Na madrugada de 28 de dezembro de 1992, o Brasil foi surpreendido pela notícia da morte brutal, da atriz Daniela Perez, assassinada com18 facadas aos 22 anos de idade. Daniela – que representava Yasmin, bailarina sensual, talentosa e decidida na novela De Corpo e Alma, então exibida pela Rede Globo de Televisão no horário das 20h – foi encontrada morta num matagal algumas horas depois de ter deixado os estúdios de gravação, em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio de Janeiro.
O crime atingiu em cheio o meio artístico carioca, isto é, o coração da indústria televisiva brasileira, uma das maiores do mundo e provocou intensos e emocionados debates. A possível mistura de fato e ficção foi considerada uma das causas da tragédia, tornando-se um dos principais temas da discussão pública.
Emissoras de rádio e televisão alimentaram o público minuto a minuto com detalhes do crime. Jornais diários noticiaram o assassinato em primeira página. Suplementos especiais foram publicados sobre o assunto. Revistas especializadas, como Contigo e Amiga, publicaram edições especiais, com a biografia ilustrada de Daniela e reportagens sobre sua morte. Semanários como Veja e Isto É referiram-se ao crime em suas capas e voltaram ao assunto em longos artigos e entrevistas.
Logo na manhã seguinte, em seu interrogatório, o ator Guilherme de Pádua, 23 anos, confessou que matara Daniela. Em De Corpo e Alma Guilherme interpretava o namorado de Yasmin, Bira. O crime ocorrera poucas horas depois de Guilherme e Daniela gravarem a cena em que Yasmin rompia o namoro com Bira, personagem ciumento e controlador.
Pouco depois da confissão de Guilherme de Pádua, a polícia anunciou que sua mulher, Paula Thomaz, de 19 anos, grávida, havia admitido sua participação no crime. Paula nunca confirmou essa versão; ao contrário, sempre negou qualquer ligação com o assassinato. A suposta confissão, obtida em condições ilegais por policiais que a interrogaram sem intimação, dentro de um carro, enquanto circulavam pela cidade, justificou a abertura de um processo contra Paula. A notícia do envolvimento de Guilherme de Pádua e, possivelmente, de sua mulher no assassinato violento da jovem e promissora atriz revoltou a população.
A indignação com Guilherme cresceu ainda mais quando seu depoimento se tornou público, uma vez que o ator se colocou na posição de vítima da paixão e perseguição de Daniela, argumentando ter agido em legítima defesa. Embora a tendência inicial da Justiça tenha sido aceitar a justificativa de Guilherme e considerar o caso encerrado, a reação pública obrigou a polícia a mudar a linha de investigação.
Milhares de fãs de Daniela compareceram ao funeral para participar da homenagem póstuma ao lado de seus ídolos da televisão, que tiveram de ser protegidos da multidão pela polícia e pelos guardas do corpo de segurança da Rede Globo. O excesso de gente no cemitério São João Batista resultou em confusão e vários túmulos danificados – inclusive o da atriz. Nos dias que se seguiram, fãs continuaram a se manifestar no cemitério, em frente à delegacia de polícia responsável pelo inquérito e do prédio onde Guilherme de Pádua e sua mulher Paula Thomaz moravam com os pais dela. Inúmeros artistas demonstraram sua solidariedade à mãe e ao marido da vítima, comparecendo em massa ao enterro e à missa de sétimo dia. Chico Buarque, Marieta Severo e sua filha Sílvia Buarque, que havia sido colega de Daniela na escola, presentes à missa, foram objeto de uma foto de primeira página na Folha de S. Paulo. O Dia publicou artigo intitulado ‘Atores pressionam contra Guilherme’ ilustrado com uma foto do grito de protesto da atriz Norma Bengel em frente à delegacia.
Profissionais de televisão, em especial os que trabalhavam na equipe de De Corpo e Alma, ficaram chocados com a presença de um assassino entre eles. Glória Perez, mãe da atriz e autora da novela, o também ator Raul Gazolla, marido de Daniela, e seus colegas foram protagonistas das notícias desde o início. Suas declarações à imprensa transmitiam a firme intenção de alijar Guilherme de Pádua – um outsider recém-chegado de Minas Gerais que, depois de trabalhar como stripper e atuar em duas peças de teatro, fazia seu primeiro papel importante na televisão – do grupo de pessoas consideradas ‘colegas’.
