As autoridades linguísticas de Madri fecham o ano com mais uma iniciativa de enorme peso na difusão e preservação do idioma: a Real Academia Española (RAE) colocou em circulação na quinta-feira (10/11) o Diccionario Panhispánico de Dudas, considerado, desde sua concepcão inicial, há seis anos, como a referência maior para o uso do idioma falado e escrito hoje por 450 milhões de pessoas no mundo.
Trata-se de um louvável e formidável esforço conjunto dos estudiosos da língua espanhola na busca de um sonhado consenso no falar e escrever, sem desperdiçar as diferenças que enriquecem a língua.
O objetivo, ambicioso e abrangente, se explica pela estreita colaboração com as 22 academias do idioma (19 latino-americanas, a espanhola, a americana e a filipina), dando como resultado um sólido volume de 880 páginas, com 7 mil e 250 verbetes, numa tiragem inicial de 150 mil exemplares.
Como costuma fazer em seus lançamentos, a RAE apresentou o mais recente produto da casa em grande estilo, com muito barulho na imprensa, com direito a chamada de primeira página no prestigioso jornal El País e página inteira da seção de cultura, com ênfase especial, num tom de orgulho histórico, no ‘imparável crescimento da língua espanhola ao redor do mundo’.
Dúvidas comuns
Nacionalismos à parte, o diretor da RAE, Victor García de la Concha, reconhece que 880 páginas não poderiam pretender resolver todas as dúvidas de uma língua ‘tremendamente cambiante em sua variedade, mas o fundamental, o básico do nosso trabalho, é preservar a unidade na diversidade’.
Daí a importância da colaboração dos países latino-americanos, os Estados Unidos e as Filipinas, cada um deles com seu uso próprio e peculiar do espanhol na vida cotidiana. O ponto de partida é o chamado espanhol universal, respeitadas porém as características regionais quando diferem da norma geral.
‘Qualquer tentativa de uma exemplaridade pan-hispana iria em detrimento de nossas diversidades’, lembrou o escritor mexicano Gonzalo Celorio, secretário da RAE. Completa García de la Concha: ‘O que fazemos é ficar atentos ao que ouvimos nas ruas, trabalhar esse material, e depois devolvê-lo aos habitantes em forma de norma’.
De fato, ele esclarece também, embora a obra tenha uma função normativa, não está fechada a uma única e inapelável solução. Sem a intenção de uniformizar de forma total o manejo da língua, resolve as dúvidas mais comuns nas áreas de ortografia, morforlogia e sintaxe, nesses três aspectos cuidando da acentuação, dicção, o uso das maiúsculas, a pronúncia, a formação do plural e do feminino, e o vocabulário, incluindo neologismos e estrangeirismos.
Desculpe o mau jeito
Na verdade, se por um lado essa diversidade é fonte de orgulhos regionais, por outro atrapalha bastante o uso do idioma nos diferentes países latino-americanos, provocando muitas vezes surpresas e situações que vão do cômico ao mais constrangedor.
Na Argentina, por exemplo, o verbo coger significa fornicar; no México também, mas o uso mais corriqueiro é pegar, apanhar, recolher alguma coisa. Cajeta, na Argentina, é gíria para vagina. Dá para imaginar a surpresa dos argentinos que chegam ao México e, na hora da sobremesa, ouvem do garçom a sugestão do dia, muy sabrosa, el dulce de cajeta, o nosso prosaico e inocente doce-de-leite.
Como resolver essas delicadas contingências do idioma no continente? Para outro acadêmico, o gramático Gregorio Salvador, vice-diretor da RAE, em entrevista ao El País, é uma questão de bom senso e bom ouvido:
‘Ora, os argentinos sabem que os mexicanos não dão essa conotacão sexual ao verbo coger, pelo menos não com tanta ênfase. A mesma coisa acontece no Chile. Não seria de bom-tom chegar lá e elogiar os picos da cordilheira dos Andes, pois pico significa aquilo mesmo que o senhor está imaginando [o órgão sexual masculino]’.
O idioma porém, diz o gramático espanhol, mesmo com toda esses mal-entendidos mantém uma respeitável coerência, e isso se deve, nos dias de hoje, segundo ele, aos culebrones – ou, para desfazer desde logo qualquer conotacão mais maliciosa, as telenovelas. ‘Por razões industriais, de negócio, os culebrones estão eliminando palavras que possam ser mal interpretadas neste ou naquele país’, diz.
Sabor tropical
A importância dada pelos acadêmicos espanhóis as contribuições lingüísticas de seus colegas latino-americanos, além de representar uma saudável ausência de arrogância cultural colonialista, significa também o reconhecimento do que o gramático Gregorio Salvador chama de ‘realidade da língua’.
Ele próprio um estudioso apaixonado do boom da literatura latino-americana dos anos 1960, afirma que o esplendor dessa criatividade no século 20 abriu os olhos de gramáticos e filólogos espanhóis para a fascinante riqueza da língua em terras distantes. Assim, terminada a leitura (e releitura constante) de Cien años de soledad, de Gabriel García Márquez, um texto repleto de termos dialéticos colombianos, Salvador disse haver sentido mais facilidade para se mover dentro do espanhol latino-americano.
Nesse sentido, ele com toda certeza sabe também da diversidade do espanhol falado e escrito no México, as curiosas diferenças léxicas entre o norte e o sul do país e dentro dos Estados Unidos, onde surgiu, nos anos 1960, com o crescimento da população hispana, o chamado spanglish (‘voy a parquear mi coche’, em lugar do correto ‘voy a estacionar mi coche’).
Preocupa também os acadêmicos espanhóis e latino-americanos a entrada livre, via Estados Unidos, dos neologismos da informática e, sobretudo, o mau uso dos dois idiomas na hora da tradução. É comum no México, por exemplo, o usuário de caixas eletrônicos ou máquinas de Coca-Cola deparar com o letreiro fuera de servicio, do inglês out of service, quando o mais adequado e compatível com o espírito do espanhol seria no funciona. Nos aviões, os passageiros ouvem o aviso de este es un vuelo de no fumar, do inglês this is a non-smoking flight, quando a melhor tradução seria se prohibe fumar en este vuelo.
E como fica a palavra México? Como deve ser escrita e pronunciada, considerando que os espanhóis escrevem e pronunciam ‘Méjico’, os gringos dizem ‘Mecsico’. O certo, garantem os especialistas da Academia Mexicana da Lingua, com todo respeito e carinho, por favor, é México (com o ‘x’ pronunciado como ‘j’).
******
Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México