Estamos vivendo duas histórias distintas: a de verdade e a criada pelos meios de comunicação. O paradoxo, o drama e o perigo estão no fato de que conhecemos cada vez mais a história criada pelos meios de comunicação e não a de verdade. (Ryszard Kapuscinski)
A idéia deste livro ultrapassou o estreito limite da imaginação na manhã quente e úmida de 26 de novembro de 2004, no Jardín Botánico, pulmão verde de Palermo, em Buenos Aires, onde eu costumava ler John Berger. Sob as sombras cálidas de árvores centenárias, encantava-me a sessão de tai chi chuan que atraía 30 pessoas da terceira idade. Que delicada sincronia entre os exercícios em câmera lenta, o silêncio obsequioso da meditação e os movimentos vivazes dos leques coloridos. Uma paz inebriante junto ao tráfego celerado da Avenida Santa Fe. Mal percebi a aproximação de dois adolescentes (não tinham mais que 14 anos) que caminhavam por uma das aléias de terra batida. Embora com os corpos a três palmos de distância, relacionavam-se através dos relâmpagos interiores liberados por dedos nervosos nos teclados dos celulares. Quando pararam para uma breve troca de resmungos, levantei-me do banco de madeira e alcancei-os com o olhar ansioso de Julio Cortázar à entrada dos velhos bilhares da Avenida Corrientes. Simplesmente disputavam um jogo eletrônico em rede, utilizando tecnologia wireless.
Em um minuto os dois gladiadores escapuliram pela saída lateral na Calle República Árabe Síria. Ignoravam os sinais ao redor, qualquer vestígio de palpitações além dos visores mínimos de cristal líquido. E, no entanto, havia a harmonia desalinhada dos ideogramas chineses, logo ali, no gramado do tai chi. Ao deixar o jardim, contornei as turbulências da Avenida Las Heras e avistei, duas quadras adiante, um reluzente painel digital. Não sei que estranho ímpeto me levou àquela banalização do futuro em 3D. Flashes meteóricos atiçavam curiosidades com a superexposição de mantras da era do virtual: a conexão perpétua (Conéctame!) e a informação ininterrupta (Know, now!).
Mundo paradoxal e alucinante, que coloca lado a lado o transcendente e o fortuito; a leveza de espírito e as máquinas de guerras simuladas; as inquietações afetivas e as fantasias dissolvidas nas tramas da digitalização.
Ofegância e miséria
Sociedade midiatizada surgiu na quentura úmida de Palermo, entre o assombro e a perplexidade, e não demorou a conquistar a adesão de dez intelectuais de renome internacional, com os quais me correspondia por e-mail.
A cada texto que se somava ao projeto, eu percebia diálogos imprevistos ou certas linhas de confluência nas argumentações críticas. Como se não existissem oceanos e percursos entre nós, construíamos, sem acordo prévio, uma base de entendimento: é impossível aceitar a reversão radical das expectativas humanizadoras, somente porque o porvir se antecipou às previsões e a existência está de cabeça para baixo. Desde quando continuidades estáveis são afins com gadgets que sacramentam a mudança efêmera?E o que dizer da colagem de êxtases ultra-rápidos com desejos que precisam de calma para germinar, crescer e amadurecer?
A verdade é que o regime de tempo convulsivo das tecnologias disparadas (feliz expressão de Gabriel García Márquez) impõe transes e abala equilíbrios. Redes, sistemas e circuitos tecem um emaranhado de imagens, sons, efeitos especiais, palavras e discursos que subverte cronologias e lugares.
A agência Reuters atualiza o noticiário 23 mil vezes por segundo nos horários de pico. Soa o alarme do celular e o marketing móvel invade a tela com ofertas de entretenimento para targets específicos. Até os 15 minutos de fama preconizados por Andy Warhol ficaram longos demais. Os spots publicitários estão sendo encurtados ao máximo, porque telespectadores impacientes não suportam esperar 30 segundos, assediados que estão por outras mídias. Seria demasiado recordar que, na longínqua Paris sem os trens de grande velocidade, as sensações fugazes já haviam motivado Baudelaire a assinalar que não interessa a latitude, se as nuvens passam?
