Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A reportagem como marco da resistência

O cardeal de que trata este livro é Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo que, durante o regime militar, entre outras importantes tarefas, realizou um trabalho incansável em favor dos oprimidos e perseguidos da América Latina. E ainda encontrou tempo para ser uma fonte privilegiadíssima de muitos jornalistas.

O repórter é o autor do livro. De 1977 a 1984 trabalhei na Folha de S. Paulo, na revista IstoÉ, na Rede Globo e na TV Cultura, e diante das circunstâncias que se foram apresentando, acabei descobrindo histórias, enfrentando muita tensão e realizando reportagens que, de alguma maneira, marcaram aquele momento delicado da vida brasileira e latino-americana.

Neste livro estão narrados os bastidores das reportagens e a emoção das inúmeras histórias que a dupla, cardeal e repórter, acabou protagonizando no final dos Anos de Chumbo.

Reportagens que, por exemplo, tiraram, do manicômio de Franco da Rocha, em São Paulo, um preso político que ficara lá esquecido por quase 8 anos. A reportagem nasceu da coragem do professor José de Souza Martins de denunciar publicamente o fato, em 1978. Os bastidores dessa reportagem sobre o líder messiânico Aparecido Galdino Jacinto são de tirar o fôlego. A firmeza da Folha de S. Paulo em persistir no assunto e a intervenção de Dom Paulo permitiram tirar Galdino do manicômio.

Linhas tocantes

Encontrar as primeiras crianças da América Latina filhas de militantes políticos e que foram sequestradas pelas forças de segurança, levou-me a pedir asilo na catedral de Montevidéu, Uruguai. Foi Dom Paulo, em pessoa, que me passou essa pauta. Ah, se não fosse o motorista do cardeal uruguaio…

Uma outra reportagem encontrou o corpo do primeiro desaparecido brasileiro, Luis Tejera Lisboa, enterrado no cemitério de Perus, ao lado da capital paulista, depois de muita tensão e medo da repressão. A reportagem mereceu capa da revista IstoÉ e a pauta partiu da Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos, sob o comando de Dom Paulo.

Fui o primeiro repórter a publicar uma lista de desaparecidos (é o tal do furo…). Em 31 de março de 1978, ainda na Folha, saiu a lista de 23 desaparecidos brasileiros que Dom Paulo tinha enviado em correspondência secreta ao presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter.

Ao lado de Fernando Foch, jornalista da sucursal carioca da Folha, dirigida na época pelo Wianei Pinheiro e, depois, por Alberto Dines, fiz a cobertura da histórica reunião dos bispos da América Latina, realizada em Puebla, no México, em 1979, que contou com a presença de João Paulo II, ainda no início de seu papado. O apoio de Dom Paulo para a cobertura foi fundamental. Foi preciso usar muita imaginação, com a ajuda de um frade dominicano, para contar ao mundo o que estava sendo discutido, em segredo, na assembléia dos bispos…

Também em Puebla, tive um contato muito estreito com frei Betto, quando o convidei a fazer a exegese dos discursos de João Paulo II, à luz da Teologia da Libertação.

Enviei a ele os originais de O cardeal e o repórter e recebi de volta 20 linhas que tocaram muito o meu coração. Betto descreveu, com precisão, o que era exercer a profissão naqueles tempos de regime militar.

Lugar da sorte

Meus caminhos se cruzaram pela primeira vez com os do cardeal Dom Paulo Evaristo em 1977, em Itaici, uma espécie de centro de conferências ligado à Igreja Católica e que hospedou, naquele ano, a 15ª Assembléia da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Era a primeira vez que eu cobria um evento reunindo bispos e sai de lá encantado com a calma, a firmeza e a coragem de muitos daqueles homens que representavam 2.000 anos de cultura e do mais duradouro e influente sistema de organização da humanidade no Ocidente: a Igreja Católica.

O encontro de Itaici daquele ano de 1977 foi um marco nas relações entre governo, bispos e, por que não, a imprensa, por conta da divulgação do mais importante documento da Igreja Católica do Brasil até então publicado: ‘Exigências cristãs de uma ordem política’. E sabe Deus como os repórteres que participavam da cobertura diária da Assembléia conseguiram tirar o documento do encontro…

Daquele início do ano de 1977 em diante, o desejo da Folha de S. Paulo de avançar politicamente, comandada pela determinação da família Frias e, na Redação, por Claudio Abramo; o faro jornalístico indomável do Mino Carta, fundador da IstoÉ; o compromisso inabalável de Dom Paulo na defesa dos oprimidos e uma certa ousadia misturada com sorte do repórter deram sua contribuição para que a imprensa pudesse também fazer um pouco a sua parte. Convidei o jornalista Alexandre Gambirásio, que foi secretário de Redação da Folha, para comentar o papel do Cláudio Abramo neste processo. Ele também retrata, do ponto de vista de um cargo de chefia, o clima na Redação da Folha, naquele tempo de muita tensão.

