Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A batalha das idéias

Os textos aqui reunidos correspondem a estudos por mim desenvolvidos sobre efeitos e implicações da midiatização da vida social, incluindo análises de alternativas contra-hegemônicas que se insurgem na contemporaneidade. Trata-se de um esforço para compreender cenários comunicacionais numa era de aceleração tecnológica, globalismos e mercantilização na qual os movimentos do mundo parecem caber nas 33 letras fulminantes de Gabriel García Márquez: ‘um vendaval de velocidades disparadas’.


A comunicação jamais esteve tão fortemente entranhada na batalha das ideias pela direção moral, cultural e política da sociedade. Reconhecendo o caráter estratégico da produção simbólica nas disputas pelo poder, compartilho do entendimento de Jean-Paul Sartre de que a mídia desempenha os papéis de ‘servidores da hegemonia e guardiães da tradição’ [Jean Paul Sartre. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994, p. 23]. Ocupa posição proeminente no âmbito das relações sociais, visto que fixa os contornos ideológicos da ordem hegemônica, elevando o mercado à instância máxima de representação de interesses.


Não raro, o discurso dominante fabricado pelos aparatos midiáticos tenta neutralizar o espaço de circulação de visões dissonantes e contestadoras. Edward Said foi preciso ao ressaltar que, enfraquecendo ou silenciando pontos de resistência, esse discurso objetiva ‘modelar a impiedosa lógica corporativa da obtenção de lucros e o poder político em um estado de coisas normal – `é assim que as coisas são´ –, convertendo, no processo, a resistência racional a essas noções em algo completa e praticamente irrealista, irracional, utópico etc.’ [Edward Said, ‘O papel público de escritores e intelectuais’. In: Moraes, Dênis de (org.). Combates e utopias: os intelectuais num mundo em crise. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 41].


Ao mesmo tempo em que procuro desvelar aparências espetacularizadas, seduções consumistas e feitiçarias tecnológicas, aprecio iniciativas que intentam reforçar a variedade informativa e cultural. Significa trazer à luz experiências que se oponham aos crivos e controles da mídia, introduzindo projetos criativos capazes de descentralizar, progressivamente, os processos comunicacionais e contribuir para o alargamento das margens de diversidade.


Em qualquer das vertentes, e também na confluência entre elas, norteio-me pela lúcida argumentação de Antonio Gramsci sobre o quadro de possibilidades humanizadoras para a existência. Segundo ele, perseguir o consenso em torno de concepções emancipadoras pressupõe um duplo desafio no confronto com a fria mentalidade capitalista. Primeiro, devemos adequar essas concepções à ‘análise concreta da realidade concreta’ (expressão salientada por um líder revolucionário muito respeitado por Gramsci, o velho Vladimir I. Lênin), com atenção redobrada às nuanças e contradições. Depois, elevar as visões conseqüentes ‘até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído’, na persistente defesa de ideias libertárias. Gramsci realça a importância de recusarmos proposições ocasionais e desarticuladoras, que querem nos incluir em ‘multiplicidades de homens-massa’, tentando afastar os ‘homens-coletivos’ da consciência fundamental contra o conformismo, a apatia e a alienação [Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere (vol. 1). Organização e tradução de Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 94-95].


As indicações do filósofo marxista italiano tornam-se especialmente úteis em um momento histórico no qual tramas sinuosas se desenrolam à sombra de telas, monitores, celulares e redes digitais, influindo cada vez mais na formação das mentalidades. O pensamento crítico e dialético impõe-se como elemento-chave para afugentar o culto celebratório do novo e o alarido por abundâncias mercadológicas, bem como para qualificar intervenções autenticamente transformadoras da cena pública.


Influência estatal


O livro está dividido em duas partes. Na primeira, o leitor encontrará um ensaio sobre a construção da hegemonia no imaginário social, através dos jogos de consenso e dissenso que caracterizam e condicionam a produção de sentido nos meios de comunicação. Valorizo a contribuição de Gramsci a um entendimento ampliado do conceito de hegemonia. Segundo ele, a hegemonia não se reduz à coerção militar e à superioridade econômica, pois decorre também de batalhas permanentes pela conquista do consenso e da liderança cultural e político-ideológica de uma classe ou bloco de classes sobre as outras. Envolve a capacidade de um determinado bloco de articular um conjunto de fatores que pode levá-lo a dirigir moral e culturalmente, e de modo sustentado, a sociedade como um todo. Além de congregar as bases materiais econômicas, a hegemonia tem a ver com entrechoques de percepções e valores, no contexto concreto da luta de classes. Não é, portanto, uma construção monolítica, e sim o resultado das medições de forças entre blocos e classes, traduzindo formas variáveis de conservação ou reversão do domínio material e imaterial que atravessam o campo midiático, sendo por ele influenciadas.


