Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A vitrine e a vidraça

Há muito se diz que um dos grandes entraves ao diálogo entre os pesquisadores dos estudos da Comunicação e os jornalistas é o desconhecimento das rotinas do outro. Acadêmicos investigam e exercem o poder da crítica quanto à produção da notícia. Jornalistas ignoram trabalhos acadêmicos por considerá-los distantes da realidade da profissão. Acostumados ao diuturno trabalho de fiscalização pública e de cobranças sociais, mostram-se incomodados quando se veem como vidraça.


Em Vitrine e vidraça: Crítica de Mídia e Qualidade no Jornalismo há uma clara sinalização de que algo pode mudar. Não que as críticas tenham recuado, pelo contrário, recrudesceram com a complexidade do jornalismo atual. Mas há a constatação de que estas precisam de mais objetividade. Como diz o organizador da obra Rogério Christofoletti, premiado como liderança emergente do ano pela Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares de Comunicação, ‘é fácil ser pedra; difícil é ser vidraça!’. E em seguida complementa: ‘Neste livro, o leitor não tem diante de si uma pedra contra a vidraça. Seria fácil, cômodo, confortável, leviano apenas atacar o jornalismo. Propomos que o leitor veja neste livro um tijolo: rígido no espírito, áspero na superfície, mas de natureza inalienavelmente construtiva’ (p.3).


‘Vida sem vista é vida no escuro’


É, portanto, com este espírito, que sete pesquisadores nos entregam onze artigos em dois capítulos. No primeiro, lançam uma importante questão: como e em que parâmetros criticar? Entendem que se a crítica for clara e amparada em dados mensuráveis, sua absorção poderá ter menos resistência. Para isso, discutem conceitos e métodos, alguns inovadores, embora ainda dependentes de serem testados. No segundo capítulo, demonstram os avanços que se pode colher com a crítica e chegam a algumas questões pouco exploradas no estudo do jornalismo: como se mede a qualidade entre diferentes publicações? O que é bom e o que não é, e porque não é? Parece simples, mas tente você, leitor, definir a qualidade de um jornal. E mais, coloque neste meio as inevitáveis tensões manifestas ou latentes, em torno de critérios editoriais, metas comerciais, preocupações sociais e pressões políticas.


Imagine, agora, uma balança em que de um lado está a dependência que o jornalismo tem dos interesses econômicos e políticos e, do outro, as ações cidadãs e democráticas de um desejável conteúdo. O que pesa mais? Quem nos propõe a provocação é Luiz Martins da Silva, com o artigo ‘O jornalismo como teoria democrática’. O autor – pesquisador e jornalista – está dos dois lados do ‘balcão’. E este é um fator interessante deste livro, já que vários dos autores são, simultaneamente, vitrine e vidraça, para retomarmos o título da publicação.


Pois bem, Martins da Silva avaliza que a balança pesa mais para o que ele chama de ‘ideologia da verdade’, o jornalismo democrático. Nesta defesa, cita um trecho do célebre discurso do jornalista, jurista e escritor Rui Barbosa que, em 1920, escreveu o clássico ‘O dever da verdade’, sobre o papel da imprensa:




‘(…) A imprensa é a vista da Nação. (…) Sem vista mal se vive. Vida sem vista é vida no escuro, vida na soledade, vida no medo, morte em vida: o receio de tudo, dependência de todos; rumo à mercê do acaso; a cada passo, acidentes, perigos, despenhadeiros (…)’ (p.11).


Responsabilidade social da mídia


O autor defende que o desempenho dos órgãos de informação deve ser avaliado pela agregação de ‘valor-serviço’ às notícias. Este seria formado por informações complementares que gerariam benefícios extras e facilitariam a contextualização do leitor.


É também de olho no contexto que o sociólogo Danilo Rothberg defende, em dois artigos, ‘Jornalismo e informação para a democracia – parâmetros de crítica de mídia’ e ‘O conceito de enquadramento e sua contribuição à crítica de mídia’, que a avaliação da notícia seja feita a partir do ‘enquadramento’ que é oferecido ao leitor. Explica que cada informação deve ser enquadrada numa visão mais ampla, de modo que o cidadão entenda quais são as escolhas, as compensações e as consequências daquele fato. Explica que os meios de comunicação fazem enquadramentos parciais e que, muitas vezes, distorcem ou reduzem a mensagem. Um dos exemplos citados, chamado de ‘jogo’ (p.23), ocorre quando, numa campanha eleitoral há mais destaque para a competição entre adversários do que para as propostas. Adiante, o autor levanta um ponto de vista que, em nosso entender, merece ser testado junto a jornalistas e executivos de mídia: se as críticas forem mais exatas e objetivas, dando menos margem a questionamentos, a formação do profissional será melhor? Rothberg acha que sim.