Sempre quis escrever este livro, nem que fosse apenas para mostrar aos repórteres de hoje como era exercer a profissão durante o regime militar, em seus últimos anos de nefasta existência. Como para cumprir este desejo, convidei Mariana Kotscho, jovem e competente repórter, a fazer um dos comentários sobre este livro.

Os fatos que narro aconteceram entre os anos de 1977 e 1984, a partir do momento em que o Brasil começava lentamente a acordar do longo pesadelo de anos de ditadura militar, até o movimento das Diretas, Já!. Fatos que viraram reportagens. Reportagens que cumpriram o papel da imprensa de transmitir informação e conhecimento. Informação e conhecimento que, acredito, podem ter ajudado na construção de uma opinião pública mais consciente e mais fortalecida.

Sempre tive uma espécie de pudor de escrever um livro sobre bastidores e histórias de reportagens que envolveram tanta gente e, particularmente, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Só comecei a mudar de idéia ao revisitar as histórias e me convencer que nem são bastidores assim tão comprometedores, ainda mais 30 anos depois. Acho também que o leitor vai se divertir com as situações criadas e vibrar, junto comigo, com a incrível sorte que fui tendo ao longo das reportagens. Nas minhas narrativas, falo um pouco sobre esta sorte de repórter. E convidei o jornalista Woile Guimarães, que me deu o primeiro emprego de repórter, a comentar esta ‘sorte’.

Tudo gravado

Ainda não inteiramente convencido sobre a conveniência de publicar essas histórias, fui consultar Dom Paulo porque, afinal, era também dele que eu estava falando. Fui recebido por ele no dia 27 de dezembro de 2008 e nossa conversa se transformou no último capítulo do livro não previsto originalmente, tal a fonte de energia que jorrou desse reencontro entre o cardeal e o repórter, depois de pelo menos 20 anos desde a última vez em que nos havíamos visto. No fundo, fui buscar um nihil obstat – um tudo bem – do cardeal e ele disse apenas o seguinte: ‘Olha, Ricardo, eu não vou ler o livro antes e não me peça para confirmar nada’. E, sorrindo, complementou: ‘Apenas escreva o seu livro’. Este é Dom Paulo Evaristo, cardeal Arns

Só que, em abril de 2009, ao saber que o livro estava pronto, Dom Paulo mandou dizer que gostaria de ler os originais. Ai, ai, ai…! É claro que enviei o texto, mesmo sem revisão. Em poucos dias ele leu O cardeal e o repórter e me dirigiu três linhas de comentário: ‘Gostei. Está precisando de uma breve revisão. Tem erros de quem estudou pouco latim com os padres jesuítas’. Pura gozação, porque em visita que havia feito a ele com a Clarice Herzog, eu havia me gabado de ter aprendido, no Colégio São Luis, dos jesuítas, o ‘Padre Nosso’ em latim.

Sem contar a enorme emoção de ver Dom Paulo e Clarice Herzog juntos outra vez, depois de muitos e muitos anos. Clarice foi, com o filho Ivo, convidar Dom Paulo para participar do Instituto Vladimir Herzog e eu, como repórter, registrei tudo com o meu olhar, o olhar da câmera e uma certa irreverência, talvez própria da profissão. Irreverência que me levou a enviar a foto para a coluna da Mônica Bergamo, na Folha, que a publicou em 3 de abril de 2009. A irmã Denavir, auxiliar de Dom Paulo contou-me que, ao ver a foto no jornal, Dom Paulo, sorrindo, comentou apenas: ‘Esses jornalistas…’

Já imaginaram o que ele vai dizer quando souber que, além de fotografar, também gravei em imagens 25 minutos do encontro, na mesma camerazinha, sem falar nada com ele? E nem com a Clarice, diga-se de passagem.

Primeira pessoa

Uma preocupação e um cuidado que tive ao escrever o livro foi o de não expor desnecessariamente pessoas que foram minhas fontes preciosas. Mas estou convencido de que as que estão citadas, com certeza, ficarão felizes com o relato da contribuição que deram para derrubar o regime militar.