Alguns atores do elenco da novela, como Fábio Assunção, Guilherme Karan e Eri Johnson, compareceram voluntariamente à delegacia para saber notícias sobre o andamento das investigações. Ao darem um testemunho espontâneo sobre a personalidade doce, viva e honesta de Daniela, atestaram a simples amizade que caracterizava as relações entre ela e Guilherme. Além disso, enfatizaram o caráter violento da personalidade de Guilherme de Pádua – que, de jovem promissor, capa de uma revista especializada daquele mês, passou a encarnar um monstro que nunca deveria ter sido admitido no elenco de um programa de televisão.
Depois do crime, Guilherme de Pádua foi unanimemente considerado mau ator e criatura violenta, reforçando a posição dos que criticavam a Rede Globo por contratar pessoas com pouca experiência profissional. Walter Clark, o ex-poderoso diretor da emissora, e atores experientes, com formação no teatro, condenaram a emissora por selecionar atores exclusivamente em virtude de suas características físicas, sem levar em conta talento dramático ou treinamento técnico. O elenco de De Corpo e Alma se recusou até mesmo a pronunciar o nome do personagem que Guilherme representava, chegando a alterar o texto quando necessário. Era como se, fazendo tudo que pudessem para eliminar o personagem vivido por Guilherme, seus colegas estivessem fazendo justiça no universo em que reinam: o domínio diegético da narrativa.
Em outras palavras, enquanto o personagem Bira era punido pela ação de Guilherme, Yasmin, ao contrário, era homenageada em lugar de Daniela. Ao exibir a maioria das cenas que Daniela já havia gravado – criando uma seqüência especial que reverenciava a atriz a partir do momento em que seu personagem deixava de aparecer na história e transmitindo sua imagem em flashbacks até o fim da novela –, a equipe de De Corpo e Alma expressou seu pesar e revolta pelo desaparecimento da atriz. Essa postura dos profissionais de televisão encontrou eco entre os telespectadores.
Pressionada pela multidão e sob intensa vigilância da mídia, a polícia, que inicialmente havia liberado Guilherme de Pádua, prendeu-o novamente. Paula também foi presa, após ter passado alguns dias em uma clínica de saúde particular recuperando-se de uma ameaça de aborto. Em condições de menor exposição pública, talvez Guilherme e Paula tivessem aguardado o julgamento em liberdade. Jornalistas e advogados argumentaram que não havia evidência suficiente para justificar a prisão de Paula; especialistas afirmaram que, como réus primários, ambos os acusados poderiam ter se beneficiado de privilégios garantidos pela legislação brasileira, como, por exemplo, o direito de aguardar julgamento em liberdade. No entanto, da perspectiva do senso comum, permitir que Guilherme e Paula aguardassem o julgamento em liberdade significava a impunidade de um crime hediondo. Com o argumento de que os dois acusados corriam o risco de ser linchados pela multidão, a polícia justificou a ordem de prisão.
A especulação sobre como e quando fatos da vida real atingem a narrativa ficcional tornou-se um tema relevante na discussão pública, expressando os paradoxos de um gênero que, de seriado voltado para as mulheres e financiado e produzido por companhias de sabão, passou, ao longo de 20 anos, a fenômeno nacional de comunicação multiclassista e produto de exportação líder de audiência. Transbordando do campo definido como ‘feminino’ ao qual se destinava, a novela ganhou as primeiras páginas, as seções editoriais dos jornais diários e a atenção de parlamentares e juristas.
A intensa publicidade introduziu informações contraditórias no caso e chamou a atenção para a fragilidade das versões existentes, mas não logrou elucidar o crime. Falsas testemunhas se apresentaram, atraídas talvez pela possibilidade de aparecer no noticiário. Outras testemunhas, que pareciam importantes, desistiram de vir a público.
As evidências indicavam que um dos dois acusados – ou ambos – havia cometido o crime, mas não especificava quem. Guilherme retificou sua confissão para incriminar Paula, que negou sua participação no crime e atribuiu a responsabilidade a Guilherme. O promotor, assistido por um advogado contratado pela família da vítima, acusou os dois réus.
