Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A moral e a nova mídia

[do release da editora]


Esse livro não apresenta um manual com listas de certo e errado nem oferece lições de conduta para os profissionais da mídia. Longe disso, o objetivo é investigar como o jornalismo tem sido praticado do ponto de vista da moralidade – desde seu surgimento até os dias de hoje, marcados por um intenso fogo cruzado de novos meios de comunicação, a nova mídia.


A pedra fundamental da reflexão sobre a imprensa foi lançada em 1690, quando o alemão Tobias Peucer defendeu uma pioneira tese de doutorado sobre o tema. Em poucas páginas, ele já apontava questões que continuam na ordem do dia e são abordadas com impressionante senso crítico neste Ética, jornalismo e nova mídia.


Entre elas destacam-se as contradições do jornalismo como ‘negócio’ e, ao mesmo tempo, atividade de interesse público; os limites da objetividade e da imparcialidade (seriam um mito?); a busca da precisão num cotidiano premido pela urgência; os ideais de verdade, justiça e credibilidade.


O grande desafio do jornalismo no século 21 é manter sua identidade em uma rede saturada de informações emitidas pelos mais diversos meios. Nessa rede intrincada, nunca foram tão tensas as relações entre ‘fonte’, jornalista, empresa de comunicação e público – não por acaso, ética e antiética têm andado assustadoramente próximas.


Ao relacionar filosofia, dramaturgia e literatura, estabelecendo surpreendentes ligações entre eventos distintos – como o julgamento de Sócrates, na Antiguidade, e recentes atentados promovidos em São Paulo pelo crime organizado –, Caio Túlio Costa sustenta que, apesar de todas as novidades na mídia, o modo de fazer jornalismo não mudou.


O que tem mudado é a forma de comunicação e o grau de importância atribuído ao jornalista, já que agora qualquer indivíduo pode criar e veicular produtos noticiosos, atingindo online milhões de pessoas. Essa possibilidade sim é inédita e espantosa. Mais do que nunca, portanto, é oportuno manter em pauta uma discussão aprofundada sobre ética, jornalismo e novas mídias.


Sobre o autor


Caio Túlio Costa, jornalista, doutor em ciências da comunicação pela USP, é professor de ética na Faculdade Cásper Líbero (SP) e executivo na área de comunicação. Ex-presidente do Internet Group (iG) e ex-diretor geral do UOL, que ajudou a fundar, foi também o primeiro ombudsman da imprensa brasileira, na Folha de S.Paulo. Entre seus livros estão Cale-se e Ombudsman: O relógio de Pascal.


***


Prólogo


Caio Túlio Costa




N´importe quoi petit quand structure morale s´affaisse las las las dans la tête qui toujours guette … quelque chose remonte qui n´est pas dans la fi che comme un dieu pantelant sur la ville qui triche. (Jean Pérol, no poema ‘Sur la ville qui triche’, do livro Morale provisoire.)


[Numa tradução livre: ‘Pouco importa quão pequena quando a estrutura moral se verga/ ai ai ai na cabeça sempre em vigília … Alguma coisa que não está ancorada se levanta/ como um deus ofegante sobre a cidade que engana.’]


Sexta-feira, 25 de outubro de 1946, noite fria de outono na sala do professor Richard Braithwaite, a de número três da escadaria H do Edifício Gibbs, no King´s College, em Cambridge, Inglaterra, 80 quilômetros ao norte de Londres. Começava mais uma reunião do Clube de Ciências Morais. Com a lareira acesa, professores e alunos se acomodaram na sala. Os filósofos Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein, presidente do clube, estavam entre eles. O convidado da noite começou a falar, o filósofo austríaco, naturalizado inglês e notabilizado na Austrália e na Nova Zelândia, Karl Popper, autor de A sociedade aberta e seus inimigos, publicado um ano antes e depois transformado em clássico do pensamento liberal.


