Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A pedra cantada

O menino admirava em silêncio aquele bando de sujeitos malucos. Eram todos muito engraçados, faziam piada de tudo, divertiam e faziam o menino rir a valer.

E aquele menino era tão tímido, falava tão pouco, gostava mesmo era de se sentar do lado da mesa do pai, no escritório, nas tardes depois da aula, nos dias sem escola, nas férias, e ficar observando e ouvindo tudo com o mais profundo deslumbramento.

Era um lugar mágico, aquele. Com homens que trabalhavam com os pés sobre as mesas, trajando roupas divertidas e coloridas. Com canetas de todos os tipos e cores, pincéis, tintas e gente que desenhava como ninguém. Aquilo nem parecia trabalho, não seria um parque de diversões?

E o pai era realmente um superpai, o super-herói, diferente do pai dos amigos, muito engravatados, cinza, sérios, com números na ponta da língua, incompreensíveis, códigos penais, doenças infecto-contagiosas. O pai era inconfundível nos seus trajes heterodoxos, de que se dizia na moda, conjuntos safári, cor cáqui e azul-claro, inesquecíveis por todos os aspectos.

Aquele pai chegava com histórias de um lugar tão distante, tão longínquo, a que só podia chegar pela imaginação. Que saudade da Birmânia! Na Birmânia, a matemática não tinha nenhum valor, nem de dinheiro se precisava; era lugar das mil maravilhas, das mulheres mais bonitas, dos acontecimentos mais absurdos, embora tão verossímeis e divertidos. O pai era a nossa Sherazade.

Também havia os trocadilhos, os jogos de palavras, as musiquinhas sem fim, que nem sempre tinham graça, mas de que a gente ria para não fazer desfeita. Filho é para essas coisas. E não é que, de repente, pela excessiva repetição (e por certa qualidade, hoje admito), como de certas campanhas publicitárias, a gente se pegava repetindo, também.

Devia ser do gênio da raça: eram assim todos eles, aqueles malucos. E como gostavam também da boa mesa, dos bons restaurantes, independentemente de endereço ou origem. Da culinária nordestina à francesa. Da buchada ao caviar.

E não dispensavam, claro!, nunca um bom copo de bom espírito, já na hora do almoço, para iluminar as ideias. Era uma delícia. O menino até tomava uns goles.

Ter um pai publicitário, como o deste repórter que vos escreve e o do nosso entrevistado, não fica impune na vida de ninguém. Esse certo gosto pelas coisas boas, esse certo apreço pela informalidade, pelo bom humor, descontração vêm certamente daí. E isso é bom.

Marcelo Conde tentou fugir do pai, mas acabou lançando até livro de ficção, intitulado O Mesmo, em que a personagem tem a oportunidade de rever sua vida, mas não consegue mudar dela nem uma passagem sequer. Não seria, ainda que simbolicamente, o reconhecimento de uma trajetória semelhante à do próprio pai? E a aceitação da igualdade, embora com certas diferenças? E do amor pelo pai, também?

Eu, por muitos anos, não me permiti nem mesmo experimentar na prática aquele amor quase platônico da infância. Freud explica.

A Sereia da propaganda vai começar a cantar; Ulisses, na Grécia Antiga, pediu aos companheiros que o amarrassem ao mastro do navio, para não sucumbir a tão maravilhosa sedução, harmonioso canto, tem gente que fala em cera de abelhas no ouvido, vou contar um, dois, três:

***

Queria que você falasse um pouquinho da sua história. Você é do Rio de Janeiro, não é? Então, que dia você nasceu? Quem são seus pais?

Marcelo Conde – Eu nasci em 13 de setembro de 1977, meu pai é Ronaldo Conde, minha mãe é Valéria Cardoso Rocha Costa; ela é arquiteta, meu pai é publicitário, também. Na verdade, minha carreira começou como advogado, fiz Direito na faculdade.

Você terminou a faculdade?

M. C. Fiz até o nono período e parei. Já estava trabalhando com propaganda; então, não conseguia fazer direito nenhuma matéria e tal, por repetir por falta; nunca chegava na hora, nas aulas.

Onde você trabalhava? Qual foi o primeiro emprego em propaganda?

M. C. A primeira agência em que trabalhei foi a Doctor, no comecinho dela; depois fiz um estágio na DPZ, rapidinho, e parei; e não sabia se queria voltar a ser advogado, se queria ser publicitário, fiquei um ano sem fazer nada.

Você tinha quantos anos?

M. C. – Tinha 19 anos. Ainda tentei voltar para a advocacia, falei: ‘Vou tentar, vou tentar, vou tentar’. Mas não teve jeito, voltei para a propaganda.

O interesse por advocacia foi por causa de quê?

M. C. – Na verdade, no começo, queria fugir desse negócio de propaganda, até porque já conhecia como era o negócio, por causa do meu pai.

Você ia às agências em que ele trabalhava?

M. C. – É, ia sempre. Quando ele trabalhou na Almap lá no Rio, ia sempre, quando era pequeno, ficava lá de tarde, depois do colégio. Tentei fugir da propaganda, mas gostava. Gostava de ver propaganda com meu pai na televisão, os comentários, ele comentava comigo e tal. E, como estava meio na dúvida, falei: ‘Bom, vou tentar fazer Direito, porque acho que gosto e, se eu gostar, sou advogado, se não gostar, posso ser publicitário’. E o contrário não dava para fazer. No terceiro período da faculdade de Direito, comecei a estagiar: odiei.

Em que faculdade era?

M. C. – PUC-RJ [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro].

Em que lugar você começou a estagiar?

M. C. – Num escritório de Direito Trabalhista lá no Rio. Eu, provavelmente, fui o pior estagiário que já passou por aquele escritório. Não gostava. Fiquei um mês e meio e saí, falei: ‘Não, vou tentar a propaganda’. Fiz seis meses de estágio, fiquei na dúvida de novo e tal e mais um ano tentando me dedicar só ao Direito, mas não teve jeito, mesmo sabendo como é o mercado de propaganda, que é difícil para cacete. Falei: ‘Tenho que fazer isso, porque é disso que eu gosto’. Desde então, entrei numa agência e fui para outra, para outra, para outra.

Você acabou terminando a faculdade de propaganda?

M. C. – Não, nem fiz. Continuei fazendo Direito e, depois, quando fui contratado por uma agência, podia chegar de tarde ou chegar mais tarde. Mas tinha que dar prioridade ao trabalho. Então comecei a repetir direto na faculdade por causa de falta. Os professores não tinham nenhuma obrigação de entender isso, mas eu falava: ‘Pô, professor, não me repete por falta, não, porque estou trabalhando numa agência de propaganda’. E o professor: ‘Puxa, trabalhando numa agência de propaganda?!’. Não tinha muita justificativa, não é? E eu chegava vestido assim [Marcelo traja jeans e camiseta, roupas informais] dez e meia da noite, no meio da aula que acabava às onze horas; ficava de pé no escritório fazendo estágio, chegava todo arrumadinho lá e os caras olhavam para mim e falavam: ‘Puxa, o cara não faz nada e ainda é o último a chegar’. Aí comecei a repetir, repetir, repetir, falei: ‘Não vou conseguir terminar isso nunca’. Eu estava no nono período e tinha matéria do quarto período ainda para fazer, e já estava empregado, trabalhando, desisti. E aí não fiz mais nada.

