Professores costumam usar textos publicados no Observatório da Imprensa, em suas salas de aula, geralmente para mostrar aos alunos como produzir um bom texto. Para isso, analisam a coerência e a coesão, os procedimentos de estruturação e os fatos gramaticais de um texto. Fazem isso com os bons textos, que evidenciam não apenas domínio do idioma, como também familiaridade com o tema e o assunto tratados. Fazemos isso no ensino médio, quando ainda se ensina aos estudantes o processo de produção de textos. Nas faculdades de comunicação, aproveitam-se as peças escritas para discutir técnicas jornalísticas e mostrar seu uso a um público que ‘supostamente’ já domina esse processo.
O texto de ‘Pesquisas em xeque – A cupidez dos números‘ é ótimo para isso. Mesmo que o professor não concorde com ele, mas valorize o contraditório, pode usá-lo deixando claro aos alunos que não o endossa, mas garante a todos o direito de conhecê-lo, discuti-lo, criticá-lo, concordar com ele ou não.
Uma aula com esse texto pode render 100 minutos de leitura, análise e discussão do texto, pode extrapolar para a discussão da realidade brasileira, das pesquisas, dos métodos estatísticos, do uso político dos resultados. Esse trabalho pode mostrar também outros dados, que os alunos com certeza apontarão, antes da reflexão e das conclusões que forem capazes de construir a partir do texto. O primeiro e mais superficial diz respeito ao domínio da gramática (ah!, a ‘dramática’, como dizem os jovens), cujas armadilhas enredam até o douto jornalista e comprometem a qualidade textual, não porque se exige elitistamente que ele saiba ‘escrever bem’, mas porque o fato de não o fazer coloca em risco a credibilidade autoral.
Inadequação vocabular
Assim, os estudantes identificarão a quebra da concordância verbal logo no parágrafo inicial: ‘Pesquisas. Desconfio delas. Primeiro por causa da ilusória cientificidade que as norteiam.’ Ora, o sujeito do verbo ‘nortear’ é ‘ilusória cientificidade’; logo tal verbo deve estar no singular. Há mais: ‘É o que indica levantamentos de insuspeitos organismos internacionais …’ Faça-se a pergunta simples: quem indica? Resposta: ‘levantamentos de insuspeitos organismos internacionais’; logo, o verbo indicar deve estar no plural. Para além de pecadilhos ortográficos, como o salário-mínimo sem hífen e o exeqüível sem trema, há otras cositas más (oh, muito más!), que um douto e atento escriba sabe evitar.
Eis uma que, essa sim, compromete o texto, por deixar sua estrutura capenga. Quem diria que um simples sinal de pontuação (.) pudesse causar tamanho estrago? Vejamos: ‘Não é segredo para ninguém que se por um lado o país conta com um bom parque industrial, crescentes safras agrícolas, com instituições democráticas consolidadas e liberdade de imprensa. Por outro lado, há entraves que o condenam a patinar no atraso e na desigualdade.’
Maldito ponto! Como foi se intrometer aí, finalizando abruptamente uma oração (‘se por um lado o país conta com …’) que aguardava sua conclusão? Pois a coitada ficou lá, vendo de longe seu complemento, sem que o sentido conseguisse finalizar a corrida no pan lingüístico para cruzar a linha de chegada e abraçar o ‘Por outro lado’ que inicia a oração seguinte… Isso é que é maltratar o idioma!… E ainda houve o problema da inadequação vocabular: ‘patinar no atraso e na desigualdade’ – os meninos e meninas do ensino médio com certeza recomendarão que se use o verbo ‘patinhar’, que expressa melhor o que o autor quis dizer. Ah, essa turminha se prepara para o vestibular e se preocupa muito com a qualidade do texto, por isso é tão exigente!
Posição autoral
Os estudantes sabem também que a relação entre a forma e o conteúdo é dialética: ‘Um é o outro e vice-versa, né, professora?’ Leitores atentos não se deixam enganar pelas voltas que o texto dá, quando parece falar de um assunto, mas na verdade fala de outro. Isso pode ocorrer ou porque o autor tenta abarcar o mundo e não consegue (problema de delimitação do tema?) ou porque usou um alvo para acertar outro. No primeiro caso, há ingenuidade; no segundo, má-fé.