A propósito de fontes, quando eu escrevia esta introdução, em dezembro de 2008, morria nos Estados Unidos o ‘Deep Throat’, a famosa fonte que cavou a sepultura e enterrou o governo Nixon, com o caso Watergate, escancarado no Washington Post pelos repórteres Carl Bernstein e Bob Woodward. As fontes devem merecer sempre o respeito dos jornalistas e, particularmente, dos repórteres (tem diferença entre jornalista e repórter? Claro que tem…). Para comentar o papel de fontes convidei uma das minhas melhores, o advogado José Gregori, que foi presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo.

A data redonda – a data jornalística – deu um impulso final para me convencer a escrever O cardeal e o repórter. Em 2009, a anistia de 28 de agosto de 1979 completou 30 anos. A libertação do Galdino do Manicômio Judiciário, graças a uma campanha histórica da Folha de S. Paulo, também fez 30 anos. Como também o episódio da localização das crianças sequestradas e do corpo do primeiro desaparecido brasileiro, além do histórico encontro do episcopado latino-americano, em Puebla, no México. Como acabo narrando momentos da nossa história, convidei o historiador Carlos Guilherme Motta para comentar essa ousadia.

Já a última barreira não foi assim tão difícil de ser transposta. Quando decidi escrever, ainda me debati um pouco com a dúvida se o faria na primeira ou na terceira pessoa do singular, como um mero contador de histórias. Um amigo, Wladimir Ganzelevitch, resolveu o meu problema com uma pergunta: ‘Você vai escrever um romance ou dar o seu testemunho sobre um momento da história do Brasil?’ Aliás, a Marcinha, minha mulher, que aguentou estoicamente a minha dedicação ao livro, nunca pensou que pudesse ser diferente. A minha filha Julia, de 18 anos e o Felipe, de 9, também deram muita força e apoio ao me verem pesquisando, sem parar, anotações, recortes de jornal, livros, documentos e checando dados pelo telefone, com a firme intenção de não cometer equívocos, mesmo 30 anos depois.

O livro está na primeira pessoa do singular também porque quis contar os fatos, os bastidores, as histórias com total liberdade e manifestar claramente a emoção que senti ao participar, como protagonista involuntário, de tanta coisa importante. [Outubro, 2009]

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Um pouco das muitas histórias do livro

** O preso político que, felizmente, benzia no manicômio de Franco da Rocha

A série de reportagens, que saiu na Folha de S.Paulo, nasceu da coragem do professor José de Souza Martins de denunciar publicamente o fato, em 1978. Os bastidores dessa reportagem sobre o líder messiânico Aparecido Galdino Jacinto são de tirar o fôlego. Só a intervenção de Dom Paulo permitiu tirar Galdino do manicômio.

** Será que enganar um bispo, mesmo só um pouquinho, é pecado?

O encontro dos bispos brasileiros, em Itaici, em 1977, discutia o mais importante documento da Igreja sobre as relações com a política, em plena ditadura militar: ‘Exigências Cristãs de uma Ordem Política’. Só Deus sabe como os repórteres que participavam da cobertura diária da Assembléia conseguiram tirar o documento do encontro…

** O alter ego do cardeal que não resistiu e entregou a lista dos desaparecidos

Foi um furo de reportagem publicar na grande imprensa (Folha), a primeira lista de desaparecidos brasileiros. A lista, entregue em conta-gotas, fazia parte da correspondência confidencial de dom Paulo com o presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter. Só que o que aconteceu na noite da publicação da matéria na Folha é simplesmente inacreditável.

** Bispos em Puebla, México. A Folha arrasando na cobertura (e o editor-chefe falando em chamar os repórteres de volta)

O apoio de Dom Paulo para a cobertura do encontro de bispos da América Latina foi fundamental. E foi também preciso usar muita imaginação, com a ajuda de um frade dominicano, para contar ao mundo o que estava sendo discutido, em segredo, na assembléia dos bispos. Desta maneira, a cobertura da Folha foi muito, mas muito diferente dos outros jornais…

** Anatole e Vicky. A vitória do amor, da solidariedade e do bom senso

Encontrar as primeiras crianças da América Latina filhas de militantes políticos, que foram sequestradas pelas forças de segurança e entregues para adoção levou o repórter a pedir asilo na catedral de Montevideu. Ah, se não fosse o motorista do cardeal uruguaio…

Foi Dom Paulo, em pessoa, que passou essa pauta. A reportagem saiu na IstoÉ.

