O governo do general Ernesto Geisel e suas ações e omissões são a chave da magnífica obra de Elio Gaspari. O autor jamais escondeu esse fato. O livro nasceu de uma proposta para fazer um pequeno ensaio – coisa de umas cem páginas – intitulado ‘O sacerdote e o feiticeiro’. O quarto volume da série de cinco, que deverá ir para as livrarias na semana que vem, terá seu foco no governo Geisel, o período em que o Sacerdote (Geisel) e o Feiticeiro (general Golbery do Couto e Silva) estiveram no poder e produziram aquilo que, na avaliação de Gaspari, foi sua obra mais importante: ‘desmontaram a ditadura’.
É verdade que a anistia e o fim do AI-5 foram obra da dupla. E é verdade também que essas duas iniciativas em boa medida produziram uma mudança qualitativa no regime. De todo modo, se a ditadura foi desmontada a democracia estava longe de ter sido conquistada. E Gaspari é honesto: a dupla desmontou a ditadura porque ela era uma ‘bagunça’. Nem o sacerdote nem o feiticeiro desejavam a democracia.
Antes da anistia e do fim do AI-5, a censura à imprensa foi sendo abrandada. Na verdade, a censura foi se tornando mais arbitrária ainda. Qualquer censura é arbritrária. Mas, entre 1975 e 1978, jornais que eram a ela submetidos iam, um a um, sendo liberados. Os primeiros foram os jornalões: O Estado de S. Paulo viu-se sem censura no dia da comemoração do seu centenário, em 1975. Depois, Veja. O fim da censura em Veja implicou uma negociação que resultou na saída de Mino Carta da revista.
O Pasquim, quanto atingiu sua edição de número 300, viu-se sem censura. A edição foi apreendida e Millor Fernandes, que o dirigia, afastou-se da publicação por discordar de seus companheiros sobre os novos rumos do jornal. O semanário alternativo Opinião deixou de circular, em 1977, por não suportar mais submeter-se à censura. A última edição, impressa de forma desobediente, foi feita escondida dos censores. Policiais tiveram que recolher a edição na gráfica e nas bancas. O final da censura implicou apenas no fim dos censores em Movimento e O São Paulo – este último, jornal da cúria metropolitana de São Paulo, bravamente dirigida por Dom Paulo Evaristo Arns.
Os seis anos de governo Figueiredo ficarão de fora da obra de Gaspari. Foi uma escolha do autor, que, claro, tem todo o direito de escolher o que vai ou não vai fazer parte de sua obra. Mas se com este quarto volume da coleção vamos para mais de duas mil páginas escritas, a explicação para a ausência destoa com suas duas palavras. Figueiredo ficou de fora por desimportante. Para a ‘choldra’, para usar uma expressão do gosto do autor, não foi um governo desimportante. Para a construção democrática, igualmente não. Fica o registro deste observador.
Clube fechado
No governo Geisel, período que será relatado neste quarto volume, Gaspari ocupava um cargo de direção no Jornal do Brasil. Era um governo curioso. O presidente deu uma ou duas entrevistas à imprensa durante viagens ao exterior. No Brasil, a Associação dos Jornalistas de Economia, uma entidade que agregava os jornalistas que cobriam a área econômica, tanto insistiu que conseguiu uma entrevista com o presidente Geisel em território brasileiro. Foi a única.
Geisel, portanto, não falava. Ou melhor, não falava para a imprensa em geral. É verdade que as palavras do presidente por várias vezes sinalizaram sístoles ou diástoles no processo de lenta, segura e gradual distensão. Sístoles e diástoles são os movimentos cardíacos de contração e dilatação. O feiticeiro Golbery do Couto e Silva usava essas palavras para sinalizar avanços e recuos nos movimentos da tal ‘abertura lenta, segura e gradual’, expressão igualmente criada e adjetivada por ele.
Os discursos presidenciais eram a fonte oficial do que se passava nas hostes governistas da política. O ministro da Justiça, Armando Falcão, que ocupara o mesmo cargo e função anos antes, no governo Juscelino Kubitscheck, era outro que não falava com jornalistas. Ficou conhecido por uma frase: ‘nada a declarar’, que pronunciava como um mantra, sempre que cruzava com jornalistas. Nos bastidores, Falcão alimentava alguns jornalistas com boas informações. Informações e jornalistas eram selecionados. Mas pouquíssimos leitores de jornais sabiam que as matérias oriundas de ‘fontes bem informadas do Palácio do Planalto’ eram matérias cujas informações vinham do ministro Armando Falcão.
Mas havia uma outra fonte que falava com alguns jornalistas: o feiticeiro Golbery do Couto e Silva, que ocupava a chefia da Casa Civil da Presidência da República. Oficialmente, sabe-se apenas que Golbery mantinha boas conversas políticas com um seleto grupo de jornalistas. Elio Gaspari, então diretor do Jornal do Brasil, era um deles. Foi no decorrer dessas conversas que teve início a amizade entre Gaspari e Golbery. Amizade que permaneceu até a morte do último. Amizade que permitiu que o arquivo pessoal de Golbery, organizado pelo capitão Heitor de Aquino Ferreira, fosse doado a Gaspari. Este amontoado de papéis, documentos e livros é, assumidamente, a base sobre a qual Gaspari montou sua obra que agora chega no quarto volume. Sobre esta questão, vale a pena ver o artigo ‘A quem pertence o espólio de Golbery?’ de Alberto Dines, publicado neste Observatório [remissão abaixo].
Mérito pessoal
Tudo isso é sabido. E o autor deixa claro que jamais pretendeu fazer a história da ditadura. Mas a obra, nos três primeiros volumes já publicados, é boa, magnificamente apurada e escrita, prenhe de informações novas e indispensável para quem quer saber o que foi a ditadura. Mas é uma versão da história. A versão oficiosa do sacerdote e do feiticeiro. É verdade que ambos, aqui ou ali, aparecem de corpo inteiro. Gaspari afirma e reafirma que a dupla desmontou a ditadura. Jamais o autor os apresentou como democratas. Nunca o foram. Nem jamais se constrangeram por não terem sido democratas.
O governo mais obscuro da ditadura, espera-se, finalmente será apresentado ao distinto público agora neste quarto volume da obra. O governo que enfrentou os ‘duros’ não porque eram duros, mas porque não queriam prestar contas de seus atos. Gaspari vai nos mostrar que a ditadura foi desmontada porque era necessário ‘pôr ordem na bagunça’. Apenas isso e nada mais.
O governo que cassou mandatos, desapareceu com opositores, fechou o Congresso, criou a figura institucional do senador biônico, editou o ‘pacote de abril’ será finalmente conhecido na versão oficial. Ou oficiosa.
Aqui neste Observatório, cuidamos de imprensa e de jornalismo. Eis porque o livro de Gaspari merece a atenção. Elio Gaspari é jornalista. Nenhum historiador até agora ousou estudar este período com a dedicação do jornalista Gaspari. Este mérito, até agora, ninguém retira dele.