Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A voz premiada de um mestre

Poucas coisas são mais gratificantes que pegar um bom livro, retirar-se para um lugar tranqüilo e ler. Lembro-me de ter recolhido a frase num dos inúmeros romances do inglês Somerset Maugham. E ela me ocorreu ato contínuo ao encerramento da leitura de A voz submersa, de Salim Miguel.


Estou certo de que a inclusão desse romance na série já publicada pela Record, ao mesmo tempo em que é um resgate oportuno de uma parcela magistral da literatura brasileira, significa também o inteiro mérito de um operário das letras, que somente aos 82 anos tem o privilégio de ver seus livros mais emblemáticos saírem com o selo de editora de expressão nacional. O fato é também alvissareiro para leitores jovens, que agora satisfarão o gosto literário com o estilo inconfundível do autor de As desquitadas de Florianópolis.


Salim nasceu numa aldeia libanesa, em 1924, e foi trazido no colo pelos pais que migraram para o Brasil. Passou a adolescência em Biguaçu, mudando-se para Florianópolis a fim de continuar os estudos e trabalhar. Literato em progresso, passou a freqüentar a confraria dos jovens intelectuais da Ilha de Santa Catarina, sendo um dos co-fundadores do Grupo Sul, que antes do final da década de 1940 iniciou a publicação da revista batizada com o mesmo nome, na qual apareceram os primeiros trabalhos assinados por Aníbal Nunes Pires, Guido Wilmar Sassi, Adolfo Boss Júnior, Eglê Malheiros, entre tantos que logo despontariam como vanguardeiros da literatura catarinense.


Trincheira democrática


A voz submersa, para esclarecer o leitor, é um romance originalmente lançado em 1984, situando-se, a bem da verdade, nos primórdios da maturidade criativa de um artista que havia publicado seu primeiro romance (A rede) em 1955. Desde então Salim havia se dedicado à narrativa curta, na qual se tornaria um de nossos mestres, às profissões de livreiro e editor, e também ao jornalismo. Preso no dia seguinte ao golpe de 64, então exercendo a função de redator da Agência Nacional em Florianópolis, depois de solto se transferiu para o Rio por influência do escritor e amigo Adonias Filho, recém-nomeado diretor da referida autarquia federal.


No Rio, um episódio testemunhado por Salim, sem dúvida serviu para avivar as feridas recentes de sua relação pessoal com a mão dura da repressão. Trata-se do assassinato de Edson Luís Souto, em 1968, num choque entre policiais e estudantes que faziam do conhecido restaurante Calabouço, além da referência obrigatória, uma autêntica trincheira da liberdade democrática.


O corpo ensangüentado do jovem foi carregado pela multidão até as escadarias da Câmara Municipal, na Cinelândia, e o jornalista estava entre os acompanhantes.


Referências subjacentes


O tema ficou cristalizado em sua memória por 15 anos até tomar a forma de romance-confissão, às vezes tão cruel como foi a experiência dos que sofreram na carne o impacto dos anos de chumbo. A trama é desenrolada por Dulce, protagonista e narradora da tragédia, como um extenso novelo, mesmo que a verdade última jamais seja pronunciada porquanto a jovem e liberada mulher mesclava no interminável telefonema à mãe, ou na hipótese perfeitamente cabível da desinibida digressão no divã do analista, choramingas à interferência das cunhadas em sua vida conjugal, detalhes picantes da libido de outras e dela mesma e lembranças de fundo psicológico desentranhadas da infância, adolescência e início da juventude em Florianópolis e Biguaçu, donde procedia a família.


Nesse aspecto, são incisivas as alusões autobiográficas à essência recorrente do realismo ficcional que serviu de argamassa à escrita de Salim Miguel.


Desenhada com esmero pelo autor, a conotação psicanalítica da arenga de Dulce é inferida pelas referências subjacentes ao surgimento desse modismo entre a classe média alta a que pertencia Dulce, casada com um bem-sucedido e influente investidor na Bolsa de Valores.


Liberto e recomposto


Na verdade, Salim soube tecer com a paciência de um artesão, embora o romance tenha sido escrito em poucas semanas, um caudaloso fluxo de consciência que rivaliza em intensidade com os mais ilustres introdutores do gênero na modernidade literária. O tom onírico desse imaginário sem travas ou meias palavras, não raro confundido pelo delírio mais eloqüente, chega ao clímax no momento em que a mulher sai à rua e faz sinal para um ônibus que não tem motorista e nem passageiros.


Mais tarde, entrando num cinema do Largo do Machado, acompanha na tela uma seqüência de cores violentas e contrastantes e chega a dormitar. Desperta e vê que o filme pouco evoluiu, ou não evoluiu: o retorno ao fio condutor é torturante e a imagem que não se materializa se reflete no fundo de seus olhos: ‘Cascos retinindo no calçamento. Com o pai ela-menina tenta se refugiar na loja. Os tiros. O corpo do estudante varado de balas’.


Ao final da leitura, a percepção se aclara: o escritor, premiado pelo domínio da técnica, pintou o retrato perfeito de um tempo aziago, ao que parece escoimando da própria consciência um miasma que o atormentou por anos. Liberto e recomposto seguiu sua vereda até ser saudado, com inteira justiça, como um dos mais virtuosos intelectuais do país.

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Jornalista, Curitiba, PR