflexiva‘ deve permitir ao profissional de ter permanentemente em mente, de maneira clara e límpida, o significado político e ideológico exato de seus próprios modos de dizer.

O jornalismo celebrado neste trabalho é aquele que não aceita de ser desmembrado do quadro social, cultural e político no qual e pelo qual ele vive e se desenvolve, ciente que o ofício jornalístico não consiste apenas em ‘como dizer‘, mas sim ‘o que dizer‘ e as implicações e os desdobramentos deste dizer para fazer justiça a sua dimensão política e seu status merecido de ‘quarto poder’. Ou seja, um jornalismo conformado num verdadeiro ‘weltanschauungde‘, uma percepção do real lúcida, crítica e consciente, capaz de produzir um sentido efetivo, fruto de uma visão complexa e abrangente do mundo, que supera e transcende a sua apresentação formal, momentânea e parcial.

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Professor do Programa de Pós-Graduação da ECO-UFRJ, editor da revista Semiosfera (www.eco.ufrj.br/semiosfera) e autor de Da semiose hegemônica ocidental (Eco-Rizhoma, 2001)