A hiperinflação audiovisual traduz o impulso irresistível de expansão do capitalismo globalizado. Fluxos de altíssima potência intensificam ganhos dentro e fora das especulações do mercado financeiro. A espiral de acumulação incorpora signos faiscantes: marcas, ícones, performances, shows, aventuras, suspenses e tragédias. E a mitologia do tempo real impulsiona a difusão de repertórios excessivos e a concentração de riqueza e poder. Isso me faz lembrar o diagnóstico do saudoso Milton Santos ao contemplar o eclipse da razão ética no novo século de ofegância e miséria:
‘O triunfo da técnica, a onipresença da competitividade, o deslumbramento da instantaneidade na transmissão e recepção de palavras, sons e imagens e a própria esperança de atingir outros mundos contribuem, juntos, para que a idéia de velocidade esteja presente em todos os espíritos e a sua utilização constitua uma espécie de tentação permanente. Ser atual ou eficaz, dentro dos parâmetros reinantes, conduz a considerar a velocidade como uma necessidade e a pressa como uma virtude. Quanto aos demais não incluídos, é como se apenas fossem arrastados a participar incompletamente da produção da história’ [Milton Santos. O país distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania. SãoPaulo: Publifolha, 2002, p. 162.]
Expressões de vida
Parte apreciável das mudanças na forma contemporânea de viver vincula-se à primazia da comunicação na ambiência tecnocultural. Primeiro, pela capacidade de redes infoeletrônicas, satélites e fibras ópticas de interligar povos, países, culturas e economias, procurando unificá-los em torno de sínteses de uma hipotética vontade geral. Segundo, porque as relações sociais e os processos de produção simbólica estão cada vez mais midiatizados – isto é, sob a égide de mediações e interações baseadas em dispositivos teleinformacionais [sobre a noção de midiatização, consultar o estudo de Muniz Sodré constante deste volume].
Os quadros de referências envolvem-se com a moral prescritiva da mídia, quase sempre afinada com a ordem do consumo e a estetização espetacularizada da realidade. Tudo parece reforçar as identificações projetivas e a representação total em telas e monitores: a moda, o corpo, a intimidade, o sexo, as competições esportivas, o design, a literatura de auto-ajuda, o turismo, a ficção científica, o cinema-catástrofe, a religião, a música tecno, os museus… Essa febre midiática afigura-se como imperativo para a fixação de valores e crenças, bem como para a consolidação da lógica da lucratividade em todos os ramos culturais.
Partindo de tais premissas, este livro busca repensar mutações e dilemas de uma sociedade saturada de impactos audiovisuais e acessos desiguais a tecnologias e conhecimentos. Os co-autores analisam um conjunto de interrogações que remetem aos modos de produzir, ser, sentir e reagir numa atmosfera mercantilizada.
É apropriado falar em ‘sociedade da informação’ e ‘diversificação simbólica’ num contexto em que as safras multimídias estão sob controle de conglomerados transnacionais? Até que ponto as identidades e tradições resistem à voracidade do espetáculo e aos impactos das novas tecnicidades? Onde se alojam vontades das audiências na cultura do infoentretenimento? O dilúvio de inovações favorece partilhas de saberes ou sublinha zonas de estratificação? A comunicação virtual efetivamente pode interferir nas escalas de valor, nos sistemas educativos e nos padrões de sociabilidade estabelecidos pelas mídias hegemônicas?
Enfoques e interpretações aqui reunidos interpelam nossa época de implosões de sentidos, direcionando holofotes para o que David Harvey chama de ‘ciranda das feitiçarias tecnológicas’ [David Harvey. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004, p.178] – combinatória de novidades feéricas, abundâncias rentáveis, emoções baratas e esperanças em processo (o software livre, as redes colaborativas, as rádios comunitárias, o copyleft). Significa remover da quietude forçada contradições perturbadoras. Julia Roberts fatura US$ 20 milhões por filme, enquanto metade dos trabalhadores em atividade na Terra recebe US$ 2 ou menos por dia. Significa também lustrar pacientemente o pensamento crítico, antídoto precioso contra a indiferença e a apatia emanadas dos discursos dominantes, sobretudo os midiáticos.