Pelo que eu entendi, teve muita influência do seu pai e também uma necessidade de afirmação sua de não querer, de querer. Tem alguma coisa de seu pai, a figura paterna nessa trajetória, mesmo?

M. C. – É, teve, porque a propaganda tem um lado que encanta, principalmente, quando você é pequeno e vê os pais dos seus amigos. São todos sérios, trabalhando como engenheiro, advogado e tal. E meu pai lá, falando besteira sempre. Todos os meus amigos riam para cacete de tudo que meu pai falava. E aí tem esse encantamento. ‘Ah, não, e o cara trabalha com o pé em cima da mesa, se veste de qualquer jeito!’. E a gente vai se encantando com isso e, como eu frequentava muito as agências em que meu pai trabalhava, já sabia, mais ou menos, como é que era tudo e tal. Foi uma coisa meio natural e eu sempre gostei muito de escrever, desde o colégio. Falei: ‘Quero fazer alguma coisa em que possa escrever’. E isso foi meio natural. Mas, ao mesmo tempo, eu via como era que os amigos da idade do meu pai, um pouco mais velhos, eram tratados, como os caras foram sumindo do mercado.

Você está falando da década de 1990. Gente sendo encostada, aqueles com salários maiores começaram a ser encostados.

M. C. – É, o pessoal começou a sair, muita gente desempregada, ficou estranho. Nas outras carreiras, geralmente, acontece o contrário, o cara vai ficando mais velho, mais experiente, vai sendo mais valorizado, mais bem pago, e, na propaganda, ele é como jogador de futebol. Acho que, no Brasil, isso é mais grave do que lá fora, Estados Unidos, Inglaterra.

Prezam o cara mais experiente.

M. C. – E isso começou a me assustar um pouco. Por isso comecei a procurar outras alternativas, coisas de que poderia gostar e profissões em que, também, pudesse escrever. Achava que Direito podia ser uma saída.

E quais eram as agências do seu pai, aqueles a que você ia, você se lembra?

M. C. – Ah, a de que eu mais lembro é a Almap. Sei que cheguei a ir à MPM, quando era muito pequeno, mas lembro muito pouco. Era uma casa grande lá em Botafogo, no Rio, mas, sem dúvida, a que fui mais vezes foi a Almap, porque meu pai ficou lá 11 anos. Desde que eu tinha 5 anos, até eu sair do colégio, com 18, praticamente, ele estava lá ainda. E era muito perto da escola, então meus amigos iam de carona para casa com meu pai. A gente saía do colégio a pé e ia encontrar meu pai na Almap; ia quase todo dia lá.

Era um ambiente divertido, você falou.

M. C. – É, só tinha maluco e eu ficava lá vendo todo mundo conversando, falando besteira, riam o dia inteiro com o pé em cima da mesa. Eu ia no estúdio, os caras só fazendo besteira e era divertido. Eu era criança e gostava de passar as tardes no trabalho dele.

Você lembra de alguma campanha que viu nessa época, quando era criança, e gostou? Lembra de alguma coisa assim?

M. C. – Lembro de algumas coisas de Pepsi da época, que meu pai fazia. Lembro de uma campanha de alguma marca de café que era com a Blitz [banda de rock com Evandro Mesquita e Fernanda Abreu, ícone dos anos oitenta]. Teve uma reunião, acho que deve ter sido de pré-produção, de produção, sei lá, de filme com os caras da Blitz na sala de reunião. Eu estava na agência esse dia, lembro até hoje. Não lembro em que ano foi, nada, mas estava na sala de reunião, nesse dia. De ter visto o filme que eles fizeram assim que ficou pronto, meu pai que fez, não lembro direito quem criou o filme, mas era um filme específico para o Dia Mundial da Paz. Tinha latinha da Pepsi, da Coca-Cola e tal, aparecendo juntas no comercial, e falavam: ‘Hoje é o Dia Mundial da Paz. Por isso, é o único dia em que vocês vão ver a Pepsi e a Coca-Cola juntas, mas, amanhã, .a guerra continua’. Disso eu lembro, também, até hoje.

No primeiro emprego em propaganda, você já começou como redator?

M. C. – Comecei como estagiário da criação da Doctor. E gostei bastante da agência, apesar de ser a loucura que era, de as pessoas virarem três noites por semana, trabalhando. Apesar dessa loucura toda, acabei gostando. Na época, era falta de rotina e tal, um troço doido. Mal ou bem, você acaba conhecendo muita gente inteligente. Foi bem legal essa experiência na Doctor. Depois saí, fui para a DPZ, fiquei três meses, também, era completamente diferente da Doctor.

A DPZ era mais o quê? Mais careta? Mais séria?

M. C. – É, talvez, na época, eu tenha achado mais careta, porque era mais séria e eu tinha saído de agência mais doida, diferente da DPZ, que era o extremo oposto. Mas não acho que seja caretice. Acho que era só uma forma diferente de encarar as coisas, os clientes eram 800 vezes maiores. Então, eram duas agências completamente diferentes. E, depois, fiquei um tempão sem fazer nada, só tentando voltar para o Direito. Não teve jeito. Depois, botei na cabeça: ‘Não, vai ter que ser isso’. E, quando voltei para agência, nunca mais parei.

Você voltou com quantos anos?

M. C. – Tinha 22 anos quando voltei, mais ou menos.

Foi aí que teve a certeza: ‘É esta profissão que eu vou seguir’?

M. C. – É. Aí fiz estágio de novo, voltei a fazer estágio na Z+G Grey, que não existe mais. Depois fui para a VS e fiquei dois anos. Saí e fui para a Young [Young & Rubican]

O que você guardou desse período da VS? Vamos destacar alguma coisa.

M. C. – Acho que a coisa mais legal dessa época da VS foram as coisas que eu fiz para o MAM – Museu de Arte Moderna do Rio. Era um cliente pequeno, só que com muito volume de trabalho, porque eles tinham uma permuta com o Jornal do Brasil e saíam três anúncios por semana lá. Eram anúncios de título; para redator, era ótimo; e sempre gostei muito dessas coisas de arte e tal, então, como era um cliente pequeno, só dava para fazer título, a conta ia ficando meio de lado. Quando estava começando lá, falei: ‘Pô, vou pegar isso aqui, vou fazer direto’. Fui me aproximando mais do atendimento e falava: ‘Quando tiver exposição nova, me leva lá’. Eu ia ao MAM, conversava com o curador, com o cliente e tal. Foi o primeiro cliente com que tive um contato maior. Então, pelo menos uma vez por semana, ia ao MAM. Quando fui para a Young, pouquinho tempo depois, o MAM foi para lá, também. Então, foi uma referência boa. E era uma coisa que meu pai [profissional da área de atendimento, trabalhando diretamente com os clientes] sempre me falava: de eu não ser redator só de ficar atrás do computador, escrevendo e tal, que era importante ter esse lado, também.

