Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A obra de ficção e a ‘Obra de Deus’

Recentemente, escrevi um artigo neste Observatório (‘Opus Dei processa escritora‘) sobre o processo judicial que o Opus Dei, na França, tinha aberto contra a autora do livro Camino 999, Catherine Fradier, e o editor, Jean-Jacques Reboux. Alegava a prelazia que este romance policial era um ataque à sua reputação.

O livro foi publicado em março deste ano. Em maio, a Obra entrou com o processo. Alvoroço nos meios literários: a instituição ‘Golias’ contra a editora ‘Davi’. Após alguns meses de expectativa, uma audiência em 7 de novembro. Na quarta-feira (21/11), a justiça francesa pronunciou-se, rejeitando a demanda do Opus Dei.

Será Camino 999 obra difamatória da Obra? O tribunal não quis entrar no mérito dessa discussão. Considera-se fórum inadequado. Rejeitou a demanda, explicando que o advogado do Opus Dei – Alexandre Varaut, conhecido no país por suas posições políticas conservadoras – não especificara as passagens difamatórias do livro. Para Varaut, a obra ficcional em questão ‘deve ser considerada inteiramente difamatória’, desde o título (que alude ao principal livro de Josemaría Escrivá, fundador do Opus Dei, Camino, com 999 pontos de reflexão) à quarta capa.

Uma escritora ‘desequilibrada’

No dia da audiência, o advogado da editora, Emmanuel Pierrat – especialista em direitos autorais, ele mesmo escritor e notório defensor do casamento homossexual – chamou a atenção, ironicamente, para o fato de que o Opus Dei, há pouquíssimo tempo, não processou o poderoso grupo Lagardère, que lançara O Código Da Vinci na França por uma de suas casas editoriais, mas, estranhamente, decidiu fazê-lo agora, contra a pequena Après la Lune, e por causa de um romance que jamais se tornará best-seller… No caso do livro de Dan Brown, havia uma passagem bem incômoda, no capítulo 100, em que ficam evidentes as três atitudes do Opus Dei que, hoje, afetam a imagem da Igreja católica e preocupam o Vaticano: o proselitismo agressivo, a mortificação corporal (cilício e disciplinas compulsórias) e o modo como as mulheres são tratadas dentro da Obra.

De fato, a postura do Opus Dei naquela altura foi mais… humilde. Ou mais diplomática. Com a editora norte-americana, que publicou o livro de Dan Brown, a Doubleday (cuja proprietária é a prestigiosíssima Random House), parece ter celebrado um acordo. Com este mesmo selo, publicou-se logo depois do Código um livro favorável à instituição, Opus Dei: os mitos e as verdades sobre a mais misteriosa organização da Igreja Católica, de John Allen Jr., que se apresenta como autor objetivo, capaz de distinguir o falso e o verdadeiro em tudo o que se diz sobre a Obra.

Há ainda uma terceira postura do Opus Dei, que se verifica no caso de livros escritos por ex-membros. Agora mesmo está em pauta na França um livro-testemunho com título bem mais agressivo que o de Fradier – Dans l’enfer de l’Opus Dei (Editora Albin Michel, 2007). A autora, Véronique Duborgel, conta com detalhes o inferno que foi pertencer à Obra, o modo como a instituição invadia seu casamento, oprimia sua consciência, controlava seus passos. E embora não se trate de romance policial… mas de uma denúncia explícita sem necessidade de licença poética, a Obra não vai processar Véronique. Afirma que ‘não ataca pessoas que sofrem’. O que, no jargão da Obra, significa dizer que considera Véronique uma pessoa desequilibrada…

‘Estamos de olho’

E como o Opus Dei reagiu oficialmente à derrota, no caso de Camino 999? De uma forma que lhe é bem característica: com afetado estoicismo e dissimulada serenidade.

No site francês, a Obra, no mesmo dia 21, divulgou comunicado em que lamenta o fato de sua demanda ter sido rejeitada por meros motivos formais. Reitera que seu objetivo é proteger a reputação da prelazia, cujos membros são apresentados no livro de Fradier como criminosos. Reafirma que a Obra preza a liberdade de criação e expressão e nem por um momento tenciona prejudicar a editora. Insiste que está aberta para o diálogo, embora continue empenhada em evitar a proliferação de obras que ponham em xeque a honra da instituição.

No dia seguinte, um membro francês do Opus Dei postou em seu blog as seguintes considerações, em que transparece a atitude institucional:

‘Havia elementos suficientes para levar os responsáveis do Opus Dei na França a abrirem um processo contra este livro, Camino 999, pensando que tal processo faria com que refletissem melhor todos aqueles que ainda queiram escrever romances bizarros, onde membros da Obra são financistas perigosos, cheios de segredos e capazes dos golpes mais baixos.

‘Mas eis o resultado: a demanda foi bloqueada. Vício formal. Não deram atenção à questão de fundo. E, portanto, o Opus Dei não terá a reparação pelo mal que lhe fizeram.

‘A única coisa que se pode esperar agora é que tudo isso faça os futuros romancistas pensarem melhor. Não se pode, em nome da liberdade de expressão, dizer o que vem à cabeça. Se eu começar a insultar a mãe de Catherine Fradier, autora desse romance, certamente ela não gostará, e com toda razão. E eu poderia sair pela tangente, invocando a liberdade de expressão. Contudo, no final das contas, talvez tenhamos vencido esse jogo. O futuro dirá.’

Pensando no que o futuro dirá… possivelmente o Opus Dei não estava tão preocupado assim com este veredicto em particular. Quando o seu advogado alegou, na audiência, que o romance de Fradier era exemplo de ‘ficção jornalística’, mais do que um argumento contra esse livro em concreto, enviava um recado para romancistas e jornalistas do mundo inteiro.

Em referência à ficção ou à reportagem (tanto faz!), a advertência da Obra parece clara: ‘Senhoras e senhores que escrevem por aí afora, contem até dez antes de falarem mal do Opus Dei. Pesem suas palavras, reflitam bem se vale a pena comprar essa briga. Estamos de olho em vocês.’

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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br