Senão, vejamos: o título ‘A cupidez dos números’ ativa que conhecimento prévio do leitor? Ele pensa em ‘números cúpidos’, vê que o título atribui a algo abstrato (números) atributo humano (cupidez) ou também pode pensar que se atribui a algo abstrato (cupidez) atributos de exatidão, de mensuração (cupidez numérica). Enfim, o título intriga e, sem dúvida, motiva a continuidade da leitura pela inexatidão com que o autor define ‘sobre o que vai falar’. Iniciada a leitura, o primeiro parágrafo esclarece o título, embora não sem percalços gramaticais, como vimos. E esclarece também a posição autoral, de ceticismo diante das pesquisas.
Mas que pesquisas? Só ao final do parágrafo se sabe que se trata das pesquisas utilizadas para: 1) auferir popularidade de políticos – no caso específico, a do presidente Lula, tornada fictícia porque a pesquisa que a detectou foi ‘desmentida’ pela vaia que levou na solenidade de abertura dos Jogos Pan-Americanos; 2) medir o índice oficial do aumento do custo de vida, que é muito mais alto do que mostram os índices de inflação, como o autor deixa claro no segundo parágrafo.
Muita imprecisão
Feita essa introdução, inicia-se no terceiro parágrafo a crítica: à subestimação da perda de poder aquisitivo da população, à pequena recuperação do poder de compra do salário-mínimo. Não interessam mais os números das pesquisas, nem os índices calculados pelos métodos estatísticos; interessa apenas o que se esconde por detrás do ‘otimismo oficial’, segundo Berger. Esqueça-se o título do texto.
A partir daí, a artilharia se volta contra o governo Lula. Esquece-se o cronista que ‘a crise de duas décadas’ a que se refere é anterior a Lula, que mantém ‘o barco na rota traçado [sic] por seu antecessor’; e aí perdem-se os nomes, perdem-se os números, perde-se a perspectiva da história recente do Brasil. Entra no texto o jargão ‘economês’ e tem início a enumeração dos feitos e desfeitos do governo Lula, verdadeiro pastiche do senso comum dos jornalões e revistas semanais. Exemplos: ‘política econômica ortodoxa’, ‘conjuntura internacional favorável’, ‘levantamentos de insuspeitos organismos internacionais’ (ah, quisera saber quais são…), ‘alta carga tributária’, ‘protecionismo autofágico’, ‘tormento burocrático’, ‘infra-estrutura deficiente e cara’. Muita imprecisão aliada ao macaquear acrítico do discurso jornalístico hegemônico, aquele patrocinado por 12 ou 13 oligarquias detentoras dos meios de comunicação no Brasil.
Há vida inteligente
Oh, my God!!!, diria Milton Friedman, guru do liberalismo econômico. ‘Não tô entendendo nada!’, diria a Magda Orth. Os estudantes dão risadas com tamanha falta de seriedade autoral. Mas não é tudo, o melhor do febeapá vem após o subtítulo ‘Faca de dois gumes’ (onde já ouvi isso antes?), pois o Doxa passa a pertencer ao ‘grupo CartaCapital’ (Mino Carta agradece a ‘doação’!), em clara demonstração de que Berger escreve sobre o que desconhece. Se é assim, perguntarão os alunos, por que acreditar nas outras afirmações que o texto contém?
E a colher de pau vai misturando sempre, em vez de categorizar e separar ações e processos diferenciados por sua natureza intrínseca: a denúncia do ‘denuncismo’ da mídia ganha status de tese a ser desqualificada, a imprensa é alçada à condição de isenção em todos os âmbitos. O tal ‘complô midiático’ vira peça de ficção, talvez de autoria do Doxa, não? A conclusão é boa para mostrar como distorcer avaliações: ‘O grosso da opinião pública parece estar pouco se lixando para as elucubrações de nossa errática esquerda.’ Enganou-se, sr. Berger, o grosso da opinião publicada, como a sua, nessa crônica, é que está se lixando para as denúncias de partidarismo da mídia. Mas o grosso da população brasileira, aquela porção que vocês dizem beneficiada pelos programas sociais, está mesmo é se lixando para a imprensa partidária e manipuladora. Talvez esse dado mereça ser levado em conta para evitar o simplismo das análises de pesquisas que auferem a popularidade de Lula.
Importante dizer ao douto jornalista Berger que seu texto sequer engana os estudantes do ensino médio. Há vida inteligente pulsando nas salas de aula Brasil afora.
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Doutora em Literatura Brasileira, professora do Cefet-MG