De ir até o cliente e fazer quase uma pesquisa?

M. C. – Não, de ter um contato maior com o cliente, para entender mais. Não ficar só ali, se achando artista, escrevendo. E a coisa mais legal dessa história, fora a convivência com as pessoas da VS, foi com relação a cliente e trabalho, essa descoberta do MAM, que, depois, acabou virando um cliente que todo mundo queria. Quando a Young acabou, em 2002, e eu, a princípio, viria para São Paulo, com o André Pedroso, diretor de criação, indiquei a Quê, que era a agência do meu pai, na época. O MAM ficou lá um tempão, foram superfelizes durante muito tempo. Então, era um cliente com que tive uma relação muito legal.

Você nunca trabalhou com seu pai?

M. C. – Não. Já trabalhei com a mulher dele, com a Paula [a também publicitária Paula Lagrotta].

Por que você nunca trabalhou com seu pai?

M. C. – Primeiro, porque acho que é meio complicado, principalmente quando você está começando em propaganda. Você já entra na agência com um bando de gente olhando meio de lado, falando: ‘Esse cara aí é peixe de alguém e não deve fazer porra nenhuma o dia inteiro, deve ficar enrolando, filhinho de papai não faz nada’. Então, acho que você tem meio que provar, tem que fazer o dobro do que os outros fazem para ter o mesmo reconhecimento. Pelo menos no começo. Mas, fora isso, foi falta de oportunidade. Só nesse começo que não queria muito, acho que meu pai também não queria. Eu fui para a Young, ele estava na Quê e acho que não teve nenhuma razão, não.

O que você aprendeu nos dois anos de Young? Faz uma síntese.

M. C. – A Young, para mim, foi muito importante. Porque o André Pedroso, que era o diretor de criação de lá e um cara muito legal, prezava muito a coisa da organização e falava para mim: ‘Não quero que você seja um redator, quero que você seja um publicitário. Então, quero que você pense o negócio inteiro’. Por exemplo, não dava para chegar para ele com uma campanha e dizer: ‘Olha, André, eu te mostro aqui os filmes, você primeiro aprova os filmes, que é a coisa maior, e, depois, a gente faz os anúncios e o que tiver que fazer’. Não. Você tinha que levar para ele tudo já pensado: filme, anúncio, folheto, mala-direta. O André era muito, muito organizado e foi muito importante por esse lado, o de pensar o negócio como um todo, todas as peças, todos os caminhos a que você pode chegar e também a história da organização, com que ele era rígido. Por isso foi importante para cacete, foi muito bom.

Como era isso da organização?

M. C. – Principalmente de você pensar tudo certinho, não ser só uma idéia pura e simples. ‘Essa idéia aqui para o filme vai ser assim, depois eu vou lançar com esse filme, depois eu vou fazer os anúncios que são assim, depois eu imagino dois filmes que são assim.’ Então, é tudo certinho. Aí a Young fechou, o André veio para cá [São Paulo], pensei que viria com ele, mas, na época, não queria sair do Rio, ainda. Estava vindo mais por necessidade e, um pouco antes de vir para cá, o Adriano Matos, que tinha trabalhado comigo na VS, estava na Comunicação Carioca e era meio supervisor de criação. Tinha saído uma redatora de lá, e o Adriano me chamou para conversar. Acabei voltando, voltando, não, porque era outra agência, não era mais a Doctor, mas era um dos sócios da Doctor que tinha saído e fundado a Comunicação Carioca. Era uma agência que fazia sempre coisa doida. Quando era aniversário do Rio, a gente fazia, sei lá, 18 anúncios de oportunidade, que saíam em O Globo, para homenagear o Rio, todo mundo trabalhando para cacete. Depois o Paulo Castro, que era ainda o diretor de criação da VS, onde eu tinha praticamente começado, me chamou para voltar, para duplar com o Luís Cláudio Salvestroni, que, quando comecei como estagiário, já era a primeira dupla da VS. Voltei para duplar com ele e foi bem legal. Fiquei na VS mais dois anos. Ainda na época da Young, quando começou a dar os problemas na agência, tinha começado a mostrar a minha pasta [portfólio dos melhores trabalhos realizados] e mostrei-a para o Rinaldo Gondim, que é um redator espetacular, fez todas as coisas de Oi do começo. E o Rinaldo gostou de mim. Sempre falava com ele, mandava umas coisas que eu fazia. Quando a W/Brasil abriu no Rio, ele me indicou para o Rui Branquinho [diretor de criação da W/] e o Washington [Washington Olivetto, o chairman da agência], e acabei empregado; depois me chamaram para cá [São Paulo].

Como foi essa transição? Você nunca tinha morado em São Paulo, não é?

M. C. – É, nunca e nem tinha pensado em vir. Queria ficar no Rio, a princípio.

Você é casado, tem filhos?

M. C. – Sou, mas não tenho filhos. Comecei lá na W/ do Rio, que só tinha uma dupla de criação, éramos eu e o Daniel D´Ávila [diretor de arte]. A gente ficava lá, o diretor de criação era o Rui Branquinho, aqui, em São Paulo. A gente se falava por e-mail, telefone e tal. Um dia, ele conversou com a gente sobre a possibilidade de vir para cá. Aí comecei a pensar, realmente, na hipótese de vir para São Paulo. O Rinaldo já me falara como era aqui, eu disse: ‘Acho que vou ter que tentar São Paulo, mesmo’. Era uma oportunidade que não poderia perder. Ia arriscar, tinha que tentar. Não podia era não ter vindo e, depois de cinco anos, falar: ‘Se tivesse ido para São Paulo cinco anos atrás, como ia estar hoje e tal?’. Falei: ‘Não, tenho que arriscar, tenho que trabalhar, quero lá trabalhar e ver como é que é o Washington de perto, também’.

E como é o Washington de perto?

M. C. – No começo, dá um pouco de medo, você olha: ‘O cara está ali!’. Mas ele é muito legal. Na categoria chefe, ele é excepcional, sempre contando um bando de histórias, está sempre com a gente, carinhoso para cacete com todo mundo da criação. E é bom você ficar mais próximo de pessoas que no começo da sua vida são seus ídolos. Você vai à palestra do Washington quando está começando e, seis anos depois de que comecei a trabalhar, estava lá, do lado do cara. No começo assusta um pouco, mas, depois, é legal você ter esse contato.