** O pau come na Penha; Claudio Abramo deixa a Folha

De repente, o grito: ‘O povo, unido, jamais será vencido’, que logo se espalhou pela massa. Foi assim que a animação que tomou conta das pessoas transformou uma simples caminhada na primeira passeata de protesto da década de 70, fora das hostes estudantis.

** O Dops também teve esta percepção. Enquanto isto, na redação da Folha

‘Quem avisou ao senhor do atentado ao Somoza?’, me perguntou o diretor do Dops.

Em um minuto eu estava ao lado do Marcão, o meu cinegrafista, com o caixão do Somoza bem na nossa frente e, do outro lado, a viúva, de preto e chorosa. Olhamos um para o outro, o Marcão armou a câmera, contornamos o caixão e fizemos uma longa entrevista com a senhora. Já no Brasil, o diretor de Dops parece que não gostou muito do furo…

** Um Prêmio Nobel da Paz quase esquartejado…

A cena que se formou foi um estranho cabo de guerra: eu e o Zé Gregori puxando o Perez Esquivel, prêmio Nobel da Paz daquele ano, por um braço, quatro agentes federais puxando pelo outro, fotógrafos registrando a cena e eu gritando: ‘Pára com isso… Os jornais do mundo inteiro vão dizer que o Brasil prendeu o prêmio Nobel da Paz… Vai ser uma vergonha!’ Antes que circulasse a notícia ‘Prêmio Nobel da Paz é esquartejado no Brasil’, interrompemos o cabo de guerra para negociar…

** Uma jovem mulher em busca do marido desaparecido

Encontrar, ao lado de Suzana Lisboa, o primeiro corpo de um desaparecido brasileiro, Luis Tejera Lisboa, enterrado no cemitério de Perus, ao lado da capital paulista, mereceu capa da revista IstoÉ. A pauta partiu da Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos, sob o comando de Dom Paulo.

** Dom Paulo e Clarice Herzog, a emoção do reencontro

Sem contar a enorme emoção de ver Dom Paulo e Clarice Herzog juntos outra vez, depois de muitos e muitos anos. Clarice foi, com o filho, Ivo, convidar Dom Paulo para participar do Instituto Vladimir Herzog e eu, como repórter, registrei tudo com o meu olhar, o olhar da câmera e uma certa irreverência, talvez própria da profissão.

‘Estou preparando a minha passagem’, diz dom Paulo, na nossa despedida.

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Alguns comentários sobre o livro

** Frei Betto – (…) O autor logrou desafiar riscos e dificuldades, como ameaças e censuras, criando uma rede que lhe permitiu trazer à tona o que o regime militar insistia em manter oculto.

** Carlos Guilherme Motta – (…) O jornalista/historiador empurrou nossa História para frente, com a aguda percepção de quem sabe estar vivendo em uma sociedade em que a iniqüidade, o desprezo pelos direitos fundamentais do homem, da mulher, das crianças, dos idosos, dos desvalidos ainda não foram reconhecidos plenamente.

** José Gregori – (…) Ricardão foi dessa geração de jornalistas: primeiro lugar a notícia; depois o coração. Ótimo se coincidissem; mas senão, não tinha mão invisível acrescentando ‘coisas’.

** Mariana Kotscho – (…) Uma leitura imperdível para quem quer revisitar o passado, para as novas gerações de jornalistas e, particularmente, de repórteres, grandes farejadores de histórias para contar, que conseguem fazer da sua profissão uma eterna tentativa de mudar o que está errado, denunciar injustiças e ilegalidades, de melhorar a vida da sociedade, a vida das pessoas.

** Alexandre Gambirásio – (…) O consolo era a convivência com um grande jornalista (Cláudio Abramo) e o trabalhar no dia-a-dia com repórteres e redatores apaixonados, que se empenhavam generosamente no combate pela liberdade. Entre eles, o corajoso Ricardo Carvalho, autor deste livro, protagonista ele também de episódios importantes na resistência à ditadura.

** Woile Guimarães – (…) A ordem era avançar sempre um pouco, ganhar as migalhas de liberdade que apareciam. Foi uma luta dura, que se travava em várias frentes, com repórteres como o Ricardão, passando pelos editores e chegando lá na Alice-Maria e Armando Nogueira, que sofriam no final do corredor polonês.

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Jornalista