Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A política dos prêmios literários

Quando concluiu Leite Derramado, o escritor Chico Buarque pensou que enfim estava livre dos tormentos de Eulálio, o narrador moribundo que àquela altura já se transformara num encosto para seu criador. Mas há duas semanas, ao ser chamado ao palco da Sala São Paulo para receber o Prêmio Jabuti de melhor livro de ficção do ano, o bafafá irrompeu. Seria coisa de Eulálio?


Aos comentários galhofeiros sobre sua fecundidade (já são três os quelônios em sua prole) seguiram-se críticas mais duras – não ao livro, mas à entidade que o cobriu de louros. Segundo colocado na categoria romance, Chico acabou levando para casa o grande prêmio da noite – o de livro do ano de ficção, no valor de R$ 30 mil.


Na última quinta-feira [11/11], o presidente do Grupo Editorial Record, Sérgio Machado, divulgou uma carta endereçada à promotora do cinquentenário prêmio, a Câmara Brasileira do Livro (CBL). Editor do primeiro colocado na categoria romance, o estreante Edney Silvestre, Machado indignou-se com a situação ‘esdrúxula’. O Jabuti, diz a carta, seria uma ‘comédia de erros’ da qual o Grupo Record – o maior do país no setor de obras gerais, isto é, não especializado em obras técnicas ou didáticas – não mais iria participar.


Não é a primeira vez que Chico Buarque vê seu talento ser questionado ao amealhar um Jabuti. Em 2004, Budapeste, o terceiro lugar na categoria romance, também foi escolhido como livro do ano de ficção, para indignação dos que não aceitam ver um compositor ser alçado à glória literária.


Regulamento


A polêmica não está na discussão sobre a qualidade da prosa de Chico ou de Edney, mas no abstruso regulamento do prêmio, que reúne uma infinidade de categorias – em 2010, foram 21 – e uma confusa segunda etapa, na qual os três primeiros colocados nas principais categorias concorrem ao título de livro do ano de ficção e de não ficção.


Em vez do júri especializado da primeira fase, quem escolhe os vencedores da segunda são os representantes da CBL (livreiros, editores, agentes, distribuidores e demais representantes do setor editorial), em geral pouco afeitos ao exercício da crítica literária.


Quem inventou essa regra insólita, entre as outras que há no Jabuti, certamente não pensou na celeuma que podia causar. Por causa delas, autores de qualidade e premiáveis são muitas vezes colocados sob suspeição. Uma vitória merecida ganha ares de ‘tapetão’, mesmo cumprindo as exigências do regulamento.


A Folha consultou a CBL sobre o comunicado da Record. A entidade divulgou uma nota afirmando que ‘no ato da inscrição das obras que concorreram este ano, que teve recorde de inscritos, todos os participantes declararam conhecer o regulamento da premiação’ (veja a íntegra da nota em folha.com/ilustrissima).


Incongruências


Não é de hoje que editores reclamam do funcionamento do Jabuti. Mas as queixas costumam ser em off, pois há um misto de simpatia pelo prêmio e receio de se indispor com a entidade que representa o setor. Os rugidos da Record são uma ameaça à harmonia no mais tradicional prêmio das letras brasileiras.


Não faltam incongruências que contribuem para lançar suspeitas sobre a legitimidade do prêmio. Uma das queixas recorrentes: a cada ano, há sempre livros encaixados em categorias diferentes daquelas em que são registrados na ficha catalográfica, feita pela própria CBL. Há ensaios que ganham como se biografia fossem; há autores clássicos, já mortos, que competem com autores iniciantes.


Não há dúvida de que O Leitor Apaixonado, coletânea de ensaios em que Ruy Castro recolhe suas reminiscências de leitura, merece ser premiado; mas na categoria reportagem? As crônicas inéditas de Manuel Bandeira, que ficaram em terceiro lugar e levaram o prêmio ‘in memoriam’, não deveriam estar numa categoria à parte, reservada aos clássicos? E Nelson Rodrigues, que, uma vez inscrito, nem entre os três primeiros ficou? Quem pode julgar uma tradução do grego antigo, sânscrito, russo ou húngaro, as línguas difíceis que volta e meia dão aos tradutores o Jabuti da categoria?


Prestígio


‘Antes os escritores eram prestigiados pelos prêmios, agora são os prêmios que precisam dos escritores para ter prestígio’, resume o editor José Mário Pereira, da carioca Topbooks. ‘Com a sociedade do espetáculo, já sabemos em janeiro quem vai ser premiado em dezembro. O premiado é fabricado antes, pela mídia.’