Ele mirou o papel que tinha em mãos com o texto especialmente preparado para a ocasião e expressou surpresa por ter sido convidado pela secretaria do clube para uma palestra que abordasse algum enigma filosófico (philosophical puzzle). Por isso preferira dar à conferência outro título, questionador: ‘Existem problemas filosóficos?’ Implicitamente, pontuou, quem quer que tivesse feito o convite a ele havia tomado um partido, talvez inconscientemente, ao lhe propor falar do quebra-cabeça filosófico. Teria tomado o partido daqueles para quem não existem problemas filosóficos, e essa própria questão consistiria, em si mesma, num genuíno problema filosófico.


Ao ouvir aquilo, Wittgenstein levantou-se num salto e disse em alto e bom som:


– A secretaria do clube fez o que tinha de ser feito e conforme instruções minhas.


Popper retrucou:


– Se eu não pensasse haver problemas filosóficos genuínos, então certamente eu não seria um fi lósofo. O fato de que muitas pessoas, talvez todas as pessoas, adotem irrefletidamente soluções indefensáveis para muitos, por si só providenciaria uma boa justificativa para ser um filósofo.


Wittgenstein pulou de novo da cadeira e reafi rmou a não-existência de problemas filosóficos.


Popper não ligou e começou a ler a lista de problemas filosóficos preparada para a noite. Ela incluía questões do tipo ‘nós conhecemos as coisas por meio de nossos sentidos?’ e ‘nós obtemos o conhecimento pela indução?’.


Wittgenstein, com o atiçador de fogo da lareira na mão, argumentou que tais questões tratavam mais de problemas lógicos do que filosóficos.


Popper argüiu sobre o problema potencial da existência do infinito.


Wittgenstein respondeu ser este um problema matemático.


Então Popper mencionou os problemas morais, o problema da validade das regras morais.


Wittgenstein, que brandia o atiçador enquanto falava, exigiu:


– Dê um exemplo de regra moral!


– Não ameaçar palestrantes com o atiçador – respondeu Popper, de pronto.


Bertrand Russell se ergueu da cadeira, o olho fixo em Wittgenstein, que reagiu:


– Você está me interpretando mal, Hrussel [o austríaco Wittgenstein não falava o inglês com perfeição], você sempre me interpreta mal.


Russell afirmou que Wittgenstein é quem estava misturando coisas e repetiu:


– Wittgenstein, você sempre mistura as coisas.


Sua voz estaria mais estridente do que o normal quando ele tirou o cachimbo da boca e ordenou em seguida:


– Wittgenstein, largue esse atiçador imediatamente!


Wittgenstein, então com 57 anos, jogou o atiçador ao chão e saiu da sala pisando firme e batendo a porta.


Nesse rápido embate estaria resumida a história do cisma da filosofia no século XX acerca da importância da linguagem. Esse cisma teria oposto de um lado aqueles que diagnosticavam os problemas filosóficos tradicionais como complicações puramente lingüísticas e, de outro, quem acreditava que tais problemas transcendiam a linguagem. Wittgenstein estaria do lado dos primeiros. Seu maior biógrafo, Ray Monk, discorda. Diz taxativamente que era Popper quem pensava que Wittgenstein negava a existência de problemas filosóficos.


O tenso diálogo em Cambridge não durou mais do que dez ou 15 minutos e virou lenda. Há quem diga que ambos teriam ido às vias de fato, mas essa versão, referida em livro de Edmonds e Eidinow, é desmentida por eles mesmos, que apuraram com vários participantes do encontro, ainda vivos, não ter havido embate físico. Eles pretendem demonstrar é que essa ação sintetiza o cisma do século XX na filosofia.


Negando ou acreditando, considerando falsas ou verdadeiras as questões de Popper, o fato é que Wittgenstein, idolatrado naquela sala por discípulos que lhe copiavam até o jeito de se vestir e de martelar os dedos na cabeça, viu-se batido por uma inequívoca questão moral, ‘não ameaçar palestrantes com o atiçador’, e pulou fora da discussão, batendo a porta.