E tem um contato próximo com ele, hoje?

M. C. – Tem, porque a mesa dele é ali, no meio da agência. Do lado da gente.

Mas ele dá opinião no dia-a-dia? Você tem um anúncio: ‘Estou com uma dúvida, Washington, dá para você opinar?’.

M. C. – Não dá para ele ver tudo, tudo, mas as grandes coisas ele sempre vê, filme, concorrência e tal.

O que você aprendeu com ele?

M. C. – A principal coisa que aprendi, até já falei para o Washington, e que até me assusta nele, não é nem a inteligência. Vê-lo em reunião é muito legal, mas é a capacidade que ele tem – nunca tinha visto isso em ninguém – de pensar nas coisas e realizar. Tem muita gente que tem muita idéia espetacular e tal. Já trabalhei com muita gente legal, que você vê que tem idéia sempre muito boa, mas, às vezes, as coisas não vão para a frente. O Washington não. Quando ele tem alguma coisa em que acredita, ele vai realizar aquilo de alguma forma. E, isso, você percebe não só em algum filme, anúncio, mas também em qualquer coisa que ele queira fazer na vida. Ele tinha botado na cabeça a história de fazer o livro de 25 anos do primeiro sutiã [do comercial O Primeiro Sutiã a Gente Nunca Esquece, para a Valisére] e era um trabalho, assim, puxa, imagina… Pegar todas as citações… Em seis meses, ele deu um jeito de fazer aquilo. Então, essa capacidade de pensar as coisas e realizá-las logo em seguida, não deixar nada por fazer, me assusta [o livro citado se chama O Primeiro a Gente Nunca Esquece, que documenta a difusão popular do slogan do comercial do primeiro sutiã].

Todo mundo tem idéia, todo mundo quer realizar, alguns conseguem, outros não. Ele consegue com uma frequência, assim, muito grande. Mas isso vem do quê? É uma capacidade de convencimento? O projeto dele é muito sedimentado?

M. C. – Primeiro de tudo, o Washington tem uma memória espetacular. E ele sempre lê muito, e lê todo tipo de coisa. Não só os livros clássicos, mas também a biografia de alguém, o livro de não sei lá o quê. Então, consegue armazenar muitos argumentos para tudo. Sempre que é questionado de alguma forma, consegue achar um argumento que vai convencer aquela pessoa de que ela tem que realizar aquilo. E, também, pela figura dele, consegue reunir pessoas que conseguem realizar as coisas para ele, quando não pode realizar sozinho. Essa história do livro, de ter uma editora com ele, contratar uma profissional só para pesquisar todas as citações, fazer uma seleção dos textos que já citaram ‘O primeiro a gente nunca esquece’ e tal. Acho que, além de ser um cara muito bem relacionado, tem também sempre muitos argumentos para defender as idéias dele.

Você está aprendendo isso, também? Porque tem uma linhagem aí, não é? Você é um cara que, por exemplo, admira o Ercílio [o publicitário Ercílio Tranjan, referência criativa e ética na propaganda, hoje na agência Ímã], que foi um dos caras que encaminharam o Washington, também. Você acha que tem uma linhagem na propaganda? O Ercílio é um cara que eu, também, admiro para caramba. Então, você acha que está pegando o bastão e levando à frente?

M. C. – O que tento fazer é aproveitar ao máximo o que esses caras têm, e não só em propaganda. O Ercílio é um cara inteligentíssimo, culto para cacete, já leu tudo o que existe no mundo, me indica autor de que nunca ouvi falar e que a maioria das pessoas nunca ouviu, como Juarez Barroso. Não tem em livraria nenhuma. Tive que achar naquele Estante Virtual, aquele negócio de sebo e tal. Encontrei no interior de São Paulo, pedi, porque ele falou: ‘Tem um conto lá que você tem que ler, tem que ler, tem que ler’. E li um negócio espetacular. Então, esses caras que te acrescentam dessa forma, também, e não só com cultura de propaganda, procuro estar sempre do lado. Sempre fui muito calado, sempre gostei muito de ouvir e prestar a atenção nas coisas desde pequeno. Então, sempre que o Washington está numa reunião, e estou junto, reunião interna, mesmo, na agência, para falar de alguma concorrência, sempre presto muita atenção no que ele fala. Me preocupo mais com isso. Não quero pegar bastão ou tentar manter uma linhagem, o que foi o Ercílio, depois o que foi o Washington. Quero aproveitar o que eles têm para me ensinar muito mais do que só propaganda. Acho muito importante. E acho que, como hoje tem muita gente jovem trabalhando em propaganda, e as pessoas mais velhas acabaram desaparecendo um pouco do mercado – e elas têm muito mais bagagem do que as pessoas jovens –, sempre achei muito importante ter ainda esses caras no mercado, para ter uma bagagem, uma coisa maior do que propaganda, para fazer propaganda, também. Não ser só a idéia.

Uma coisa muito maior que a propaganda faz boa propaganda.

M. C. – É, exatamente. Senão, é só uma idéia. Você percebe que a pessoa não tem uma profundidade maior.

Você é um cara que também está de olho em outras coisas. Em literatura, por exemplo. Lançou recentemente o primeiro livro, chamado O Mesmo. Então a gente pode falar do livro agora. Vou dar um pouco a minha visão: o livro já começa com uma ironia no título, com aquele linguajar meio burocrático-comercial. Aquilo assim: ‘Fulano disse tal coisa. O mesmo afirmou também…’. No seu livro, se faz referência ao cara que começa a sonhar com a própria vida. E tem uma coisa meio de estranhamento jurídico ali, que até o Ercílio [Ercílio Tranjan, autor do prefácio] lembrou bem, que é uma coisa kafkiana, mesmo. O Kafka [Franz Kafka, autor de clássicos da literatura, como A Metamorfose e O Processo] era um cara ligado ao Direito, também. Tem, de fato, um intertexto aí com o Kafka?

M. C. – É engraçado, porque cada pessoa que lê acha uma coisa diferente. Até o Ercílio falar isso, eu nunca tinha pensado esse lado meio kafkiano da história. Acho que a principal referência ao A Metamorfose [livro de Kafka em que a personagem principal, Gregor Samsa, desperta, certo dia, transformada numa barata] lá do que o Ercílio diz é a cena inicial, pois meu livro começa com o cara acordando, também, meio assustado com alguma coisa.

Uma transformação? Uma descoberta?

M. C. – É. E algum problema que ele não consegue entender o está afetando, assim como em A Metamorfose acontece com o Gregor Samsa e, em O Processo, também, o cara [Joseph K] está sendo processado e não sabe por quê. Então, acho que foi aí que o Ercílio achou alguma similaridade do meu livro, de acordar com um susto, assim, perceber que está acontecendo alguma coisa com ele, e que não consegue entender o porquê. Mas acho que é só isso. Não dá para comparar com o Kafka.