Júlio Pimentel Pinto, professor de história na USP, que fez ressalvas a Leite Derramado em seu blog (paisagensdacritica.wordpress.com), defende o autor: ‘O problema não é o Chico, que é sério e escreveu um livro decente. O problema são os aduladores’.


O curioso é que, entre as 21 categorias, nenhuma tem como objetivo revelar autores estreantes, umas das vocações de um prêmio literário. ‘A tradição do Jabuti é escolher os melhores’, explica o curador do Jabuti, José Luiz Goldfarb. ‘Consagrado ou estreante não é critério. Há muitos consagrados premiados, mas a cada ano temos também novidades.’


De fato, há novidades em 2010. Uma delas é o prêmio de melhor romance para Edney Silvestre, por Se Eu Fechar os Olhos Agora, que fez dele o favorito para o livro do ano de ficção. Três meses antes, o autor recebera outro prêmio, o São Paulo de Literatura, mas na categoria primeiro romance.


No Prêmio São Paulo, o vencedor na categoria romance foi Raimundo Carrero – que, aliás, não estava entre os dez finalistas do Jabuti. Chico também estava entre os dez finalistas do São Paulo.


Em tempo: nem Silvestre, nem Carrero ficaram entre os dez finalistas de outro prêmio importante, o Portugal Telecom, que Chico Buarque também faturou.


Goncourt


O terceiro lugar para as crônicas de Manuel Bandeira levou a Folha a perguntar: inéditos de Paul Valéry ou Georges Bataille teriam chance hoje de estar entre os finalistas para o Prêmio Goncourt? A pergunta deve ter parecido bem esquisita, pois Marie Dabadie, a administradora da Academia Goncourt, interrompeu subitamente a troca de mensagens com a reportagem. Insisti. ‘Por favor, consulte o regulamento no site’, ela respondeu. Disse-lhe que o havia lido, mas queria ter certeza. No novo e-mail, a frase que ela recortou e colou assinalava que a distinção se destina estritamente ‘às novas e ousadas experiências do pensamento e da forma’, segundo o testamento de Edmond de Goncourt.


Apenas livros novos, de autores vivos, podem competir, confirmaram representantes do britânico Man Booker Prize e do americano National Book Award. A pesquisa não foi exaustiva. Passa de 300 o número de láureas de grande porte nos EUA e na Europa, informa um dos catálogos que mapeiam prêmios literários do exterior.


Goncourt, Booker Prize e National Book Award têm respeito da crítica, prestígio entre leitores, atenção de editores e livreiros e ajudam a lançar nomes ou a consagrar autores já conhecidos.


Na França, os prêmios são uma mania nacional comparável às greves do metrô: há para todos os gostos, inclusive um indicado pelos alunos do ensino médio, o Goncourt des Lycéens, e um que dá ao vencedor uma taça de vinho por dia, durante um ano, no Café de Flore, ícone dos intelectuais de Saint-Germain-des-Prés.


Com a votação popular pela internet, implantada em 2010 –o que o aproxima de prêmios de cinema, nos quais a plateia dá seu voto na saída –, o Jabuti mais uma vez causou espécie entre os entrevistados do Goncourt, do National Book Award e do Man Booker Prize.


‘Surpreender’ o público, segundo responderam, está entre os atrativos. ‘Como assim ‘se refletimos o gosto do mercado’?’, perguntou Marie Dabadie, irritada.


Valores


O que ajuda um prêmio a ter mais prestígio que outro? Ser o mais antigo ou o pioneiro são alguns dos valores em jogo. Uma grande soma como premiação é outro fator. A reputação dos jurados é essencial. Além, é claro, de ter acertos no currículo, explica James F. English, Ph.D. em literatura inglesa, autor de The Economy of Prestige – Prizes, Awards and the Circulation of Cultural Value (Harvard University Press).


O livro de English, que combina análise sociológica e econômica para compreender prêmios de cinema e literatura, conta uma história que começa na Grécia antiga, com festivais em honra a Dioniso (competia-se com poesia, música e dança), e chega ao século 20, com sua profusão de láureas -a mais famosa delas, o Nobel, que em 1901 inaugurou a era moderna dos prêmios (leia mais em folha.com/ilustrissima).


English acrescenta: ‘Certa medida de escândalo e controvérsia pode dar enorme vantagem a um prêmio, na comparação com outros mais ‘discretos’’. Alguns prêmios têm valor simbólico, e outros, de tão polpudos, garantem a subsistência por um bom tempo. O principal é que, ao receber na capa uma etiqueta que diz ‘vencedor do Goncourt’, uma obra pode mudar a trajetória de um autor.


Mas, para dar certo, a controvérsia deve ser de natureza literária ou crítica – o que não é o caso da polêmica do Jabuti, que tem a difícil tarefa de satisfazer os gregos e troianos associados da CBL.