É sabido que os jornalistas também questionam sua rotina. Por exemplo: ‘até que ponto as instituições de comunicação podem dar cobertura aos atos de terrorismo na medida em que eles muitas vezes visam o espetáculo que a mídia vai proporcionar?’ (p.47) É uma discussão que Fernando Oliveira Paulino, da Rede Nacional de Observatórios de Imprensa, acha que deva fazer parte, também, dos critérios avaliados pelos observadores. Paulino assina ‘Responsabilidade Social da Mídia: análise conceitual e perspectivas de aplicação no Brasil, em Portugal e na Espanha’ e analisa como estes três países se posicionam diante deste desafio. Resgata a ideia do MARS (Media Accountability Systems) [conceito criado por Claude-Jean Bertrand, criando uma ferramenta para medir a responsabilidade social dos media; entre eles, a figura do provedor do jornal, as colunas de ‘erramos’ publicadas diariamente nas edições e os programas de educação para os media], como forma de estabelecer maiores compromissos deontológicos por parte das empresas. O autor segue com o assunto em ‘De Ouvinte a Ouvidor: Responsabilidade Social da Mídia’, quando propõe que a atuação do ombudsman possa se constituir como um MARS, estimulando as instituições de comunicação a serem mais rigorosas com a produção e a divulgação da informação. Aqui são levantadas questões sempre polêmicas como a liberdade de imprensa e seus limites, a participação da audiência e a formação de conselhos de leitores. Se não esgota a abordagem, ao menos suscita o interesse em novas imersões aos temas.


A aposta na linguagem simples


Neste primeiro capítulo o que o livro mostra são propostas para uma forma eficiente de se questionar e educar a mídia em busca da informação qualificada. Mas isso não basta. Na abordagem de Josenildo Luiz Guerra, coordenador do projeto Agência Experimental de Reportagem e Monitoramento de Cobertura, há a necessidade de se incorporar novas áreas de conhecimento à pesquisa do jornalismo. Daí propõe um modelo ‘administrativo’ para a crítica da notícia. É o que ele detalha em ‘Monitoramento de Cobertura e Produção Experimental Monitorada’ e também em ‘Avaliação de qualidade jornalística: desenvolvendo uma metodologia a partir da análise da cobertura sobre segurança pública’. Guerra começa por discutir o conceito da qualidade, explicando que este poderia ser medido pelo espaço entre a expectativa da sociedade em relação ao noticiário e o resultado efetivamente apresentado pelos jornais. É uma fórmula quase matemática. Caminha no sentido de criar o conceito de um Programa de Qualidade em Jornalismo (PQJ), passa pelos estudos de newsmaking, mas não se limita às observações etnográficas, pois avança para intervenções no ambiente pesquisado. É o que ocorre com a central de pautas onde propõe mudanças no processo de escolha de fontes e variedade de temas abordados. As ações se mostram claras quando o autor relata a pesquisa de campo em torno da cobertura da área de segurança pública. A partir daí, desenvolve conceitos como: Matriz de Cobertura, Valor-Notícia de Referência e Programa de Cobertura. Uma forma científica de se pensar o jornalismo.


No segundo capítulo, que trata do ‘aperfeiçoamento e do avanço’, a jornalista e educadora Laura Seligman traz um alento. Ela mostra em ‘Jornais Populares de qualidade: Ética e sensacionalismo em um novo padrão do jornalismo do interior catarinense’, que o tradicional conceito de que jornal popular é sinônimo de sensacionalismo, já pode ser revisto. Embora parta de exemplos regionais, destaca o que a Associação Nacional de Jornais (ANJ-Brasil) chama de Jornalismo Popular de Qualidade. Evidencia que já é visível um abandono do tripé crime-sexo-escândalo em troca de outras abordagens de caráter popular. Embora admita que, ainda hoje, estes jornais sigam apostando na violência como principal assunto, ressalta que as imagens e os termos escatológicos já são evitados. Agora, diz a autora, se aposta na linguagem simples e na prestação de serviço para conquistar o novo leitor. Seligman nos dá uma pista para entender a mudança: a maior parte dos populares da atualidade pertence a grandes conglomerados de comunicação, empresas que detêm outros títulos já consolidados.


