Mais de um analista de sociedade já pôde observar que a mudança social não se dá apenas na ordem dos fenômenos sensíveis ou materialmente comprováveis, mas igualmente no plano das significações, onde avultam idéias e imagens. Imaginário é o nome corrente desse plano subjacente ao modo de agir dos sujeitos e das culturas, que dinamiza as representações e as mentalidades, constituindo, em última análise, o vivido concreto, isso que os homens experimentam existencialmente de uma estrutura social.
O espírito comum, de Raquel Paiva, orienta-se pela concepção de comunidade como um instrumento cultural – logo, como uma significação transformadora – voltado para a compreensão de variados e fragmentários projetos de autonomia social por parte de grupos emergentes no quadro das complexas relações entre globalização financeira do mundo e sociedade. Comunidade não é, para ela, simples conceito sociológico, descritivo de uma forma de estruturação social classicamente oposta a sociedade, mas significação (idéia, imagem) mobilizadora de mudança social. Isso implica dizer que sua abordagem culturalista (por vias da problemática dos meios de comunicação) da questão comunitária tem foros políticos, não na acepção partidarista do termo, e sim no sentido de criação política com vistas à instituição global da sociedade.
Neste trabalho, a idéia de comunidade pode muito bem ser assimilada ao que Bachelard descreve em A Poética do Espaço, como um ‘arquétipo de longa duração’, isto é, uma forma persistente no imaginário social, mas pertencente a tempos históricos diferentes. Nada de inconsciente coletivo junguiano, e sim de potência realizadora das pulsões coletivas. Arquétipo é aqui uma imagem forte, uma regra da representação social que circula na experiência vivida dos indivíduos e dos grupos, transformando os seus modos de ver o mundo.
O que vem nos mostrar O Espírito Comum é que o ‘arquétipo’ da comunidade ganha força insuspeitada nesta nova era do crescimento econômico, baseado nas neotecnologias da informação. Ele aponta para as possibilidades de se trabalharem novas relações consensuais no espaço de sistemas – monetários, políticos, sociais – instáveis e confusos. Mas aponta principalmente para as exigências de se encontrar o caminho político da solidariedade numa nova cidade humana.
Quase todo mundo viu Blade Runner, de Ridley Scott, projeção sombria de uma sociedade dominada por uma minoria high-tech, que relega à lata de lixo da história o restante da população. Com O Espírito Comum pode-se tomar contato com o revés afirmativo daquela distopia: é possível reprojetar comunitariamente o futuro. Isto é o que nos demonstra Raquel Paiva neste livro mais do que oportuno.