Quando questões de mercado se misturam a critérios críticos, a chance de algo dar errado é grande, como ocorreu com o romancista argentino Ricardo Piglia, que ‘venceu’ o concurso de sua própria editora, a Planeta.


Na atrapalhada operação, que visava mais promover o romance Dinheiro Queimado do que premiar novos ou antigos talentos, a editora tentou abater com o valor do prêmio parte dos US$ 100 mil que pagara ao escritor como adiantamento dando-lhe um prêmio que, por tabela, alavancaria as decepcionantes vendas do livro.


Descoberta a picaretagem, editora e autor foram processados por um concorrente preterido no certame, que venceu a contenda judicial. Intelectuais se manifestaram em defesa de Piglia, um dos autores mais respeitados do país, que estaria sofrendo uma campanha de difamação.


Política


Na carta à CBL, a Record afirma que ‘a premiação foi pautada por critérios políticos, sejam da grande política nacional, sejam da pequena política do setor livreiro-editorial’. Quem esteve na Sala São Paulo afirma que Chico Buarque subiu ao palco sob gritos de ‘Dilma, Dilma!’.


De fato, num debate estético, é difícil evitar julgamentos políticos, que podem ser de dois tipos: internos – quer dizer, ligados ao círculo literário- ou externos. Não é um autor magoado, sem prêmios, quem diz isso. É Harold Augenbraum, diretor-executivo do National Book Award. A saída, explica, é misturar, num júri, vozes e perspectivas estéticas diferentes.


‘Sempre enfatizamos com os jurados que devem olhar para fora de sua ‘zona de conforto’, ou seja, observar obras bem realizadas que sejam diferentes deles mesmos’, afirma Augenbraum. Diz algo parecido Ion Trewin, diretor literário do Man Booker Prize: ‘Os jurados são escolhidos para refletir uma grande variedade de formações e gostos. Podem ser de qualquer área, desde que sejam apaixonados por ficção’.


O National Book Award foi alvo de críticas, durante décadas, bem como outros prêmios de porte nos EUA, por supostamente ceder à pressão de grandes editoras. O que levou ao surgimento de iniciativas como o Pushcart Prize, criado em 1976 para premiar apenas autores publicados pelas editoras pequenas, independentes.


Repercussão


Mesmo recentes, o Portugal Telecom e o São Paulo de Literatura têm grande repercussão, sobretudo pelo valor concedido aos vencedores. Ajudar bons escritores a constituir um pé de meia que lhes permita viver de escrever, afinal, é um dos propósitos de um prêmio literário. O fenômeno póstumo Roberto Bolaño, chileno que virou best-seller mundial, passou boa parte da vida no anonimato, faturando pequenos concursos de prefeituras espanholas.


Criado em 2003, o Portugal Telecom se constituiu, de certa modo, procurando evitar as fragilidades do Jabuti: de saída, reivindicou o posto de prêmio mais polpudo e preocupou-se em formar um júri final com críticos de renome na imprensa ou na universidade. São dez finalistas e três premiados – primeiro, segundo e terceiro lugares – em prosa e poesia. Outra diferença em relação ao prêmio da CBL é que os jurados do Portugal Telecom se reúnem para debater.


Pelo regulamento, há cotas para autores portugueses e de países africanos de língua portuguesa. Há uma auditoria independente, que acompanha as diversas fases, quando a decisão sobre os semifinalistas é feita por meio de consulta a uma lista de jurados com algumas centenas de nomes.


No Prêmio São Paulo, organizado pelo governo paulista há três anos, o júri tem profissionais de perfil misto – são ligados ao mundo do livro – e apenas duas categorias: melhor romance e melhor romance estreante.


A premiação que oferece é muito superior à do Jabuti. Andrea Matarazzo, secretário de Cultura, lembra que o Prêmio São Paulo de Literatura tem o mérito de, nas duas últimas edições, ter premiado autores com carreira significativa – este ano, Carrero, ano passado, Ronaldo Correia de Brito –, mas que ainda não haviam recebido o devido reconhecimento.


Convergências


Ano a ano, a comparação entre os finalistas do Jabuti, do Portugal Telecom e do São Paulo mostra que há mais convergências que divergências. Até porque muitos dos curadores e jurados se repetem e se revezam.


‘Julgar é uma grande responsabilidade, hoje mais do que no passado, quando os critérios de valor eram mais definidos’, afirma Leyla Perrone-Moisés, crítica literária que participou de mais de um júri do Portugal Telecom, entre eles o de 2010. ‘Apesar disso, quando os críticos se reúnem não há grandes divergências, e muitas vezes há consenso, o que prova que os valores, embora mais fluidos, continuam existindo.’