O ensaio seguinte trata de reverberações e impactos da cultura tecnológica em que estamos mergulhados. Tudo à volta se recompõe e se desloca incessantemente. Predominam os mantras da velocidade, da inovação e da mercantilização, cada vez mais ajustados à urgência por vantagens e dividendos competitivos. Como pretendo demonstrar, a multiplicação de produtos e serviços multimídias, disponibilizados por tecnologias de última geração, põe-se a serviço de lógicas corporativas que convertem variedades em grandes quantidades lucrativas. Daí a importância de pressões sociais sistemáticas em favor de políticas públicas que protejam e promovam o interesse coletivo contra ambições monopólicas privadas.


Na segunda parte, consta o estudo sobre novas políticas de comunicação e difusão cultural de governos progressistas da América Latina , que realizei com o apoio da Fundação Ford. [Adotamos o seguinte sentido para a palavra ‘progressista’: uma linha de pensamento que se comprometa explicitamente com tudo o quanto se possa mudar, transformar e humanizar na sociedade. Sentido bem próximo ao proposto por Raymond Williams: ‘Ainda se pode usá-lo simplesmente como termo oposto a conservador; isto é, para referir-se a alguém que aprova ou defende a mudança’. Williams observa que ‘progressista’ tem sido usado tanto para referir-se à esquerda quanto para distinguir partidários de uma mudança ‘moderada e ordenada’. Ver Raymond Williams, Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 328-329.] Dispus-me a investigar e explicitar mudanças em curso desde a ascensão recente de governantes eleitos com a bandeira da justiça social. A reação que se delineia em alguns países visa superar a histórica letargia do Estado diante da avassaladora concentração dos setores de informação e entretenimento nas mãos de um reduzido número de megagrupos nacionais e transnacionais, obcecados em rentabilizar a produção simbólica. O que se almeja agora, nos raios de influência estatal, é um conjunto de programas e ações que diversifique as fontes de emissão, altere leis e marcos regulatórios, estimule meios alternativos e comunitários, apoie a geração e a divulgação de conteúdos regionais e locais e redirecione fomentos e patrocínios à produção audiovisual independente.


Encruzilhadas e tensões


É relevante acentuar que em vários países tais providências decorrem de reivindicações de organismos e movimentos da sociedade civil, a partir do convencimento de que a informação veraz e o pluralismo são pressupostos indispensáveis à democratização da comunicação. Embora não seja este o foco do trabalho que se vai ler, cabe assinalar ainda que outras iniciativas no âmbito social propriamente dito procuram fazer germinar uma comunicação autônoma e desvinculada da mídia comercial e suas conveniências econômicas, políticas e ideológicas.


Ao atravessar planícies, vales, florestas, rios, montanhas, ruas, avenidas, ladeiras, orlas, parques, becos, favelas e terras batidas, pude notar circunstâncias que incidem na formulação e na execução de políticas públicas, em particular quando elas colocam em xeque privilégios econômicos e conveniências de elites políticas, empresariais e midiáticas. Certos governos, notadamente os de esquerda (Venezuela, Bolívia e Equador), têm que travar duras pelejas para que suas propostas renovadoras sobrevivam às violentas campanhas da mídia e dos grupos conservadores, cujo alvo é debilitá-los perante a opinião pública. Indiscutível evidência de que as investidas continuarão arriscadas e prolongadas. Cabe frisar que, mesmo acossados nas guerras audiovisuais e impressas que lhes são movidas, os presidentes Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa têm mantido a determinação de modificar os sistemas de comunicação.