Você consegue identificar alguma outra referência no seu livro?

M. C. – Uma coisa engraçada fui percebendo enquanto escrevia o livro. Eu, pelo menos, tenho paz. Mas teve uma época, logo depois que li Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Márquez, que disse: ‘Quero ler tudo desse cara. Vou escrever igual a esse cara, esse cara que sabe escrever’. Mas, por mais que você tente fazer alguma coisa do jeito do cara, quando vai ver, já está escrevendo de uma forma que é muito sua. Depois, estava lendo o Guimarães Rosa: ‘Esse cara que sabe escrever’. Só que a forma como está escrita é impossível de imitar. Então, por mais que você tenha as referências e goste de escrever como um cara ou como outro, acho que, no final, sai do jeito que só você sabe. Depois, fiquei viciado nos livros do Ian McEwan. Li primeiro Na Praia, depois Amsterdam e Reparação e acho que ele, também, escreve de uma forma espetacular. E o estilo dele aparece menos que o do García Márquez e o do Guimarães Rosa. Mas é engraçado ver isso: apesar de ter as referências, você percebe, no meio do livro, no exercício de escrever, que acaba sempre escrevendo do seu estilo, mesmo. Estilo é meio difícil de explicar, mas, desde o colégio, tem umas coisas que eu percebo que, ainda hoje, escrevo da mesma forma. Talvez seja o meu jeito de escrever. Se outro cara fosse escrever aquela mesma cena, escreveria de uma forma totalmente diferente. E, quando estou lendo o que estou escrevendo , falo: ‘Acho que só eu escrevo dessa forma aqui, é diferente do que alguém faria no meu lugar’. Mas não dá para saber exatamente o que é. É meio esquisito perceber isso.

Como é que você escreveu O Mesmo? Em quanto tempo?

M. C. – Primeiro tive a idéia geral do livro: ‘Quero escrever a história de um cara que começa a sonhar com a vida dele mesmo e toda noite, quando vai dormir, revê a vida dele em ordem cronológica. Só que aquilo vai andando com mais rapidez e ele começa a ficar com medo, quando os sonhos começam a chegar perto do momento em que ele está vivendo. Ele fala: ´No dia em que esses dois momentos baterem, eu vou morrer, porque não tem como eu sonhar mais com as coisas que não aconteceram, não tem como sonhar na frente; então, acho que o dia em que baterem esses dois momentos, eu vou acabar morrendo´’. A partir daí, falei: ‘Vou botar no papel’. Comecei a escrever a princípio do nada, sem nenhuma formatação certinha do livro.

Uma idéia de uma cena, foi lá e escreveu?

M. C. – É, ia escrevendo, escrevendo, uma coisa levava a outra. Tinha dias em que escrevia mais, em outros, menos. Em outros escrevia e, no dia seguinte, apagava. Até que senti uma necessidade de ordenar as coisas, de ter uma estrutura mais clara, antes de começar a escrever. Falei: ‘Acho que vou fazer isso aqui em três partes bem divididas. A primeira parte vai começar com a personagem acordando e percebendo: `Está chegando muito perto demais do momento em que estou vivendo´. E começar a apresentar o problema dele, dizer que ele está sonhando com a própria vida e tal, e o primeiro capítulo acaba exatamente onde começou, com ele acordando com medo dessa aproximação’. No segundo capítulo, ele já sabe que deve morrer naquele dia ali, porque vai sonhar, naquela noite, com o exato momento em que foi dormir. E a terceira e última parte do livro é o momento em que ele deita para dormir com a mulher e sabe que vai morrer. E, quando botei essas três partes bem claras na cabeça, foi mais fácil escrever o livro inteiro. Comecei a escrever e tal, só que, trabalhando em propaganda, é difícil ter tempo, ainda mais quando você fica o dia inteiro escrevendo. Escrever de noite, depois que você chega em casa e já está com a cabeça cansada, nunca dá direito. Nas épocas mais calmas, conseguia escrever mais, depois veio uma fase meio brava de trabalho, tinha que parar de escrever. Depois, quando ia escrever, tinha que ler tudo o que já tinha escrito, para não escrever alguma coisa que não tivesse nada a ver com o que já tinha escrito. E demorava para ler tudo de novo. Quando ia começar a escrever, escrevia uma página e tinha que parar, porque já era de madrugada. Então não ia muito para a frente.

Esse livro vem desde quando?

M. C. – Ah, demorei uns quatro, cinco anos para escrever. Só quando vim para São Paulo que falei: ‘Não, tenho que acabar isso, senão, não vou acabar nunca’. Me disciplinei: ‘Todo dia, na hora do almoço, vou comer uma coisa rápida, volto para a agência e fico escrevendo na hora do almoço, que ainda estou com a cabeça mais fresca do que à noite e tenho aquela hora por dia para escrever’. Finalmente consegui terminar.

Foi você que pagou o livro?

M. C. – Terminei o livro e comecei a correr atrás de como é que se faz para publicar, que eu não sabia, porque nunca tinha feito. Enquanto ia procurando, mandei o livro para o Ercílio, porque eu queria que alguém desse uma lida, queria ouvir a opinião de alguém. Comecei a entrar em site de editoras e tudo o que via lá era assim: ‘Como mandar os originais’. Ia lá e falava: ‘Mande os originais aos cuidados do Departamento Comercial, e a gente vai responder em mais ou menos seis meses para você se o livro interessa ou não, mas como o volume de originais é muito grande, a gente também se reserva o direito de não responder’.

Ainda bem que eles são rápidos, não é?

M. C. – Ou seja, tinha que esperar seis meses por uma resposta que poderia não vir. E todo mundo com que eu conversava dizia: ‘Editora grande é muito difícil de publicar algum autor inédito, sujeito que não é conhecido e tal’. Até dá para entender, porque é um negócio como outro qualquer, os caras apostarem em alguém que seja totalmente desconhecido é um risco enorme. Nesse meio tempo, o Ercílio leu, fez as observações dele, eu reescrevi algumas coisas, revisei 800 vezes, mandei de novo para o Ercílio. Em propaganda, mal ou bem, as coisas acontecem meio rapidamente. É raro demorar, claro que tem agência com cliente internacional, clientes muito grandes, que as coisas que você faz podem demorar para sair. Como em propaganda as coisas acontecem muito rapidamente, e eu sou muito ansioso, falei: ‘Não vou conseguir esperar seis meses, seis meses é tempo demais’. Então o José Guilherme Vereza, que é também publicitário, tinha publicado um livro por essa editora, pela Publit, e ele me indicou: ‘Fala lá com os caras, porque tem umas editoras que dividem a edição do livro com você e tal. É importante você ser publicado, ter o livro na mão’. E eu queria dar o livro para gente que trabalha em produtora, jornalistas, amigos e tal, queria ser lido, mais que qualquer outra coisa.