Outro crítico, Alcir Pécora, avesso a prêmios, ressalta que literatura de qualidade depende não do apoio isolado dos prêmios, mas do nível de educação da população. ‘Dado o quadro conhecido e lastimável da educação brasileira, toda a prática cultural do país está comprometida. Sofrem todas as artes, sofre tudo o que demande e dependa do cultivo intelectual. Claro que um ou outro milagre pode ocorrer, sempre, mas será um milagre, não uma situação sobre a qual se possa descrever pela razão’. As ações culturais de peso, argumenta Pécora, são sempre relativas à educação e não à promoção de eventos culturais isolados, sejam quais forem os agentes envolvidos: críticos, editoras, prêmios, jornais ou revistas.


Ele diz que são mais felizes os prêmios literários de países que os tomam apenas como prêmios literários, em vez de tomá-los como responsáveis decisivos pela melhora da situação cultural e literária do país. ‘Tanto menos se dependa deles como salvação da lavoura, ou, dito de outro modo, tanto mais saibam que são fundamentalmente dispensáveis, tanto mais podem ser interessantes’, diz.


Não é de hoje que editores reclamam do funcionamento do Jabuti. Mas as queixas costumam ser em off, pois há um misto de simpatia pelo prêmio e receio de se indispor com a CBL.


Ano a ano, a comparação entre os finalistas do Jabuti, do Portugal Telecom e do São Paulo mostra que há mais convergências que divergências.


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Sérgio Machado: ‘Edney Silvestre foi garfado’


Na quinta-feira [12/11], o presidente do Grupo Record, Sérgio Machado, enviou carta à presidente da CBL, Rosely Boschini, e ao curador do Jabuti, José Luiz Goldfarb, anunciando que em 2011 não inscreverá livros no prêmio.


O motivo: sua discordância com os critérios da disputa, que premiou como livro do ano de ficção o segundo colocado na categoria romance, Leite Derramado (Cia. das Letras), de Chico Buarque, em detrimento do vencedor na categoria, Se Eu Fechar os Olhos Agora (Record), de Edney Silvestre.


Machado recebeu o editor da ‘Ilustríssima’, Paulo Werneck, na sede da Record, no bairro carioca de São Cristóvão. Entre a indignação com o Jabuti (‘um concurso de beleza’) e a empolgação com a rotativa Cameron que acaba de comprar, Machado e a diretora editorial do grupo, Luciana Vilas Boas, falaram à Folha, tendo por testemunha a assessora de imprensa Gabriela Máximo e 30 das muitas estatuetas do Jabuti já conquistadas pelo grupo.


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Por que a Record não vai mais inscrever livros no Jabuti?


Sérgio Machado – O meu protesto não é contra quem ganhou, é contra o processo, contra o conceito, a concepção do prêmio. Nesse prêmio o livro é inscrito pelas editoras, que pagam por inscrição. Quando eu inscrevo e pago, estou aceitando as regras. E se eu não estou feliz com as regras, o que é que eu posso fazer? Não inscrever. É só isso que eu fiz.


A que você atribui a premiação a Leite Derramado?


S.M. – A concepção do prêmio favorece essa característica de celebridade. Se eu amanhã publicar um livro infantil da Xuxa, é capaz que eu ganhe o infantojuvenil. Esse prêmio, do jeito que está sendo disputado, poderia ser feito na plateia do Faustão. Ou do Silvio Santos. Porque não tem absolutamente nenhum critério.


Soa como um ‘tapetão’?


S.M. – Não. Soa uma coisa mal pensada. Você tem que ser orientado. Tem que haver uma lista. Agora essa lista chega e diz assim: o melhor é esse, o segundo é esse, o terceiro é esse. Se essa lista não ranqueasse, se fosse um short list [lista de finalistas] como o Booker Prize, não haveria esse mico do segundo ganhar [o prêmio de ‘livro do ano’], o terceiro ganhar, o que é uma coisa esquisita.


Existe uma intenção de reafirmar um consenso nacional em torno do Chico Buarque?


S.M. – Acho que isso é uma obviedade. Não acho que houve por parte da CBL, mas de certa forma acaba sendo, quer dizer, fica combinado assim, quando o Chico Buarque tiver um livro, ele já ganhou.


Edney foi roubado?


S.M. – Roubado, ‘garfado’. É uma coisa desagradável, porque a sua defesa pode ser sempre: ah, está com dor de cotovelo… mau perdedor… Mas nós entendemos que o autor é a razão de ser da editora.


E se a CBL propuser um novo regulamento?


S.M. – Claro, vamos estudar, vamos ver, vamos experimentar, claro. A ideia é essa. (Leia a íntegra em folha.com/ilustrissima)