Não foram poucos os momentos em que me lembrei do clássico As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano [Eduardo Galeano, As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977], que li pela primeira vez na longínqua década de 1970, com o coração alvoroçado e partido. Ainda sem as rugas do exílio e no auge da síntese de paixão, sofrimento e destemor que caracteriza os inconformados, Galeano alude aos contrastes de uma região com identidades e tradições culturais tão ricas, porém assolada por injustiças clamorosas. Quarenta anos depois, com o escritor uruguaio vivendo na Montevidéu livre das infames ditaduras militares, Latinoamérica consegue ser única na capacidade de enxergar horizontes que suplantam os picos nevados da Cordilheira dos Andes, em meio ao alijamento da maior parte de seus habitantes dos benefícios do progresso. Permanece resistindo, como as algaravias dos pássaros nas ilhas selvagens do Pacífico, à desertificação do real provocada por três tiranias siamesas – do dinheiro, da informação e da alienação –, brilhantemente denunciadas por Milton Santos [Milton Santos, Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 38-44].


Por isso, não me parece casual que os primeiros e promissores sinais do pós-neoliberalismo venham de nossos irmãos da pátria grande – pátria multicultural herdada de incas e maias e redescoberta pelo jovem Ernesto Che Guevara na febril travessia de motocicleta por artérias, precipícios e sonhos. Os povos marginalizados daqui começam a perceber que as urnas e as mobilizações podem apressar a chegada de utopias vitais. Daí compreendermos por que, na imensa cidade-dormitório de El Alto, na periferia de La Paz, a quatro mil metros de altitude, 90% das centenas de milhares de eleitores (a maioria deles pobres e descendentes de povos indígenas) votaram a favor de Evo Morales, no referendo de agosto de 2008. Foi o seu grito de endosso às reorientações socioeconômicas conduzidas pelo índio aymara que preside a Bolívia. Da mesma maneira, na rica província oriental de Santa Cruz, onde apenas 15 famílias aristocráticas dispõem de meio milhão de hectares de terras férteis, numa região habitada por um milhão de habitantes, não me foi difícil imaginar o que inspirava a carga de rancor e ódio que distorcia a fisionomia de um dirigente empresarial durante evento na Câmara de Indústria e Comércio, transmitido pela TV local: ‘O inimigo é Evo’.


Por fim, em pesquisa realizada sob os auspícios do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), avalio a emergência da comunicação alternativa em rede como manifestação contra-hegemônica, numa direção anticapitalista e antineoliberal. Discuto avanços, dilemas e dificuldades de práticas ativistas que se apropriam de tecnologias digitais para expandir o alcance de suas interferências críticas. Focalizo as opções por trabalhos compartilhados, práticas como copyleft e publicações abertas, dinâmicas participativas e descentralizações coordenadas que se alastram pela Internet, em associação com ideários e campanhas pela ampliação dos direitos da cidadania no planeta. Essa teia de afinidades eletivas, que se conjugam em toda parte e a qualquer tempo, anseia construir uma cultura de reciprocidades cooperativas, baseada no que Naomi Klein bem definiu como ‘um intenso desejo de comunidade e conexão’ [Naomi Klein, Cercas e janelas: na linha de frente do debate sobre globalização. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 49].


Todos os ares


Gostaria de terminar recordando dois belos livros que falam da esperança. Em Otros septiembres [Ariel Dorfman, Otros septiembres: provocaciones desde un Norte perplejo. Buenos Aires: Seix Barral, 2007], Ariel Dorfman sublinha que cada um de nós tem uma maneira secreta de buscar amparo na dor e, sobretudo, na esperança. A expectativa de superação das adversidades deixa de ser clandestina ou anônima quando nos encorajamos a enfrentar as esterilidades de uma era de desejos esgarçados pela síndrome da comercialização da vida.


Já John Berger assinala, em Con la esperanza entre los dientes [John Berger, Con la esperanza entre los dientes. México: Itaca, 2006], que, se vivemos tempos obscuros, não podemos nos esquecer de que outras épocas também foram obscuras, e nem assim se extinguiram todas as luzes. Hoje, diz Berger, a esperança está conectada a uma promessa que remete ao futuro: ‘Uma visão alternativa da esperança é aquela que implica almejar com toda nossa força o infinito, agora. Isto significa devir e não só ser passivamente. Este devir – transformar-nos – implica aspirar a algo que aparentemente não é imediato’.