Quanto custou quanto essa edição?

M. C. – Acho que custou uns R$ 4 mil e pouco.

Arte, produção, tudo?

M. C. – Não, na verdade, a minha esposa [Fernanda Izar] é diretora de arte, então, ela fez o projeto. Eu queria ter um controle maior sobre o projeto, também, e isso foi uma coisa de que também o Zé Guilherme tinha me falado: ‘Se você entregar seus originais para uma editora grande, muito provavelmente, eles vão querer mexer em algumas coisas. Acontece com qualquer autor consagrado e vai acontecer com você muito mais’. E, como em propaganda a gente já tem que fazer muita concessão no dia-a-dia, falei: ‘Não, eu quero fazer o meu livro do meu jeito’. Fiz mil exemplares.

Vou voltar só um pouquinho para o livro em si. Sebastião Aerosa, o nome da personagem principal, um nome estranho. O estranhamento já começa nesse nome, não?

M. C. – Na verdade, achei o nome um negócio difícil de pensar. Por que o cara se chamaria João e não Roberto, sabe? Estava escrevendo, e o primeiro nome que me apareceu na cabeça foi Sebastião, falei: ‘Não, eu quero que tenha sobrenome, também’ E aí apareceu o Aerosa, eu não sabia muito bem por que, mas, depois, acho que descobri.

É Aerosa com ‘e’. Porque existe airosa com ‘i’, se fosse um cheiroso, cheirosa, sei lá.

M. C. – Até no dia em que descobri, falei: ‘Será que é isso, rapaz?’. Ficou no subconsciente. Estava em Itaipava [cidade serrana do Estado do Rio de Janeiro], desde pequeno ia muito para lá. Minha família tinha casa lá e tal. E, perto da minha casa, tinha um retorno, para você pegar a estrada e voltar ao Rio, e lá tinha uma placa em que eu sempre lia, quando era pequeno: ‘Centro General Aerosa’. Aí, depois do maior tempão, passei lá. Talvez seja por isso e esse negócio ficou na minha cabeça.

Você é um cara de propaganda e o ambiente de propaganda é um ambiente em que muita gente quer aparecer, não é? Quer a fama, quer a glória, é um ambiente muito competitivo. E você optou por uma personagem, em seu livro, que é um cara que lutou por ser garçom. Por opção, mesmo: ‘Quero ser garçom’. Então, como é esse contraponto na sua vida, entre a propaganda, que é um mundo que busca certa ostentação, no geral, não estou dizendo que é todo mundo, por um lado, e você tem um lado aí diferente, um estranhamento, um apreço pelo pequeno, pelo anonimato, talvez?

M. C. – Acho que não é só em propaganda, a sociedade de maneira geral tem uma pressão, aquilo de que o cara tem que vencer na vida, o cara tem que ganhar muito dinheiro, tem que andar com o melhor carro, tem que ter uma casa espetacular e o cara só vai ser um vencedor se fizer isso tudo. Às vezes, não. Quando o cara se propõe ali a ter aquela vida normal, o dia-a-dia com a família dele, trabalhar honestamente como garçom, se ele conseguir fazer isso, já acha que aquilo está bom. Ele foi um vencedor no que ele se propôs a ser na vida. Então, acho que é um pouco isso, uma resposta para a pressão que todo mundo sofre hoje, que tem que ser um vencedor na vida e um vencedor porque a sociedade acha que um vencedor é ganhar muito dinheiro, ter os melhores bens materiais que você possa ter, viajar três vezes por ano para não sei onde, ter o melhor carro, melhor casa, tudo. Foi um pouco uma válvula de escape para essa pressão que todo mundo sofre hoje. Foi isso.

De Sebastião Aerosa pode-se dizer que é um vencedor. Você estava falando que não é só esse protótipo de vitória que nos cobram. A gente tem várias vitórias na vida. Cada um acha a sua e acha um sentido para o seu caminho e tal. Essa vida simples, buscando sempre uma coisa não exatamente padronizada, mas uma coisa que tivesse um caminho muito delimitado. Ele teve no final um presente, não é? Que é essa possibilidade de reviver a vida dele. Você coloca isso de uma forma, o livro agonia um pouco, ‘puxa, o cara vai morrer e tal’. Mas ele tem uma oportunidade que pouca gente talvez tenha, não é? ‘Estou vendo a minha vida outra vez, aqui.’

M. C. – É coisa que começa para ele como um presente e ele fala: ‘Que bom que estou conseguindo reviver vários momentos que foram legai para cacete, agora, observando de fora, assim’; e deve ser muito bom reviver os momentos legais da sua vida, mesmo. Mas, depois, acho que isso trouxe, também, algumas angústias para ele. Primeiro, quando começou a perceber ou achar que ia morrer conforme os sonhos iam chegando ao momento em que ele estava vivendo. Então, ele é o único cara que soube que ia morrer naquela data exata. E outra coisa: acho que daí veio nome do livro, é que ele não viu só as coisas boas, viu, também, todos os problemas. Viu a si mesmo como outra pessoa, que ele poderia julgar, e acho que ele viu muito os defeitos dele, as coisas que ele deixou de fazer, de falar para a mulher e tal e, apesar de ele querer mudar aquilo, não conseguiu. Aquilo era a personalidade dele. Ele foi assim a vida inteira e não conseguia mudar aquilo, nem sabendo que ia morrer em breve; por isso o livro se chama O Mesmo. O cara que, mesmo sabendo que deveria agir de outras formas em determinados momentos da vida, quando teve a chance de agir de forma diferente, não conseguiu, porque não era ele. Não seria ele.

A memória em geral tem um aspecto seletivo. Com o passar dos anos, ela vai apagando algumas coisas, mesmo, até para proteger a gente. Um trauma muito grande, ela apaga. E, na sua perspectiva, essa memória volta com todos os detalhes, com o lado bom e o lado ruim da lembrança.

M. C. – No comecinho do livro, eu já quero deixar isso claro, para mostrar que não teve esse tipo de seleção. Ele fala que o primeiro momento de que lembra, no primeiro sonho, é o momento em que largou a chupeta, uma coisa assim, e no começo ele não percebe que está sonhando em ordem cronológica e fala: ‘O momento que eu larguei a chupeta não pode ser o primeiro momento de que lembro da minha vida’. É um momento muito pequeno para ter o título [de primeira lembrança] e para ser o primeiro momento da vida dele. Mas, depois, ele percebe, conforme os sonhos vão andando certinho, que aquilo era, sim, o primeiro momento da vida de que tinha lembrança.

E essa personagem tem muita semelhança com você?