Ao contrário de Wittgenstein naquela noite, o trabalho que você vai ler não foge do assunto. O problema moral do jornalismo – que se funde à plataforma da linguagem – será esquadrinhado histórica, estrutural e conjunturalmente. A tentativa será a de explicar como as questões morais e éticas servem e desservem o ofício do jornalista em particular, do comunicador em geral.


Não espere encontrar um manual de boa conduta para jornalistas e comunicadores. Você vai se deparar, isso sim, com um esforço de leitura crítica do jornalismo. Com uma análise de como ele é feito. Com uma decupagem de como aqueles que o fazem muitas vezes o defendem como algo moralmente defensável na teoria, mas se contradizem na prática.


Para tanto, você está convidado a dar um passeio pelo tempo, pelas idéias e por exemplos, acompanhando as reflexões sobre uma moral que aqui se vai tachar de ‘provisória’ no jornalismo – seja o jornalismo de ontem, de hoje ou aquele que a nova mídia fez emergir. Esse passeio, um tanto irregular na linha do tempo, volta ao século XVII, regride à Grécia Antiga, retorna à Europa renascentista, visita filósofos de idéias solidifi cadas na modernidade e avança pelas franjas dessa própria modernidade no século XX, antes de adentrar o século XXI e a revolução tecnológica, que muda a face da comunicação. Mãos à obra. Porque ética e moral, verdades e mentiras, velha mídia e nova mídia são coisas sérias demais e merecem que todos nós nos ocupemos delas.


***


1. Percurso


Há uma significativa mudança em curso nas comunicações. Ela afeta não somente a maneira como jornalismo e entretenimento são fabricados, mas o modo como são consumidos. Essa mudança atinge também a linguagem. Ao mesmo tempo, os mercados econômicos assistem a uma progressiva concentração de empresas nessa área, fato que tende a dar nova face à indústria com a convergência entre telecomunicações e mídia – sem falar no nascimento de empresas que inventam novas maneiras de comunicar, criam nichos inéditos de mercados ou os abocanham das empresas tradicionais. As transformações edificam uma indústria diferente, uma nova mídia. Esse movimento exige a rediscussão da ética nas comunicações, no jornalismo, porque propõe novas questões. Exige também uma compreensão mais ampla desses fenômenos até mesmo para entender como essas empresas tratam a ética. Obriga a um aprofundamento da questão moral na mídia. Em paralelo, sobrevive na formação do comunicador, do jornalista, um vácuo no que toca à ética e à moral na perspectiva da história do conhecimento, vácuo que necessita ser preenchido para um conhecimento abrangente da questão da comunicação.


Nova mídia


Este trabalho incorpora o conceito de nova mídia. Ele surgiu em oposição ao que se pode chamar velha mídia, tudo aquilo que configura a comunicação tradicional e diz respeito tanto a produtos impressos, como jornais e revistas, quanto a eletrônicos, como rádio e televisão. Todos eles contra aquilo que, no dizer de Lev Manovich, o público entende intuitivamente como novo: o que é distribuído via computador. Ele mesmo considera essa definição muito limitada, pois não se deve privilegiar o computador quando se nomeia esse novo conceito.


A nova mídia se refere aos meios que lidam com a linguagem, a informação, o entretenimento e os serviços disponíveis mediante artefatos tecnologicamente avançados em relação aos suportes conhecidos – como o papel, o rádio por ondas eletromagnéticas e o bulbo clássico do aparelho de televisão. Ou seja, tudo aquilo capaz de transformar a comunicação onipresente, pervasiva. É a comunicação multimídia composta pelo celular, pelos aparelhos portáteis aptos a carregar textos, fotos, áudios e vídeos para qualquer um e em qualquer lugar.


Tudo aquilo que atue nessa área em que telecomunicações e mídia convergem torna a comunicação digital possível. Daí o uso da expressão mídia digital como sinônimo de nova mídia.


A expressão nova mídia não se refere apenas a uma nova maneira de gerar e veicular informação e uma nova interlocução com o público que a consome. Ela abarca inclusive a ‘velha mídia’, uma vez que as novas maneiras de fazer e distribuir informação se imiscuíram nas práticas daqueles que veiculam seus conteúdos em suportes tradicionais, incorporando-as, trazendo para si os novos preceitos e uma nova forma de relacionamento com a informação e com o público – interativa, participativa.