Se o devir pode ser prenúncio de claridades, devemos forçar passagem por entre superfícies transitórias e imagens fortuitas, tentando restabelecer o equilíbrio do cosmos. É como se resolvêssemos escalar a parede escorregadia de um calabouço depois de vislumbrarmos um pequeno vitral pelo qual entram insistentes raios de luz. As setas iluminadas levam à necessidade crucial de desfazermos os consentimentos ao mundo da escassez e da exclusão, substituindo-os pelos consentimentos ao mundo da partilha e da igualdade. Isso dependerá tanto de compromissos com a democratização da sociedade como um todo e dos meios de comunicação em particular quanto da capacidade dos povos para afrontar os obstáculos às suas aspirações genuínas.


Não faz mal que possa demorar mais tempo do que gostaríamos, em função de encruzilhadas e tensões. O poeta Carlos Drummond de Andrade aconselha-nos a ter paciência em constante ebulição, porque, um dia, a luminosidade proporcionada pelo pequeno vitral se expandirá a todos os ares: ‘A injustiça não se resolve/ À sombra do mundo errado./ Murmuraste um protesto tímido./ Mas virão outros’ [Carlos Drummond de Andrade, ‘Consolo na praia’, em A rosa do povo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945].


***


[do release da editora]


A batalha da mídia reúne ensaios que discutem o papel da comunicação na luta pela hegemonia política e cultural na sociedade contemporânea. Além de analisar a influência da mídia na propagação dos valores do mercado e do consumismo, o autor analisa experiências que se propõem a democratizar os processos comunicacionais, seja através de políticas públicas inovadoras ou de formas colaborativas e participativas de difusão na Internet.


O lançamento do livro ocorrerá no dia 18 de junho, quinta-feira, a partir das 19h, na Livraria do Unibanco Arteplex, Praia de Botafogo, 316, Botafogo, Rio de Janeiro. Com 272 páginas, A batalha da mídia é composto por quatro ensaios: ‘Imaginário social, hegemonia cultural e comunicação’; ‘Cultura tecnológica, inovação e mercantilização’; ‘Governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina’; ‘Ativismo em rede: comunicação virtual e contra-hegemonia’.


No principal ensaio, Dênis de Moraes revela como a ação do Estado, em vários países da América Latina, tem sido reorientada para tentar reverter uma das piores heranças do neoliberal ismo: a concentração dos setores de informação e entretenimento nas mãos de um reduzido número de corporações nacionais e transnacionais. Conforme aponta o autor, as novas políticas de comunicação de governos progressistas da região buscam viabilizar legislações antimonopólicas, apoiar meios alternativos e comunitários e estimular a produção audiovisual independente. Este amplo painel também avalia resistências e desafios postos aos governos que se dispõem a promover a diversidade e o pluralismo. Entre os países analisados estão Brasil, Venezuela, Bolívia, Equador, Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai e Nicarágua.


Em texto incluído na quarta capa de A batalha da mídia, Carlos Nelson Coutinho assinala: ‘Dênis de Moraes é um dos mais lúcidos analistas brasileiros dos fenômenos da comunicação de massa. Com base nos conceitos de Antonio Gramsci, o brilhante pensador marxista italiano, Dênis nos mostra que devemos analisar a comunicação como um campo de luta entre diferentes propostas hegemônicas, relacionando-as com os combates que têm origem na totalidade social. Neste seu novo livro, além de instigantes reflexões sobre os problemas da mídia no mundo contemporâneo, Dênis nos fala sobre as batalhas hegemônicas que, na arena da comunicação, têm tido lugar em nossa América Latina. Um tema que diz respeito a todos os que se interessam não só pelos problemas da mídia, mas pelas questões centrais de nosso tempo.’


Sobre o autor


Dênis de Moraes nasceu no Rio de Janeiro em 1954. É doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), sediado em Buenos Aires, Argentina. É professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Autor e organizador de diversos livros, entre os quais Cultura mediática y poder mundial (Norma, 2006), Sociedade midiatizada (Mauad, 2006), Combates e utopias: os intelectuais num mundo em crise (Record, 2004), Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder (Record, 2003), O concreto e o virtual: mídia, cultura e tecnologia (DP&A, 2001) e O planeta mídia: mídia, mundialização cultural e poder (Letra Livre, 1998).