Concentração pasteuriza o jornalismo


Podemos acrescentar que se pode verificar aí uma estratégia mercadológica, voltada para agregar novas faixas de consumo, recentemente incorporadas à classe média brasileira. Não por coincidência, é justamente o segmento dos populares que apresenta o maior crescimento nas vendas, hoje no Brasil, enquanto muitos ditos ‘consolidados’ enfrentam quedas de tiragem.


Em relação às empresas que acumulam títulos, encontramos eco quando Rogério Christofoletti analisa a ‘Concentração de mídia e qualidade do noticiário no sul do Brasil’. Como relata, a maior complexidade da economia ocidental -que se apresenta com um nível competitivo de difícil comparação na história- impulsionou o processo ainda crescente de incorporação e aquisição de empresas nos mais diferentes ramos da economia. E com o mercado de mídia não é diferente. O autor lembra, no entanto, que no Brasil a acumulação se dá tanto pelas atuais características da economia, como por condições sempre presentes na legislação e cultura do país. A concentração de mercado no Brasil se revela visível nas redes de televisão: num país de dimensão continental há apenas seis redes em sinal aberto operando por todo o território, com o apoio de emissoras afiliadas que reproduzem a maior parte da programação das geradoras. Ao analisar o oligopólio registrado no sul do Brasil, refere-se à empresa RBS, a mais importante rede regional do país, revela que por lá há poucos ou nenhum concorrente local. A hipótese levantada é de que tal concentração pasteuriza o jornalismo e limita o direito do cidadão de se informar com pluralidade. E aqui cabe uma observação de ordem técnica: este artigo traz uma séria denúncia e não uma demonstração de ‘avanço ou aperfeiçoamento’, como propõe o capítulo em questão. A não ser que o compreendamos como proposta de descentralização com vistas ao ‘avanço’.


Práticas podem construir novas teorias


Refletindo sobre o consumo de informação de forma estratégica, Marcos Santuário, jornalista especializado em cultura, observa a forma como se trata hoje a questão da especialização no jornalismo, mais notadamente, a do jornalismo cultural. Defende que, além da formação específica e seu conhecimento teórico, os aspirantes ao jornalismo cultural devem ser consumidores destes produtos, de modo que possam entender suas lógicas e origens. Santuário também provoca o debate entre os limites de produção do local, regional e global. Seria o local/regional, hoje, apenas um reprodutor do global? Ou, pelo contrário, é um propulsor deste, visto que ali tudo que se produz é original? Outra indagação: há uma cultura superior à outra? É provável que a resposta imediata do leitor maduro seja dizer que não, pois não há como se comparar culturas. Mas se a abordagem for mais restrita e estiver ligada, por exemplo, ao domínio de determinada tecnologia? Assim, há como se estabelecer uma hierarquia? Enfim, são provocações para provar que, muito mais do que noticiar novos filmes, exposições ou livros, o jornalismo cultural necessita de mentes habilitadas a produzir um discurso mais capacitado para surpreender e motivar o leitor. E aí, sim, com este aperfeiçoamento, ser motivo de avanço.


Ainda neste capítulo, como contribuição para os pesquisadores, Christofoletti disponibiliza uma ‘Brevíssima cronologia da inovação na imprensa brasileira’.


Por fim, os argumentos e conceitos estabelecidos nesta obra confirmam que a crítica da mídia está se construindo como um saber cada vez mais necessário e fundamental para a compreensão de uma atividade ainda mais complexa. Mas o maior mérito de Vitrine e vidraça: Crítica de Mídia e Qualidade no Jornalismo está na constatação de que a cobrança por uma produção midiática de qualidade deve ser acompanhada por uma crítica mais madura e objetiva. Afinal, se as teorias explicam as práticas, algumas práticas também podem construir novas teorias.

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Jornalista e doutorando em Ciências da Comunicação da Universidade do Minho, Portugal