Caminhos


Para compreender de fato aonde quero chegar, o leitor está convidado a percorrer o caminho que funda o jornalismo e a comunicação. Para entender quanto a questão ética se relativizou e se instrumentalizou como ferramenta capaz de ser provisoriamente esgrimida por qualquer lado e sob qualquer perspectiva de uma situação de conflito, faz-se necessário discutir pontos capazes de iluminar o problema da ética na comunicação, no jornalismo.


O caminho começa pela instituição do jornalismo enquanto negócio – o que ocorre desde o momento de sua fundação. E a compreensão desse negócio requer o entendimento do que o jornalismo representa. Que representação ele faz da realidade? Com a ajuda da arte (Velázquez) e de fi lósofos que investigaram o estar no mundo (Descartes e Spinoza) é possível traçar a espinha dorsal do jornalismo. Nada como ir atrás de um contemporâneo desses dois filósofos, o acadêmico Tobias Peucer, para constatar o quanto o jornalismo se enxergava da exata maneira como hoje. Por isso escarafunchou-se a primeira tese de doutorado sobre o jornalismo, defendida na Alemanha em 1690! Isso se mostrou necessário para desconstruir a maneira pela qual o jornalismo se apresenta idealmente e se desmancha na prática.


O jornalismo não deve ser interpretado sem um exame mais detalhado de dilemas clássicos capazes de exemplifi car como a realidade – e a sua interpretação – sempre é mais complexa, sempre comporta outras leituras além da primeira, numa abordagem superficial e com um entendimento carregado de senso comum.


Não há exame possível sem foco na questão da moralidade e na formação dos conceitos sólidos que a instituem, como fez, por exemplo, o filósofo Immanuel Kant. Na seqüência, foi preciso ver como se abre a porta do relativo no jornalismo, a partir do desenho de um pós-kantiano como Max Weber.


A linguagem está no cerne das discussões fi losófi cas e da comunicação, principalmente no século passado, quando se deu uma ‘virada’ lingüística. Tentar mergulhar nos mecanismos da linguagem ajuda a entender a representação que o jornalismo realiza com as interpretações que chegam ao comunicador advindas de múltiplas fontes e que se amoldam ao seu jeito de ver o mundo. Pensadores clássicos como Ludwig Wittgenstein e Mikhail Bakhtin, novos pensadores, como Félix Guattari e Gilles Deleuze, e mestres do aforismo, como Karl Kraus e Emil Michel Cioran, foram chamados para ajudar nessa tarefa. Assim como a jornalista Janet Malcolm, que adentra os limites da linguagem ao desnudar um momento no qual um conceito negativo como o da mentira é apresentado por escritores e jornalistas como algo palatável sob a denominação de ‘inverdade’.


Uma vez estabelecidas as bases do entendimento primordial das questões da comunicação foi possível examinar um problema dos mais caros à comunicação jornalística, o da objetividade. O trabalho não deixou de lado os argumentos a favor dessa dita objetividade para tentar desconstruí-los e colocá-la em seu devido lugar, fora do jornalismo. Nesse caso, a colaboração de Jorge Luis Borges e de Adolpho Bioy Casares foi decisiva. Aí o percurso se pavimenta com exemplos e contra-exemplos da nossa realidade – como os espetáculos acontecidos nas cidades de São Paulo e de Madri quando todos os veículos de comunicação, da nova e da velha mídia, se juntaram e moveram a população em casos inéditos que demonstram como a comunicação mudou e quanto ela traz de complexidade para o campo da moral. Por tudo isso, conceitos clássicos, como o da indústria cultural, e conceitos recentes, como os que problematizam a dita pós-modernidade, se articulam e são capazes de explicar um pouco da nossa realidade – que vai se transmutar sob o advento do que se pode chamar de uma revolução nas comunicações patrocinada pela guinada tecnológica, que proporcionou a comunicação em rede mundial e sustenta a convergência dos meios. […]