M. C. – Acho que em uma coisa ou outra, às vezes. É engraçado, porque as pessoas que leem e me conhecem bem percebem algumas coisas que nem eu tinha percebido. Mas tem muitas cenas em que usei da minha vida; tem umas cenas dele lembrando de tomar conhaque com o avô, quando era pequeno e tal. E eu lembro do meu avô me dando conhaque, também, quando passava as férias com ele e chovia muito. Ele falava: ‘Toma um conhaque aqui para esquentar’. O negócio do avô que fazia o avião, também, para ele, era um negócio que era do meu avô. Esses detalhes ajudam a dar veracidade às personagens. São detalhes que só uma pessoa que existiu pode ter. Detalhe muito detalhe, mesmo, que ajuda um pouco a dar veracidade para a história, para construir, também, a personalidade da personagem. Por exemplo, ele lembrava de que o avô construía os melhores aviões de papel do mundo e, mesmo que ele construísse um bom, torcia para que o avião do avô ganhasse do dele. Aquilo era parte da personalidade dele, o cara que escolheu ser uma pessoa que não era uma vencedora na vida.

Quais são as suas ambições? A gente está aqui falando de um caminho mais simples, mas a gente tem um querer na vida, não necessariamente algo grande. Quais são os seus quereres? O que você pretende para si daqui para a frente? Quer ser ninguém, também?

M. C. – Não, quero até ser alguém, mas que seja reconhecido pelo que eu escreva. Não quero, daqui a 40 anos, falar assim: ‘O que eu fiz na vida? Fiz uns comerciais e uns anúncios aí’. Não quero que seja só isso. Escrever alguma coisa que o briefing [briefing, em propaganda, é a tarefa que a equipe de criação de uma agência recebe; criar um anúncio para um produto ou serviço X, por exemplo] parta de mim e não de algum cliente. ‘Quero escrever sobre isso e vou escrever um livro sobre isso.’ Quero viver de escrever. Se der para viver escrevendo livro, vou fazer isso. Se tiver que continuar escrevendo anúncio, comercial, legal, também, porque escrevo e gosto de fazer.

Você gosta de fazer comercial?

M. C. – Gosto; é legal de criar. Principalmente o roteiro, porque a gente faz numa folha de papel, assim, e depois o circo que se arma para montar e realizar aquilo. Gosto muito de cinema, então acho que tem um pouco a ver com isso, também. Basicamente, é isto: quero para sempre viver de escrever e, se puder escrever muito mais livros, vou fazer.

Você falou de comercial, e você criou em 2008 uma campanha bem bacana, que foi sobre a importância do voto nas eleições municipais, para o TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Essa campanha tem um componente, que é o do estranhamento [personagens que apresentam manias muito estranhas, como alegoria do desconforto de uma escolha eleitoral errada e a longa duração de um erro, os quatro anos de duração de um mandato]. Como é essa coisa do estranhamento na propaganda? A propaganda, geralmente, tem evitado o estranhamento, as pessoas querem uma coisa mais consagrada e tal. Você trouxe um negócio diferente ali, um cara cheio de tiques [a campanha ‘Quatro anos é muito tempo. Principalmente quando as coisas não vão bem’ é uma criação de Marcelo Conde e do diretor de arte Eiji Kozaka].

M. C. – Na verdade, é uma coisa até meio complicada. Primeiro, o Washington até fala muito isto: que a propaganda teve três fases muito distintas. A primeira foi a fase em que os produtos não existiam. Então, você tinha que fazer um comercial dizendo: ‘Olha, chegou o sabão. O sabão serve para fazer isso’. Depois teve uma fase, quando já tinha uma porção de marcas de sabão, que você tinha que convencer aquela pessoa de que sua marca era melhor que a marca do lado. Só que hoje existem muitos produtos e muitas marcas de muitos produtos, muitas marcas muito boas de tudo que é tipo de produto. Então, o Washington diz que agora estamos na fase da propaganda como entretenimento, também. Então, a gente busca sempre isso: primeiro, entreter a pessoa, fazer daquele momento uma forma de diversão, porque, na verdade, você está brigando ali com a novela, parou de passar para passar o teu comercial. Então, você tem que entreter o telespectador, porque, senão, o cara troca de canal, vai no banheiro, vai fazer outra coisa. Esse é o primeiro ponto da campanha. O outro ponto era: o TSE fez uma pesquisa para saber como estava o humor dos eleitores com relação aos políticos e, obviamente, o humor não estava dos melhores. Também o que eles descobriram é que as pessoas se irritavam um pouco com a obrigatoriedade do voto. Você ter que ir votar e tal, isso irritava muito as pessoas. E as campanhas das eleições, geralmente, eram coisas mais sérias: ‘Olha, você tem que votar. Se você não votar, você não vai conseguir tirar passaporte, você tem que pagar multa, o voto é obrigatório e tal’. Era uma coisa muito pesada. E, aí, partiu deles, também, essa história de querer tirar um pouco do peso do momento, não precisa, não é?

Então já veio de briefing. Qual era a palavra: fazer de uma forma leve, divertida?

M. C. – Tirar o peso, a pressão. E foi bom, porque a gente estava pensando a mesma coisa. Ah, e outra coisa que eles perceberam, também: a reação que as pessoas tinham com relação ao sentimento de insatisfação com a classe política. E, pelo fato de o voto ser obrigatório, não era protestar ou querer votar bem para o político ruim que está lá sair, era, simplesmente, falar assim: ‘Eu voto de qualquer jeito ou anulo meu voto, porque, se o cara que está lá for ruim, quatro anos passam rapidinho e, daqui a quatro anos, quando tiver um candidato melhor, eu voto’. E a gente quis deixar isso claro para o cara: ‘Olha, quatro anos demoram para passar’. Na primeira fase dos comerciais, quando o cara perde a oportunidade, a do cometa, do trem, a gente quis deixar claro que, quando você perde uma oportunidade, pode perder muito tempo. Depois a gente fez os quatro comerciais, do cara que sapateia, da abelha no ouvido e tal, que dizem que ‘quatro anos é muito tempo, principalmente quando as coisas não vão bem’. Então, quatro anos podem passar voando, quando você está feliz para cacete, mas, se alguma coisa estiver errada na sua vida, esses quatro anos vão demorar muito para passar. Foi isso que a gente quis deixar claro. Tem que votar direito porque, se as coisas não forem bem, vai ser uma eternidade. E daí surgiram essas propostas. A gente não pode, também, fazer uma coisa muito real, por várias razões. Se a gente fizer um comercial com um cara na frente da casa com um buraco saindo esgoto: ‘Imagina quatro anos tendo um buraco saindo esgoto da sua casa: é um saco. Quatro anos demora muito tempo quando as coisas não vão bem’. Primeiro, ia perder a história da leveza e do bom humor, ia ser de novo uma coisa pesada, para baixo e tal e, segundo, a gente poderia ter algum problema: a gente filmou um buraco na cidade tal, o prefeito que está lá vai achar que a gente está fazendo uma coisa contra ele, para ele não ser reeleito. Então, a gente tinha que tomar todo esse tipo de cuidado. Mas como, também, tinha essa preocupação do bom humor, a gente falou: ‘Vamos inventar uns problemas que ninguém pode ter e ninguém vai reclamar com a gente e, além disso, vai ficar mais divertido’. A gente começou a pensar em 800 situações e selecionou dez e, das dez, ficaram estas quatro: o cara que sapateava quando ficava nervoso; a mulher que andava em círculos, quando estava atrasada; o cara que chorava de emoção quando o celular tocava; e o cara que tinha uma abelha no ouvido há quatro anos. E, aí, eu lembro de que o Rui [o Rui Branquinho, diretor de criação da W/Brasil] me mandou ir lá em Brasília contar a campanha para o ministro Carlos Ayres Britto [presidente do TSE]. Fiquei desesperado, pensei: ‘Vou chegar lá no ministro, de Brasília, numa mesa lá que deve ser gigantesca, com não sei quantos assistentes do cara e vou contar para eles: `Olha, eleição é uma coisa muito séria, realmente, mas este ano a campanha vai mostrar um cara que sapateia quando está nervoso´; o cara vai me expulsar a chute’. Fomos eu e o diretor de atendimento; o meu dupla, que criou a campanha comigo, o Eiji Kozaka, tinha outras coisas para fazer aqui e aí fui eu.

