Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Acabou a era do rodapé cultural

Na semana seguinte aos magníficos festejos do seu 80º aniversário, depois dos fascinantes passeios ao passado, num inusitado acesso de mau humor O Globo liquidou com apenas uma traulitada os dois últimos rodapés literários da grande imprensa nacional.


No último sábado (6/8), o seu caderno semanal ‘Prosa & Verso’ saiu manco – perdeu parte da sua prosa, parte dos seus versos e ainda por cima acabou uma tradição que o jornalismo brasileiro herdou dos confrades europeus.


Sem qualquer explicação aos leitores, desapareceram os artigos semanais de Affonso Romano de Sant’Anna e Wilson Martins. Leitura obrigatória, academia viva e aberta. A desculpa oferecida aos colaboradores afastados foi patética: corte nos gastos. A maior empresa de comunicação do país, uma das maiores do mundo, não tem os caraminguás para manter uma instituição que dá à combalida cultura carioca o suporte erudito para o seu renascimento.


De diferentes gerações (um é poeta e professor mineiro; o outro ensaísta e professor curitibano) ARS e WM são dois expoentes da cultura brasileira que O Globo oferecia ao seu público no mesmo dia e mesmo caderno.


Sustento e sustentação


O rodapé literário é uma herança do feuilleton (literalmente, folhetim) que na imprensa oitocentista européia (francesa e germânica) funcionava como um segundo caderno correndo na parte inferior do primeiro. Daí o nome em português, rodapé. No feuilleton publicavam-se crônicas intimistas, poesias, pequenos ensaios e, evidentemente, resenhas.


No Brasil, retivemos do feuilleton as resenhas literárias que sustentaram os suplementos dominicais dos grandes jornais até que estes foram transformados em cadernos de show-bizz e sujeitados pelo seu marketing.


A decisão do Globo confronta uma estratégia concebida por Roberto Marinho ainda nos anos 1960 e destinada a transformar o trepidante vespertino num quality paper. Este Observador, em 1966, ouviu do próprio Roberto Marinho a promessa de transformar o jornal numa espécie de Jornal do Brasil. Conseguiu. Graças ao trabalho contínuo e coerente iniciado por Evandro Carlos de Andrade, completado por Merval Pereira, Ali Kamel e Rodolfo Fernandes.


O jornal está praticamente sozinho no mercado carioca – o Dia na faixa popular e o Jornal do Brasil no segmento mais qualificado não ameaçam O Globo. O outro jornal da praça, o Extra, é co-irmão. A cobertura política do Globo é de alta categoria, a econômica não fica atrás, seu trabalho investigativo é impar, modelar a sua cobertura de cidade, esplêndida a cobertura esportiva, satisfatória a cobertura internacional. Sua galeria de colunistas e opinionistas faz inveja aos concorrentes.


Ponto fraco: justamente a cobertura cultural. O ‘Segundo Caderno’, diário, parece comandado por estranhas idiossincrasias e o sabático ‘Prosa e Verso’, sem espaço, sustentava-se nos rodapés das páginas 2 e 4 – dose dupla de privilégio aos amantes das belas letras.


Percebe-se na edição de 6/8 um esforço para manter um padrão elevado nas reportagens culturais. Mas aquelas colunas eram colunas olímpicas, sustento e sustentação. Resenhas de 20 linhas não criam um público leitor, não conseguem funcionar como degustação.


Os rodapés literários mantêm a cultura de uma cidade e de um país.




ENTREVISTAS / AFFONSO ROMANO
DE SANT’ANNA & WILSON MARTINS
Imagens no jornal, literatura na TV


Leticia Nunes


No sábado passado (6/8), as colunas do poeta e escritor Affonso Romano de Sant’Anna e do crítico literário Wilson Martins já não puderam mais ser encontradas no caderno ‘Prosa & Verso’, do jornal O Globo. Os dois colaboradores foram cortados do suplemento literário. O motivo: contenção de despesas.


Martins escrevia para O Globo há 10 anos; Romano de Sant’Anna, há 17. Que a crise econômica assola as empresas jornalísticas não é novidade. Mas a demissão de dois nomes de peso da literatura brasileira por um dos maiores jornais do país, assusta. Não é um movimento isolado: o espaço destinado à literatura nos jornais é cada vez menor e as críticas verdadeiras são, muitas vezes, substituídas pelo marketing das grandes editoras.


Martins, que hoje colabora com a Gazeta do Povo, no Paraná, e Romano de Sant’Anna, que escreve aos domingos nos jornais Estado de Minas e Correio Braziliense, não ficarão longe da imprensa carioca por muito tempo. Os dois foram convidados pelo Jornal do Brasil, onde devem estrear dentro de um mês, se não houver imprevistos.