A imprensa chamou a atenção para questões cruciais que a investigação, desde o início considerada insatisfatória, deixara em suspenso. Algumas dessas questões tinham implicações legais, influindo na determinação da duração da pena a ser imposta aos réus ou nas condições em que poderiam ser soltos em regime de liberdade condicional. A identidade do(s) criminoso(s), a seqüência de eventos, a arma utilizada e as motivações do crime nunca foram elucidadas.
Além de questões técnicas referentes à execução do crime, a imprensa especulou sobre suas motivações ocultas. O crime teria sido premeditado? Por que um ator representando seu primeiro papel importante na televisão arriscaria uma carreira promissora? Teria Daniela um envolvimento amoroso com o ator que fazia o par romântico de sua personagem na novela? Estaria seu casamento com Raul Gazolla em crise? Daniela estaria pressionando Guilherme para que tivesse um caso com ela? Ou seria o contrário, como a família e os amigos da atriz afirmavam? Estaria Guilherme recorrendo à amizade de Daniela para suportar suas crises? Estaria apaixonado por ela? Ou simplesmente interessado em manter relações íntimas com a filha da autora da novela para aumentar as chances de seu personagem na trama? O rompimento do namoro dos personagens teria ocasionado uma redução na importância do papel do personagem de Guilherme, levando-o a tentar se vingar?
Os acusados permaneceram na cadeia por quatro anos até o julgamento. Durante esse tempo nasceu o filho deles, e Guilherme mudou sua versão do crime, passando a acusar Paula como única responsável pelo assassinato de Daniela. O casal se divorciou.
Condenados à punição máxima permitida pelo Código Penal, os réus tiveram suas penas sucessivamente abrandadas. Em 1999, sete anos após o crime, Paula e Guilherme passaram ao regime de liberdade condicional, privilégio que a lei brasileira garante a réus primários com bom comportamento na prisão. Ela ingressou na faculdade, e ele foi trabalhar em Minas Gerais. Em 2001, o ex-ator obteve novos benefícios legais e, no início de 2002, finalmente conseguiu a liberdade.
O crime gerou repercussão nacional e internacional inédita. Mobilizou a indústria da televisão em suas diversas conexões com o público, o Judiciário, o Executivo, a imprensa local e estrangeira. As reverberações desse fato são um elemento valioso para nos ajudar a entender o significado da telenovela no Brasil dos anos 1970 aos anos 1990 – gênero que, durante esse período, capta e expressa redefinições nos domínios masculino e feminino, público e privado, da notícia e da ficção.
É nessa condição que o caso Daniela Perez abre esta reflexão sobre o papel da telenovela no Brasil. A notícia da morte de Daniela veio a público no mesmo dia – 29 de dezembro de 1992 – em que o Congresso Nacional confirmava o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, decisão que coroava meses de denúncias, investigações e manifestações populares contra o primeiro presidente eleito por voto direto após 25 anos de autoritarismo. Sintomaticamente, a morte da atriz recebera mais atenção na mídia impressa e eletrônica do que o afastamento definitivo do presidente, a essa altura já fora do governo.
No contexto internacional, a história de Daniela Perez representou o Brasil da mesma forma que, em outros momentos históricos, ícones como Carmem Miranda ou Pelé, o samba e o futebol o fizeram. Na esteira da construção de uma identidade nacional merecedora de destaque em outros países, o assassinato da jovem atriz evidenciou e reforçou uma versão contemporânea e high-tech da imagem antropológica clássica do ‘selvagem’, ‘primitivo’ e ‘exótico’, que agiria segundo critérios alheios à racionalidade ocidental.
A CNN noticiou o crime. Jornais e revistas internacionais como o The New York Times e a New Yorker publicaram a história. Essa repercussão por sua vez se tornou notícia no Brasil. O jornal O Dia, por exemplo, informou que até um diário de Hong-Kong dera atenção ao caso, enfatizando que a notícia chegara ao ‘outro lado do mundo’.
Ao tentarem responder a algumas das perguntas acima mencionadas, espectadores e observadores internacionais passaram a discutir o papel das novelas no Brasil. Em artigo na revista New Yorker, a ensaísta Alma Guillermoprieto também constatou que a mídia e o público brasileiros deram mais espaço e atenção ao assassinato da atriz do que à oficialização do impeachment do presidente. Ao especular sobre as razões disso, afirmava: ‘Os brasileiros descobriram a virtualidade anos atrás … Eles nunca sabem quando estão entrando na tela e quando estão saindo.’