Se o trabalho intelectual se esquiva de confrontá-los, esses discursos seguirão incólumes na sua pretensão, tão bem apontada por Edward Said, de ‘justificar, disfarçar ou mistificar seus dominantes e, por outro lado, impedir as objeções ou desafios que lhe são dirigidos’ [Edward Said. ‘O papel público de escritores e intelectuais’, em Dênis de Moraes (org.). Combates e utopias: os intelectuais num mundo em crise. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 40]. Em sentido análogo, a expectativa implícita no debate das idéias é a de vislumbrarmos expressões de vida e horizontes criativos para além das satisfações descartáveis, na contramão das certezas fúteis.
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Sobre os autores
Armand Mattelart – Professor de ciências da informação e da comunicação na Université Paris VIII. Em sua obra, traduzida em diversos países, incluem-se História da utopia planetária: da cidade profética à sociedade global (Sulina) e Para ler o Pato Donald: comunicação e colonialismo (Paz e Terra, com Ariel Dorfman).
Dênis de Moraes – Professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do CNPq. Publicou, entre outros livros, Cultura mediática y poder mundial (Norma) e Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder, org. (Record).
Douglas Kellner – Professor da Cátedra George F. Kneller de Filosofia da Educação da University of California, Los Angeles. Além de estudos sobre Herbert Marcuse, escreveu A cultura da mídia: estudos culturais, identidade e política entre o moderno e o pós-moderno (Edusc) e Media spectacle (Routledge).
Eduardo Galeano – Jornalista e escritor uruguaio, foi diretor de redação das revistas Marcha (Uruguai) e Crisis (Argentina). Autor de Veias abertas da América Latina (Paz e Terra) e da trilogia Memórias do fogo (L&PM), esta contemplada com o American Book Award. Recebeu duas vezes o Prêmio Casa de Las Américas, em Cuba.
Guillermo Orozco Gómez – Professor titular e pesquisador do Departamento de Estudos da Comunicação Social da Universidad de Guadalajara, no México. Foi catedrático da Unesco em Barcelona e Bogotá. Publicou Televisión, audiencias y educación (Norma) e Historias de la televisión en América Latina (Gedisa), entre outros títulos.
Jesús Martín-Barbero – Professor e pesquisador visitante em algumas das principais universidades da América Latina, da Europa e dos Estados Unidos. Destacam-se em sua obra Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia (Ed. UFRJ) e Ofício de cartógrafo: travessias latinoamericanas de comunicação na cultura (Loyola).
Lorenzo Vilches – Professor titular da Universidad Autónoma de Barcelona, onde dirige o Master Internacional de Escritura para Cine y Televisión. Coordena o Observatorio Europeo de la Ficción Televisiva. Publicou, entre outros títulos, A migração digital (Loyola/PUC) e La televisión: los efectos del bien y del mal (Paidos).
Manuel Castells – Professor sênior e pesquisador do Instituto Interdisciplinario de Investigación sobre Internet da Universitat Oberta de Catalunya, em Barcelona. Autor da trilogia A era da informação: economia, sociedade e cultura (Paz e Terra) e de A galáxia da Internet (Jorge Zahar). Seus livros estão traduzidos em dezenas de países.
Marc Auge – Professor de antropologia da École des Hautes Études en Sciences Sociales e diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris. Em sua obra incluem-se Não lugares: introdução a uma antropologia do supermodernidade (Papirus) e Por uma antropologia dos mundos contemporâneos (Bertrand).
Muniz Sodré – Professor titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq. Autor de livros editados no país e no exterior, como Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede (Vozes) e Império do grotesco (Mauad, com Raquel Paiva).
Pierre Musso – Professor de ciências da informação e da comunicação da Université Rennes II e pesquisador do Departamento de Ciência Política da Université Paris I. Publicou, entre outros títulos, Critique des réseaux e Télécommunications et philosophie des réseaux (ambos pela PUF).