Talvez não exista melhor síntese para uma sociedade emergente do que a maneira como certos ícones da cultura de entretenimento trafegam pelo campo das artes, assentando-se no gosto e no desejo das classes médias. No Brasil, esse papel já foi cumprido pelos autores de uma música popular criativa, densa e ao mesmo tempo divertida, que representava em larga escala as muitas faces da coletividade.
Mas isso foi há pelo menos quatro décadas. Hoje a música brasileira está dominada pela mediocridade, domesticada aos interesses de duas ou três produtoras, e oferece pouco mais do que versões pioradas do antigo repente nordestino, que, transposto para o ambiente das grandes cidades do Sudeste, agora se chama “rap”. Seus autores são conhecidos como “MCs” e supostamente expressam a saga dos excluídos, com seus correntões de ouro e seus relógios de grife. Suas obras são “improvisos” que podem levar meses para serem compostos, e só ficam prontas quando puderem exibir pelo menos um erro de gramática em cada frase.
No campo das artes plásticas, o Brasil nunca repetiu o fenômeno dos anos 1920 a 1940, e um raro sopro de ar fresco vem da técnica dos murais, com a geração que migrou dos grafites de protesto, que marcaram a deterioração urbana nos anos 1980, para as galerias e os grandes espaços de exibição.
No mais, tudo agora depende do aval do sistema que mensura o potencial de lucros que cada autor pode proporcionar. Convencionou-se que só é arte a arte mediada. Artista que não está na mídia não está no mundo. Portanto, pouco importa a qualidade de sua criação: o que interessa é o talento para se inserir no sistema de divulgação. Daí a estranha coincidência de sobrenomes que fazem a conexão entre o mundo da cultura e outros campos, como o das finanças e da comunicação.
Importa menos a obra do artista do que sua ascendência ou seus vínculos sociais, que podem ser cultivados num jantar ou na cama. É mais valioso um bom assessor de comunicação do que o melhor dos curadores. Aliás, a palavra “curadoria” tem sido usada para dar alguma nobreza aos distribuidores de “jabaculês” que garantem uma boa presença na mídia.
“Tem bibibi no bobobó”
Tudo isso vem a propósito do balanço que os jornais de segunda-feira (4/8) oferecem da Festa Literária Internacional de Paraty, encerrada no domingo. Por conta da homenagem ao humorista Millôr Fernandes, que usou letras, números e traços para fazer literatura, a velha cidade foi invadida por uma gente sem graça que se apropria da literatura para exibir suas caras e bocas.
Herdeiros da dramaturgia cômica nascida no teatro de revista e levada para as produções da TV Globo por Carlos Manga, os comediantes da mídia trataram de avacalhar aquela que era uma festa literária.
A mesma lógica que cria duplas “sertanejas” que nunca pisaram a terra e compositores analfabetos da grande obra musical contemporânea transpôs para o campo da literatura os fazedores de frases sexistas e trocadilhos que repetem os velhos roteiros do tipo “tem bibibi no bobobó”.
Em Paraty, palco onde já desfilaram autores da melhor literatura, o crítico e escritor Silviano Santiago passa despercebido na multidão, que interrompe a passagem para fotografar o humorista da TV ou a atriz que virou escritora.
Abduzida pelo negócio do entretenimento, a literatura se torna refém do riso fácil e da trivialidade, ao ponto de uma das mesas mais comentadas pela imprensa ter sido exatamente… o debate sobre a imprensa.
A Folha de S. Paulo observa que a festa literária deste ano teve “menos ficção e mais realidade”. Se fosse possível revisar a frase, mais correto seria dizer que, em vez da ficção, apresentou-se ao público a versão da realidade criada pela imprensa.
Assim, na falta das boas letras, oferece-se a contribuição subliterária do psicanalista de atacado, que distribui conselhos a granel pela mídia, a coleção de frases machistas do jornalista que se apresenta como “especialista em mulheres”, o olhar sagaz da atriz que descobre em algum lugar de seu organismo a veia literária capaz de lhe dar o conveniente verniz de cultura.
A feira livre das celebridades é o velório da literatura.