Antes de embarcar para a Coréia, onde participaria de um Festival de Poesia com poetas de todo o mundo, Affonso Romano de Sant’Anna falou ao Observatório sobre a relação atual entre a imprensa e a literatura. De Curitiba, o experiente Wilson Martins lembrou a história da crítica literária nos jornais e apontou para uma curiosa tendência: o crescimento do espaço destinado à imagem na imprensa escrita coincide com o aumento do interesse da programação televisiva pela literatura.


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Affonso Romano de Sant’Anna


Como o avalia o tratamento que a imprensa brasileira hoje dispensa à crítica literária e à literatura? Os jornais e revistas de informação ajudam a formar futuros amantes de livros?


A.R.S’A. – Comparando com o que eram os suplementos e ‘segundos cadernos’ em torno dos anos 60 e 70, houve uma dispersão, uma invasão pop, uma tendência de agradar pela imagem, como se esses cadernos fossem revistas. A reportagem e às vezes a entrevista substituíram a crítica. Antes, havia uma dezenas de críticos no Correio da Manhã, Jornal do Brasil, O Jornal, Diário de Noticias, O Estado de S.Paulo, e um livro lançado era comentado pelo menos por uma meia dúzia de críticos. Assim o autor podia tirar uma média das opiniões. Havia eco, retorno. Hoje, seja pelo aumento do número de títulos lançados, seja pela eliminação dos críticos ou porque certos resenhadores só escrevem sobre seus compadres, muitos livros importantes passam despercebidos. Por outro lado, as revistas semanais, tentando agradar o público médio e meio indefinido, abrem espaço mais para best sellers que para livros de literatura propriamente dita. Ou seja, jornais e revistas estão mais interessados na reprodução do que já se tornou noticia do que em produzir um pensamento crítico sobre a produção.


Mas alguma coisa está mudando. O inovador Rascunho, de Curitiba, é o mais amplo e combativo jornal literário [do país]. O Jornal do Brasil acaba de lançar uma página diária sobre livros e literatura. O Estado de S.Paulo deu uma melhorada gráfica e de conteúdo. A revista da Ediouro – Entrelivros – é bem interessante [Entrelivros é publicada pela Duetto Editorial, Ediouro e Editora Segmento].


Quem perde com a diminuição do espaço dedicado aos livros na imprensa?


A.R.S’A. – Na imprensa há aquilo que chamo de ‘quarto mistério de Fátima’. Explico-me perguntando: por que os suplementos não conseguem se manter com anúncios das editoras? Por que só uma ou outra editora raramente anuncia? Se isso fosse encarado empresarialmente como fazem com os cadernos de informática, automóvel e suplementos femininos, haveria condições de pagar direito aos colaboradores e manter um corpo estável de críticos. Um suplemento não pode ser uma obra de caridade literária, tem que ser um projeto cultural-empresarial. Mas, para que isto aconteça, o proprietário do jornal ou da revista primeiro tem que acreditar na cultura. E é aí que a porca torce o rabo.


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Wilson Martins


Como se consolidou historicamente o chamado ‘rodapé literário’ nos jornais brasileiros? Quais são as maiores referências entre os signatários desses espaços?


W.M. – O rodapé de crítica foi adotado pelos grandes jornais brasileiros por influência francesa, prolongando-se, na prática, até meados do século 20. Tratava-se de paginar em forma ao mesmo tempo cômoda e destacada os artigos de crítica, longos por natureza. No Brasil, José Veríssimo foi o crítico oitocentista exponencial desse formato, cabendo o mesmo papel a Alceu Amoroso Lima e Álvaro Lins nas décadas de 1920 e 1940, respectivamente. Também nos anos de 1940, Antônio Candido praticou a ‘crítica de rodapé’ num jornal paulista, aliás efemeramente. N’O Estado de S. Paulo, jornal de sólidas tradições culturais, ocupei o mesmo espaço por 20 anos, a partir de 1954.


Como o senhor avalia a cobertura que nossa imprensa faz do movimento literário?


W.M. – É certo que a imprensa escrita reduziu enormemente o espaço reservado às letras, em contraste com a imprensa falada que, ao contrário, está produzindo programas literários cada vez mais numerosos e variados. Os jornais parecem ter optado pela prevalência da imagem sobre o texto, exatamente o oposto do que a crítica exige por sua própria natureza. É, aliás, um fenômeno a estudar mais de perto: as proporções inversas de espaço que a imprensa falada e a escrita concedem à literatura.


Pretende retornar às páginas dos jornais? Quais seus planos?


W.M. – Fui convidado pelo Jornal do Brasil para assumir as funções de crítico titular. Retomo com isso um trabalho que, aliás, já exerci no mesmo jornal entre 1978 e 1995. Este material hoje está recolhido nos 15 volumes dos Pontos de Vista, publicados em São Paulo pela editora T. A. Queiroz (1991-2004). Quanto aos planos, estão em andamento, pois a editora Topbooks programou uma nova série que, sob o título de O ano literário, reunirá material posterior à 2004.