Há muitos anos, ainda garoto, junto com um colega de colégio, partimos para a Zona Sul do Rio, numa aventura que se tornaria inesquecível. Queríamos entregar o manuscrito de nossa autoria a um famoso poeta mineiro, ansiávamos que o gênio confirmasse que éramos geniais. Munidos do endereço, chegamos ao prédio simples de Copacabana onde deixamos o nosso livrinho com um simpático porteiro, ele o levou e logo nos trouxe a instrução para retornarmos após uma semana. Ficamos eufóricos. Dias depois, no êxtase de resgatarmos o material, encontramos uma carta entre as páginas. De todo o carinho que o lendário poeta nos dedicou, ficaram os cantos singelos que até hoje badalam na memória: “Aos velhos, a vida é lembrança boa; aos jovens é fardo, morte e garoa. ”
Quando comecei a folhear o “Alçapão”, do André Ladeia, lembrei-me imediatamente dos versos que o mestre poeta nos dedicou no livro adolescente. De fato, a cisma da morte mostra mais afinidade com a juventude. Aos anciões, o passado adquire maior relevância do que um futuro que lhes parece óbvio. André, sendo um escritor que ainda desfruta das alvoradas da vida, não evitou a atração mórbida, examina a morte pela escrita, mas sempre à luz de um olhar original e invulgar. Porém, o que realmente nos intriga são as características nítidas e paradoxais, variantes de duas escolas literárias do passado que se fundem e confundem-se, de um jeito informal, na poesia contemporânea do autor: o arcadismo e o simbolismo.
“Os críticos, não raro, inventam mais do que realmente dizem as palavras” (Perdido no poema, pág. 45)
Talvez, ao escrever este verso, o André já profetizasse que alguém iria inventar moda quando lesse a sua obra. Pois é, coube a mim a ousadia. Provavelmente, até o leitor mais desatento perceberá a natureza como um elemento constante nos belos versos que compõem o livro, mas ela se sublima na intensa comparação entre a decadência do homem e a presença da morte. O domínio da natureza é tão bruto nas construções de “Alçapão”, que em poemas como “Início”, que abre a primeira parte do livro, transpira a ideia de que a arte é capaz de prescindir do artista quando encarna paisagens emolduradas pelo mar.
“O mundo não era um lugar triste porque havia o mar e havia a poesia e a poesia era tudo. ” (Início, pág. 14)
No entanto, em “No alto”, a cidade é um ponto colorido e uniforme, quando observada à distância; vista das entranhas, nos ameaça com seu gigantismo.
De perto, tal como o mar, a cidade nos engole (pág. 19)
Não classifico André como poeta, que em nosso tempo futurista soa como um reducionismo. Chamo André de escritor, um maestro com a capacidade de reger imagens puras, desenhadas com palavras, mas que se sobrepõem a elas. São composições complexas, exigem a força da exatidão para conduzir sem tropeços a nossa espontânea sensibilidade. Por todas as páginas a palavra se atrela à contemplação do divino, não se misturam, são entes paralelos que refletem a abstração inatingível. Palavras que, algumas vezes, se ofuscam na depuração dos cenários.
O autor, um carioca radicado em Minas Gerais, demonstra que foi assimilado pelas montanhas e pelo céu dos inconfidentes. Engaja os versos, recusa a alienação. Carrega uma qualidade cada vez mais rara em um mundo alimentado pela tecnologia que nos torna egocêntricos, que resume a literatura a um miserável templo de mercadores fúteis e omissos. André Ladeia faz do seu trabalho uma reação de desobediência num território que quer nos transformar, a todos, em produtos comerciais e efêmeros. No valioso poema “Ouro Preto” (pág. 23), o homem é o revolucionário, mas a poesia é a revolução. E assim se revela a parte II de “Alçapão”: o homem tirano, que deflagra as carnificinas, termina por ceder, involuntariamente, toda a beleza poética das revoluções à arte.
Mais importante que o voo, é a liberdade (Uma andorinha, pág.34)
A revolução confronta a pátria, que exibe sua atmosfera bolorenta nas linhas de “Retrato dos velhos tempos”: “Em cada repartição a foto insossa do presidente reproduz o seu governo” (pág. 40).
São muitas as contraposições lúgubres, entre o homem, a morte e a natureza. Todas exibem a humanidade como a coadjuvante frágil, coexistindo com abismos inevitáveis, nunca decifrados integralmente pela razão. Os versos de “Reforma” nos dizem que é o extermínio, e não o entendimento, o único caminho para a renovação.
Para reformar, é preciso destruir (Reforma, pág. 28).
No instigante “Aliciamento”, objetos pagãos adorados pelos crentes fomentam o instrumento para se negar a religiosidade, numa contestação que ergue a sutileza das diversas catarses que brotam pelos degraus subterrâneos, que galgamos cercados por enigmas.
Seguimos a jornada como navegantes sem bússola. A poesia que nasce da frustração do poeta precisa lutar bravamente para alcançar o destino impalpável. Um mosaico de cenas, harmonias e sons que prometem apenas a grandeza incerta. O mesmo poeta é revelado como um ser traiçoeiro na sua face humana (Gralhas, pág. 50), vive do bote motivado por parcas recompensas. Uma viagem de sensações e vertigens que viciam todos aqueles que a experimentam. Um pêndulo que balança da glória fugaz à tradução da eternidade.
Foi a primeira vez que terminei a leitura de um livro de poesias fascinado por uma breve peça teatral que fecha o volume. “Domingo em Rigel Kent” (pág. 69) é uma representação deliciosa e brilhante, com personagens vivendo perplexos numa cidade em que a Prefeitura decreta os dias correntes da semana por Portaria; onde, quase sempre, é um domingo do qual os habitantes querem escapar.
Percorrendo as folhas férteis de “Alçapão” somos levados a um silêncio escuro e reflexivo. Simultaneamente, suspeitamos que é esse silêncio que guarda o nosso apocalipse. Como leitores, nos afogamos no naufrágio dos livros, na confissão íntima de que estamos sós.
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Alexandre Coslei é jornalista e escritor