Proeminentes jornalistas e psicólogos não deixaram de participar do debate sobre o crime. Representantes de instituições da sociedade civil, como dom Lucas Moreira Neves, primaz do Brasil e arcebispo de Salvador; Lígia Doutel de Andrade, presidente do Conselho Estadual da Condição Feminina do Rio de Janeiro; Rosamaria Murtinho, presidente do Sindicato dos Artistas do Rio de Janeiro; o ministro da Justiça da época e o presidente da República, Itamar Franco, foram pressionados a garantir a lisura das investigações e possíveis modificações na legislação criminal.
Expressando a noção de que o que aparece na novela tem poder normativo, e de que o domínio da ficção televisiva faz parte do território de jurisdição judicial, o juiz de uma pequena cidade de Minas Gerais proibiu a transmissão de imagens do personagem vivido por Guilherme de Pádua.
A mídia escrita e eletrônica indagava-se: ‘Até quando a Rede Globo iria transmitir imagens do assassino e de sua vítima?’, ‘Até quando os telespectadores poderiam apreciar imagens de Daniela no papel de Yasmin?’, ‘Qual seria o fim de seu personagem na novela?’.
A possível diluição de barreiras entre os domínios da ficção e da realidade tornou-se o assunto preferido da imprensa, como sugere a manchete da notícia mencionada, veiculada em um jornal de Hong-Kong: ‘Assassinato mais estranho que ficção’. Os jornais editaram cadernos especiais com uma variedade de ensaios a respeito de como os brasileiros misturam ficção e realidade. O Jornal do Brasil publicou um editorial chamando atenção para a responsabilidade das novelas na difusão da violência. No mesmo jornal, um artigo de dom Lucas Moreira Neves responsabilizava, nas palavras do religioso, ‘a televisão brasileira e … a novela das oito’ pela morte da atriz. Ambos os artigos condenavam a novela. Naquelas circunstâncias, chegava-se a insinuar que Glória Perez, como autora da trama, teria responsabilidade na morte trágica e escandalosa da própria filha. Nesse debate, a Rede Globo e as novelas, especificamente, apareceram como possíveis causas da tragédia.
A Rede Globo procurou desviar o foco da discussão enfatizando a natureza criminosa de Guilherme de Pádua e colocando em sua pauta a inclusão da pena de morte no Código Penal Brasileiro. Porém, devido ao caráter polêmico da proposta, rejeitada pela Igreja católica e por personalidades liberais, entre elas a própria Glória Perez, deixou de lado o assunto. Glória, inclusive, prevendo, como viria a se confirmar, a ineficácia a médio prazo da condenação dos acusados, iniciou uma campanha nacional para mudar o Código Penal de maneira a evitar que assassinos réus primários pudessem gozar do privilégio da liberdade condicional.
As especulações sobre o crime reduziram o caso a uma batalha melodramática do bem contra o mal que encobriu o debate sobre a responsabilidade da televisão – tema que seria retomado quatro anos depois, por ocasião da disputa entre o Poder Judiciário e as emissoras de televisão sobre o direito de transmissão do julgamento. A polêmica em torno da morte de Daniela Perez fortaleceu a noção de que as novelas influenciam e estimulam, positiva ou negativamente, comportamentos coletivos e individuais.
O tema central de De Corpo e Alma era o transplante de coração. A exposição do problema da carência de órgãos para operações cirúrgicas desse tipo provocou o debate público e o aumento sensível de doações. Um notável cirurgião discutiu o aumento inédito no número de doações em entrevista às páginas amarelas da revista Veja. Com a morte de Daniela, a influência negativa do gênero veio à tona. A novela ocupou o noticiário com detalhes de amor e ódio na relação de duas figuras públicas que interpretaram um par romântico na ficção e estimulou o debate sobre as relações entre fato e ficção, televisão e realidade, representação e experiência, teoria e prática, temas que estiveram na ordem do dia naquele ano de intensa mobilização política que foi 1992.
No drama da morte de Daniela, Glória Perez passou por provações extremas. Além de enfrentar a perda violenta e prematura da filha, a consagrada autora de novelas chegou a ser responsabilizada por seu assassinato. Porém, sem se deixar abater, defendeu Daniela contra as acusações de assédio sexual feitas por Guilherme de Pádua e não deixou de escrever De Corpo e Alma. Como se não bastasse, engajou-se nas investigações sobre o crime e representou o papel, quase impossível, admirado e respeitado, de uma mulher firme e decidida.
