Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A reforma não faz um bom texto

A reforma ortográfica deixou de figurar como notícia faz algum tempo. Confesso que, passada a euforia inicial, só lembro dela quando deparo com hífens, ditongos abertos, hiatos e tremas. Não me considero apta a opinar sobre a importância, a inutilidade, a necessidade ou a praticidade da tal reforma; nem é essa minha intenção. Mas percebo que ainda há um interesse muito grande em saber quais foram as mudanças e o que elas significam na prática.

No final de janeiro deste ano, ministrei um curso de redação para a comunidade, dentro do projeto Cursos de Verão, promovido por uma instituição de ensino superior privada. Mal iniciei a primeira aula, começaram as perguntas sobre a reforma ortográfica e se as ‘coisas’ ficaram mais fáceis depois dela. Disse aos alunos o que percebo: a reforma, para quem escreve, teve efeitos muito pequenos. Afinal, conhecer as novas regras e usá-las corretamente não levará à produção de um texto melhor.

Para quem ensina, trata-se de um dado a mais a ser incorporado e uma preocupação a menos, uma vez que é bem possível que a maioria dos alunos nunca tenha decorado as regras do hífen e sequer tenha ousado colocar trema em alguma palavra. A necessidade de retomar a questão das novas regras ortográficas me fez recorrer a uns recortes de jornal, guardados para me socorrer em momentos como esse. Encontrei recortes de um jornal local, edição de domingo, publicada logo após a divulgação da reforma.

‘Tem que ser curto’

Lembro-me que essa edição me surpreendeu pela decisão do jornal de grifar todas as palavras escritas de acordo com as orientações das novas regras ortográficas. Revirando os recortes, constatei o que já havia percebido naquele domingo em que comprei o jornal. A reforma ortográfica não resolve um problema entre estudantes e profissionais de diversas áreas, que é a incapacidade de desenvolver textos coesos, coerentes, claros e criativos.

Colhi, dessa edição muito preocupada em informar o leitor sobre a reforma, algumas pérolas dignas de nota. E comecei pelo titulo, estampado na primeira página chamando para a reportagem especial: ‘Ser saudável demais pode ser prejudicial à saúde’. A reportagem tinha lá seu mérito ao abordar os radicalismos de algumas pessoas que restringem ou abusam de determinados alimentos ou grupos alimentares com o pretexto de ter mais saúde.

Depois de ler a matéria, compreendi que o que prejudica a saúde não é o fato de ser saudável (como isso seria possível?), mas o fato de fazer escolhas erradas com a intenção de ter mais saúde. Liguei para uma amiga jornalista que trabalha no veículo e comentei. A resposta: ‘Mas como dizer tudo isso no título? Tem que ser curto.’ Achei boa a explicação e desisti de comentar o primeiro parágrafo do texto que começava assim. ‘De tanto correr de alimentos gordurosos, há quem chegue ao outro extremo, o que também não faz bem à saúde.’ Comentei com meus botões: ‘O que não faz bem à saúde? Correr de alimentos gordurosos? E o que significa o outro extremo? Correr em busca de alimentos gordurosos, com certeza.’

Dois corpos foragidos

Outro trecho da mesma reportagem estabelecia uma relação entre velhos sabores e aromas que não combinam mais com hábitos de saúde. ‘As receitas dos pratos franceses, que fazia sempre aos amigos, ficaram reservadas ao velho livro, já amarelado. Com seus sabores e aromas, não combinam mais com os hábitos saudáveis adquiridos.’ Em seguida, a pergunta: ‘Você já reparou em como investimos em nossos sentidos para comer? Antes de sentir o gostinho de uma refeição, nós a vemos, tocamos e cheiramos. E, dependendo da textura, dá até para ouvir o barulhinho do seu preparo, se frito ou cozido. O paladar é algo realmente complexo. Tanto, que chega muito além, às emoções, por exemplo.’

Continuei a divagar com meus botões pensando naquele texto e quase esqueço o que me levara a revirar meus alfarrábios em busca de exemplos para preparar uma aula sobre a reforma ortográfica. Encontrei outras pérolas, essas da época em que era redatora da editoria de polícia de outro jornal local. A que reproduzo aqui é uma das minhas preferidas. ‘Três corpos foram encontrados na manhã de ontem em um areal em Vale Encantado. Dois deles haviam fugido no último domingo do DPJ (departamento de polícia judiciária) de Vila Velha.’ Até hoje, tento compreender.

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Jornalista, Serra, ES