Como foi?

M. C. – O ministro me surpreendeu, ele é um sujeito muito legal, mesmo. Aliás, é um cara que pensa muito à frente. Toda essa história de uso da Internet pelos candidatos nas eleições, ele foi voto vencido. Por ele, seria liberado. Então, é um cara muito para a frente, entendeu e quis apostar na história. A gente sabia que ia ser arriscado, que ia ter um bando de reclamação e tal, mas que, também, faria um barulho, até pela veiculação da campanha, que era muito forte. E acabou saindo. E ficou muito bem realizada. O Marcello Lima e equipe da Zepellin [a produtora que realizou as filmagens] fizeram um trabalho espetacular de teste, de direção.

Você acompanhou a filmagem?

M. C. – Não, aqui, na W/, a gente não acompanha muita filmagem. É política da gente, mesmo, de deixar os caras trabalharem. Ninguém ficou ali, do meu lado, quando criei o roteiro, dizendo: ‘Tira essa vírgula daqui e põe ali e tal’. A gente ia atrapalhar mais do que ajudar. Fazendo uma boa reunião de produção e aprovando o ator e tal, é muito difícil dar algum problema.

Propaganda: você acha que de repente ela pode ter uma missão, eu não sei se missão é a palavra, mas alguma preocupação maior do que apenas vender um produto? Você acha que ela pode construir uma mudança, estimular a generosidade e a solidariedade? A propaganda pode ter esse papel, também?

M. C. – Acho que pode ter, sim, quando é feita de forma séria, não só para ganhar prêmio. Mas, se você quer ajudar as crianças com câncer e faz uma coisa para ajudar as crianças com câncer, acho que pode ajudar, sim. E eu acho importante até. Acho que muita gente gosta de fazer porque, realmente, quer ajudar mesmo e ser, também, uma válvula de escape do dia-a-dia. Eu vendo sabão, outro dia vendo uma marca de celular e não sei o quê, então, por que não posso ajudar, de alguma forma, quem precisa? Acho que é um lado legal da profissão, também.

Vamos falar da propaganda que reflita a população, conte as histórias da sua população, não seja só uma propaganda feita para inglês ver. Você acha que tem a ver isso, de propaganda popular brasileira, ou a gente vive numa fase de globalização, mesmo, e isso talvez tenha ficado para trás?

M. C. – Tem a ver, sim. O cinema brasileiro, a música brasileira tem características brasileiras, mesmo com a globalização. E acho que a propaganda brasileira tem um pouco, também, a cara brasileira. É óbvio que, às vezes, a gente tenta, como a gente gosta do cinema argentino, por exemplo, fazer alguma coisa que tenha um pouco a levada do cinema argentino; ou, também, quando a gente gosta dos comerciais dos argentinos, a gente, também, pode pegar as coisas boas que têm e colocar do nosso jeito e tal. Mas acho que não pode nunca fugir muito, sabe? Fazer uma coisa com cara de inglês para o brasileiro; às vezes, não bate, por mais globalizado que o mundo hoje seja, acho que precisa ter sempre um pouco da cara brasileira. Isso é um negócio por que o Washington briga muito, até. Porque tem umas fases em propaganda, tipo: ‘A propaganda indiana de hoje está com uns negócios muito doidos, tem que fazer, legal para cacete, tem que fazer assim, também’. E o Washington, não, ele sempre fala para a gente: ‘Tem que fazer coisa brasileira para brasileiro’. E ele ainda tem muito essa preocupação de fazer propaganda que, além de vender o produto, consiga também entrar de alguma forma na cultura popular brasileira. Acho que esse é o norte do Washington. Tem que fazer vender, e se fizer vender, legal. Se fizer vender e, além disso, conseguir entrar um pouquinho na cultura brasileira, então, a gente chegou lá.

Você acha que esse caminho, para se criar uma propaganda com a cara do Brasil, com o jeito do brasileiro, a gente consegue como? Andando na rua, estando nos lugares, como é que a gente fareja isso no mundo? É um processo que aconteceu com o jornalismo, de afastamento da realidade. As redações foram ficando pequenas, o jornalismo deixou de refletir muito o mundo. Acho que, com a propaganda, aconteceu um processo mais ou menos parecido.

M. C. – É, acho que sim; as agências, hoje, têm menos gente do que tinha antigamente, e as pessoas trabalham dezoito, vinte horas por dia. Então, você chega na agência, trabalha, e o máximo de contato com o mundo que você tem ali é Internet, talvez, e aí você sai à meia-noite, vai direto para casa, dorme, acorda às 7h30, vai trabalhar de novo. E acaba perdendo um pouco disso. Você tem que beber com os amigos, tem que ir ao cinema, ler livro, escutar música para ter referência; senão, acaba tendo referência só em cima do seu trabalho, mesmo. E chega uma hora em que a fonte seca, não é? Então, para fazer coisas relevantes, mesmo, uma das coisas que precisa é ter contato com a realidade, com o dia-a-dia das pessoas e tal.

Você procura fugir um pouco desse condicionamento?

M. C. – É, evito ler livros sobre propaganda, por exemplo; prefiro ler coisas que não tenham nada a ver com propaganda. Quero estar sempre com meus amigos e tal, não só por causa da minha profissão, lógico. Acho importante conversar com meus amigos que não são só publicitários. Parar de pensar um pouco, de falar em propaganda, falar de outras coisas. Acho importante para cacete ir ao cinema, teatro, essas coisas. Acho que todo mundo acha importante e que todo mundo gostaria de fazer, se tivesse mais tempo. E hoje o tempo está raro.

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Editor do Jornalirismo