Na sucessão de fatos que se seguiram à morte de Daniela, sua mãe foi considerada uma mulher ‘forte’, termo que os telespectadores usam para caracterizar suas personagens preferidas, as que correspondem ao ideal de mulher veiculado pelas novelas. Sob esse ponto de vista, Glória Perez personificou o modo como as novelas misturam questões íntimas e políticas, públicas e privadas. Ao lidar com a tragédia, sua imagem foi se transformando, adquirindo um pouco da leveza que a filha transmitia. Nesse sentido, essa é uma história sobre a mulher, o trabalho e a maternidade.
Para defender sua filha e seu ofício, Glória Perez atribuiu a culpa à natureza delinqüente dos assassinos, continuando a escrever De Corpo e Alma como se o trabalho pudesse distrair e diminuir sua dor. Escolheu um final feliz para a personagem interpretada pela filha e manteve sua imagem no ar em inúmeros flashbacks da atriz, no papel da charmosa e talentosa bailarina que subiu na vida porque sabia o que queria, esticando ao máximo sua vida roubada.
Em contraste com a decidida personagem Yasmin, com a suavidade de Daniela e com a própria Glória, mãe guerreira, as figuras masculinas da tragédia real pareceram fracas. O marido da vítima, Raul Gazolla, depois de perder o controle durante o velório, distanciou-se do caso e nem esteve presente às sessões finais do julgamento. O pai de Daniela, divorciado da mãe, pouco apareceu. Os dois irmãos mais novos da atriz também estiveram quase ausentes. Outra figura masculina – o protagonista da tragédia, Guilherme de Pádua – ficou congelada no papel inescapável de monstro.
Veredicto, transparência e opacidade
No início de 1998, a morte de Daniela voltou a ocupar o noticiário. Na ocasião, bem antes de completar os dezoito anos e meio de sentença, Paula Thomaz foi privilegiada com o regime de prisão semi-aberta, pois havia cumprido um sexto da pena e tivera bom comportamento. Em uma decisão impensável em 1993, dado o grau de ultraje público e mobilização da mídia, o juiz Carlos Alfredo Flores da Cunha, da Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro, concedeu o benefício requisitado pelos advogados de Paula Thomaz. Trabalhando em seu habitual ritmo lento, a Justiça brasileira resistiu orgulhosamente ao apelo de urgência transmitido pela cobertura televisiva do assassinato.
Ao permitir que Paula Thomaz passasse os dias fora da prisão, o juiz encarregado do caso exerceu plenamente sua autoridade. Talvez seu ato tenha ajudado a restabelecer a autonomia dos procedimentos jurídicos baseados as decisões individuais de foro íntimo, guiadas por instrumentos técnicos, tomadas por profissionais capacitados e supostamente livres da influência de uma opinião pública formada pela narrativa, questionável e emocional, produzida pela televisão.
Profissionais do Judiciário tentaram controlar o que consideravam uma difusão ameaçadora de informação sensacionalista descontrolada, formadora de uma opinião pública emocional, instável e fluida. Ora, seria deles a responsabilidade de proteger regras e procedimentos definidos por mecanismos legais, do que reputam como ingerência imprópria da opinião pública. Em sua visão, um espaço público democrático não significava um espaço literalmente transparente. Para os juristas, o isolamento do tribunal garantiria que o julgamento fosse mais acurado, pois resguardaria jurados e testemunhas da pressão das câmeras. Para eles, a ausência de visibilidade, nesse caso, protegeria, em vez de ameaçar, o bom funcionamento da Justiça.
O conflito entre o Poder Judiciário e as emissoras de televisão sobre o que devia e o que não devia ser televisionado explicita diferentes concepções acerca dos mecanismos que devem reger o espaço público. Profissionais de televisão enfatizaram que o julgamento democrático só teria a se beneficiar com a cobertura ao vivo, em tempo real, de todas as fases do processo. Para eles, a verdade dependeria de transparência, que por sua vez dependeria do fluxo ilimitado de informação visível que uma indústria televisiva comercial pluralista pode garantir.
Certos profissionais de televisão acreditam que a intervenção dos meios de comunicação no contexto social se dá de forma isenta, como se a televisão se limitasse a transmitir fatos, como se fatos fossem dados a priori. Concepção que pode ser considerada ingênua, uma vez que subestima a interferência de fatores como ênfases, enquadramentos e jogos de poder que limitam ou estimulam a maior ou menor visibilidade de certas imagens na definição dos acontecimentos. Nos anos 1990, após um longo período de controle autoritário, o jornalismo procurava se apresentar como isento, independente do governo e do Judiciário. Um espaço público livre supõe uma opinião pública bem informada e supostamente apta a mudar o rumo dos acontecimentos. A televisão se apresenta como fornecedora privilegiada da maior quantidade possível de informação e imagem sobre cada detalhe dos fatos importantes. Mas será essa almejada transparência auto-evidente?
No caso da morte de Daniela Perez, o debate entre o Judiciário e as emissoras de televisão versou sobre os mecanismos que deveriam ser seguidos para se definir a verdade sobre um crime. Os juristas duvidavam da possibilidade de um julgamento justo sob a vigilância constante da reportagem ao vivo. Mas a pergunta também pode ser formulada ao contrário: será possível um julgamento justo sem a garantia da vigilância dos telespectadores? Quem deve ter acesso a qual informação, quando e como?
Novelas como pré-interação
A partir dos anos 1980, estudos de recepção sob enfoques variados modificaram a ênfase da pesquisa sobre a cultura de massa. O deslocamento da pesquisa do âmbito da produção – dimensão que em geral reafirma a reprodução de modelos ideológicos hegemônicos – para o estudo de contextos de recepção buscou revelar a possibilidade de interpretações diversas para textos iguais.
Essa ênfase na recepção pode ser encontrada, nos níveis histórico e conceitual, em trabalhos que se situam na linhagem da Escola de Frankfurt, ou em trabalhos empíricos sobre situações contemporâneas, que seguem a linha dos estudos culturais inspirados na pesquisa gramsciana da Escola de Birmingham na Inglaterra. Estes últimos, de certa forma, recuperam a abordagem dos estudos da chamada ‘sociologia pluralista’ norte-americana, da qual Paul Lazarsfeld é um dos expoentes e que inspirou as técnicas usadas desde então nas áreas de marketing e publicidade.
Estudos de recepção muitas vezes recorrem a abordagens identificadas com a antropologia para entender como ‘ver televisão’ está entre as múltiplas atividades que constituem a vida cotidiana dos telespectadores. Essa literatura discute os sentidos peculiares que telespectadores situados em contextos específicos de recepção atribuem a obras televisivas. Esse interesse de estudiosos da mídia por métodos antropológicos é paralelo à preocupação antropológica com a ordem global contemporânea, e especificamente, com as maneiras como os fluxos globais de mídia são apropriados em situações locais e nacionais.
Uma profusão de estudos empíricos resultou desse foco na recepção da televisão. Pesquisadores usaram técnicas qualitativas, como grupos focais ou cartas de fãs em resposta a um anúncio publicado em uma revista especializada, para analisar como os telespectadores interpretam programas de televisão estrangeiros. Esses trabalhos discutem como sentidos e imagens relativos a programas norte-americanos são apropriados em contextos locais. Outros pesquisadores recorreram ao uso de entrevistas, mais ou menos extensas, para captar interpretações de telespectadores sobre novelas na América Latina.
Se por um lado os estudos de recepção foram bem-vindos por enriquecerem a compreensão da variação de sentidos que os programas assumem em contextos sociais e geográficos distintos, por outro foram criticados pela fragilidade da pesquisa empírica realizada. Embora as técnicas fragmentadas de pesquisa qualitativa possam ser suficientes para demonstrar que textos televisivos são interpretados de acordo com contextos e estruturas culturais locais, autores como John Tomlinson e Emile McAnany chamam a atenção para problemas de representatividade de amostras relacionados à escolha de entrevistados, à definição do número ideal de entrevistas ou cartas e à questão de como situar e interpretar dados de entrevistas no contexto mais amplo da vida cotidiana. Essas ressalvas metodológicas questionam o poder de generalização dos estudos de recepção.
A chamada ‘etnografia de recepção’ da televisão seria uma alternativa capaz de fornecer uma descrição compreensiva sobre o que os telespectadores vêem em determinados programas. A observação participante em contextos de recepção seria capaz de ir além do que espectadores falam ou escrevem quando perguntados, permitindo a abordagem de como a TV, ou determinados programas, se insere no cotidiano das pessoas que assistem.
Estudiosos enfatizam a importância da utilização dessa prática etnográfica em pequenos grupos, em famílias ou individualmente. Também sugerem que a pesquisa não deve se limitar a questionários e outras técnicas quantificáveis, devendo envolver a observação de campo e a imersão do pesquisador no universo pesquisado. Considerando a ênfase de Michel de Certeau na relevância da vida cotidiana, John Fiske aponta as conexões entre o ato de assistir à televisão e as rotinas cotidianas dos telespectadores. As chamadas ‘etnografias de recepção’ foram bem recebidas nas escolas de comunicação, onde se tornaram uma alternativa ao escopo limitado das técnicas quantitativas de análise de conteúdo e aos questionários de pesquisa de audiência que marcaram os estudos pioneiros de textos televisivos.
Críticas recentes sobre os estudos de recepção observam que a ‘audiência’, segundo concebida pelos pesquisadores de mercado, não existe como corpo social empírico. A audiência funcionaria como instrumento conceitual que alimenta as atividades da indústria televisiva, mas não possui realidade face a face, não podendo portanto ser estudada sob essa perspectiva. Alguns autores advertem contra a possível reificação da noção de audiência tal como tratada em estudos de recepção. Apontam também certa romantização do caráter popular presente no conceito de cultura ou subcultura de resistência e encontrada nos contextos de recepção.
O movimento em direção ao estudo da recepção representou uma mudança teórica positiva, que aprimorou a qualidade e a complexidade dos estudos especializados. O trabalho pioneiro de Stuart Hall em Birmingham sugeriu que significados codificados podem diferir de significados decodificados, abrindo portanto a possibilidade de o mesmo texto admitir leituras plurais. O significado aqui torna-se uma dimensão crucial de um processo menos predeterminado do que o sugerido por autores que não consideram a possível variação de interpretação dos mesmos textos. No entanto, nesse esquema, textos de mídia conservam a falta de especificidade anteriormente abordada. A diversidade de significados está situada no pólo da recepção.
Mensagens permanecem reduzidas a ideologias dominantes predeterminadas, que podem, no entanto, estar sujeitas a interpretações alternativas. A ênfase na recepção não necessariamente superou o descaso com que a literatura especializada em geral aborda a produção de significados. De uma maneira ou de outra, as diversas teorias sobre a indústria cultural acabam reduzindo-a a funções de reprodução do status quo. É possível verificar essa mesma ausência de problematização do significado, muitas vezes inusitado, dos produtos da indústria cultural no trabalho de pesquisadores ligados à visão pluralista, para quem os valores veiculados nos meios de comunicação são definidos por consenso social, ou seja, só seriam veiculadas idéias previamente legitimadas. Para esses estudiosos, os veículos de comunicação estão reduzidos à função de difundir valores, reforçando consensos.
Os trabalhos que focalizam a recepção ou a produção como pólos dissociados do processo de comunicação tendem a tratar a televisão como um ‘outro’ externo. Além de uma lógica comercial capitalista que determinaria conteúdos ideológicos básicos, programas televisivos não teriam especificidade própria. A televisão aparece nessa literatura como se estivesse situada fora da sociedade, reproduzindo ideologias e valores dominantes que seriam absorvidos ou repelidos, tal como emitidos, pelos telespectadores. Estudos sobre a recepção avançaram a pesquisa ao demonstrarem o caráter polissêmico que diferentes apropriações e interpretações de textos iguais em contextos diferentes implicam. O escopo da diversidade e o modo como essa diversidade está relacionada a ordens sociais difusas e/ou mutantes, às diferentes maneiras como a mídia se situa no seio de formas políticas e econômicas de organização, a convenções estéticas de produção e recepção da televisão consolidadas ao longo do tempo ainda estão por ser estudados, assim como as maneiras como os próprios textos interferem na determinação de leituras diversas.
O reconhecimento de que programas televisivos podem adquirir significados diferentes, e de que esses significados não são univocamente definidos no momento da produção, está relacionado aos questionamentos pós-estruturalistas sobre a multiplicidade invariável do sentido – e as questões teóricas com as quais nos defrontamos refletem o estado atual desse debate. Se conteúdo e significado não são redutíveis a ideologias pressupostas, como defini-los e descobri-los? Se o significado depende principalmente de contextos de recepção (os quais podem estar relacionados a variáveis geográficas, de classe e gênero, a delimitação de contextos constituindo uma questão em si mesma), o texto, ou a obra audiovisual em nosso caso, teria pouca relevância. O significado estaria então localizado no contexto, com o texto possivelmente reduzido a um ícone de posicionamento social. Ou o texto ainda conserva alguma especificidade? Se afirmativo, como alcançá-la?
A morte aberrante de Daniela Perez sugere que as novelas extrapolaram o mundo tal como imaginado pelas forças políticas, culturais e artísticas atuantes na década de 1970, quando esse tipo de seriado se consolidou como principal produto de uma indústria em expansão. O caso Daniela é uma entre outras evidências de que, ao longo dos cerca de 20 anos que separam o momento em que a novela foi alçada à posição de produto estratégico e o início dos anos 1990, a trajetória do gênero extrapolou as intenções iniciais dos militares com sua censura rigorosa e sua política oficial de televisão, a serviço da integração nacional. O envolvimento emocional de massa não correspondeu à expectativa que teledramaturgos de esquerda depositavam na capacidade de dramas, irônicos e céticos, contribuírem para elevar a consciência crítica dos telespectadores. O caso de paixão sangrenta também escapa à lógica do mercado consumidor, baseado no Rio de Janeiro e em São Paulo, supostamente limitado a reproduzir noções e valores sociais consensuais de forma a expandir com mais eficiência o alcance do consumo, a despeito da desigualdade social e das diferenças regionais.
O crime mobilizou articulações que fora de situações de crise pouco aparecem. O fato de o Poder Judiciário e as emissoras de televisão compartilharem o desejo de elucidar o crime, somado à coexistência de opiniões contraditórias sobre como as apurações deveriam ser conduzidas e qual deveria ser o papel da televisão em um espaço público plenamente livre e democrático, não evitou – e talvez tenha até favorecido – a conclusão pouco objetiva do caso. Embora esteja claro que Guilherme, ou Paula, ou ambos assassinaram Daniela barbaramente, não se sabe exatamente quem o fez, como ou por quê. Os mistérios que restaram revelam os mecanismos de funcionamento de um espaço público opaco, que resiste à resolução clara.
Nesse estudo, as telenovelas situam-se na confluência dessas indagações. Como cada capítulo delas está carregado de resultados de interações prévias, ocorridas não só na véspera de sua exibição mas também ao longo dos anos, entre certos segmentos de telespectadores e produtores, elas são o assunto privilegiado nesse debate. O gênero poderia ser definido como um jogo complexo de interações desiguais. Os capítulos são escritos enquanto a novela está no ar, configurando um fenômeno ‘proto-interativo’ especialmente adequado para o estudo das noções e práticas de mediação eletrônica envolvidas na produção e recepção de significados e representações no mundo contemporâneo.
A novela é uma obra audiovisual que resulta de um multiálogo e faz a mediação da relação entre produtores e receptores, incorporando uma gama de significados possíveis, nem sempre intencionais. Telespectadores podem compreender certos produtos de diferentes maneiras. Profissionais especializados em comentar televisão na própria tevê, no rádio, ou na mídia impressa, figurinistas, músicos que compõem trilhas sonoras, fãs, pesquisadores de mercado e outros profissionais podem ser considerados ‘mediadores’ nesse processo de produção de significados.
O objetivo deste estudo, originalmente escrito como tese de doutoramento defendida no Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago, sob a orientação heterodoxa, estimulante e desafiadora do professor Marshall Sahlins, é mapear o equacionamento da produção de significados na história recente do Brasil. Ao integrar os estudos etnográfico e histórico com a análise das convenções de linguagem de algumas novelas ao estudo dos mecanismos de produção e recepção, este trabalho pretende contribuir para a discussão de questões como: Que mecanismos convencionais de produção e recepção se estabeleceram na história recente do País? Como essas convenções de produção e recepção captam e expressam mudanças em curso? Em que medida a história privada de personagens definidos nos marcos do melodrama se tornou referência para a definição de tipos ideais nacionais de comportamento? Como pensar as relações entre produtores, criadores, Estado e receptores? Em que medida se estabelecem laços de cumplicidade entre consumidores e produtores que vão definindo de maneira sempre distorcida e desigual os significados produzidos?
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Antropóloga, crítica de TV e professora da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)