Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Aldo Manuzio e a aventura do livro

Fisicamente, o livro é um conjunto de folhas impressas – agrupadas em fascículos ou cadernos numerados em ordem crescente e costurados para funcionar como sanfona – inseridas, coladas e protegidas por uma encadernação ou capa. Além disso, é provavelmente o conjunto metafísico mais elogiado pelos mestres da liturgia tipográfica de todos os tempos.

Usado em primeira instância como apoio teórico do patrimônio cultural da Humanidade, pode-se defini-lo como se queira, por exemplo: ‘símbolo de todas as coisas

importantes que lhe foram confiadas, com o propósito de ocultá-las da maioria ou evitar que se percam ao longo dos tempos’ [passagem de conferência pronunciada em 1968 pelo eminente bibliotecário Jordi Rubió i Balaguer na Livraria Porter, de Barcelona].

A Unesco define-o ainda mais laconicamente: ‘Impresso não periódico que agrupa num só volume mais de 49 páginas, excluídas as capas. Quando menor chama-se opúsculo ou folheto (ou plaqueta); quando formado de mais de um volume, rotula-se obra’. No curso de cinco séculos e meio de sua história, esse conjunto glorioso de folhas impressas organizou-se convencionalmente da seguinte forma:

** Abrindo-se a capa (descrita no final desta exposição) aparecem páginas brancas de guarda, ou cortesia, de duas a quatro, segundo a categoria da edição; em geral e simetricamente estas páginas também se repetem ao cabo do livro.

** Em seguida, a primeira página ímpar impressa chama-se anterosto (ou falsa folha de rosto ou falso frontispício) e traz impresso apenas o título da obra, em corpo pequeno.

** Nos costas da página de ante-rosto, que espelha com o frontispício, pode constar, se desejado, o retrato do autor ou da personagem biografada.

** A página ímpar seguinte ao ante-rosto chama-se frontispício (ou página de rosto) e é o verdadeiro cartão de identidade do livro, pois nela figuram: o título completo (em corpo maior que o do ante-rosto, embora menor que o da capa), o subtítulo ou as partes, nome e sobrenome do autor e a identificação da editora (logotipo, denominação, cidade e ano da edição).

** A página seguinte ao frontispício chama-se página de créditos (ou ainda verso da folha de rosto); nele se apresentam os créditos editoriais, outros detalhes específicos (como: copyright, depósito legal, ficha catalográfica, dados da editora etc.), o título da obra no idioma original, em se tratando de tradução, a numeração, caso seja edição para bibliófilos, e a licença eclesiástica, se pertinente.

** A página ímpar seguinte pode ser reservada para dedicatória.

** Na página ímpar imediata vem o sumário, a primeira página do prólogo ou o texto do livro (eventualmente encimado por um frontis, friso ou cabeceira em caixa alta, constituído geralmente de desenhos decorativos em forma de arabescos ou vinhetas).

** Se o livro se divide em capítulos com títulos, estes vêm em páginas isoladas, sempre ímpares.

** Nas páginas de texto, este costuma apresentar-se sob a forma de bloco ou colunas tipográficas, tradicionalmente de corpo 12 [10 no Brasil]. Em livros de formato grande ou temática infantil, o corpo pode chegar a 24; Stanley Morison achava que não se podia chamar propriamente de tipografia quando se empregasse corpo maior do que este. Nos livros de bolso (ou menores) o corpo pode reduzir-se até o limite razoável de 8, habitual para notas de pé de página dos livros normais. As páginas de texto poderão conter notas ao pé da página, ou ao final do capítulo ou do livro. Os números em corpo reduzidíssimo, estrategicamente alocados no texto, reportando-se às notas, chamam-se tipos sobrepostos. O fólio ou foliado refere-se à numeração das páginas; o fólio explicativo ou historiado é o que, além do número, traz o título do capítulo ou da obra ou o nome do autor. Ao término do capítulo, o texto pode assumir formas tipográficas singulares: por exemplo, o copo ‘Médicis’ clássico (em forma de copo renascentista, com pé), a base de lâmpada (em forma de triângulo invertido) ou então, mais exótico, o triângulo espanhol (com a última linha do texto centralizada ou epigráfica).

** No final do livro ficam os apêndices, a bibliografia, os índices analíticos – ou de assuntos – e de nomes, e os índices propriamente ditos, ou sumários (se estes não aparecem no início).

** Por último, mas antes das páginas de guarda ou cortesia (se houver, pois são optativas) costuma aparecer o colofão, última página impressa, que contém tradicionalmente a data em que se acabou de imprimir o livro, o local e a gráfica, redigido num estilo literário também tradicionalmente florido.

** As capas do livro podem ser rígidas ou flexíveis. As primeiras denominam-se capas duras ou cartonadas, as segundas, rústicas ou moles. As capas duras, por sua vez, revestem-se em geral de tecido, tela (ou variações de produtos sintéticos menos nobres, mais baratos) couro ou pergaminho, obedecendo sempre a tradição histórica. E nessa tradição, trazem pouca impressão: uma vinheta decorativa ou o título na capa da frente, impresso em geral com destaque, não raro em ouro ou prata – como se continua praticando desde Manuzio – ou em outra cor qualquer; na 4ª capa (costa externa do livro) põe-se um escudo ou símbolo. Costuma-se hoje revestirem-se as capas duras com papéis que possam receber impressão; desse modo, acabam ilustradas em cores como as sobrecapas ou as capas flexíveis.

** As sobrecapas consistem em uma folha de papel dobrada em quatro páginas, com lombada e orelhas. Recobrem o livro de capa dura, com dupla função: de um lado suportam a impressão de letras, imagem e cores sem outra limitação que a do bom gosto e moderação; em segundo lugar evitam (ou pelo menos retardam) o desgaste do material que reveste a capa dura. As faces da capa e da sobrecapa recebem respectivamente o nome de 1a capa (ou sobrecapa), 2ª capa, 3ª capa, 4ª capa.

** A lombada é um dos elementos mais característicos e peculiares do conjunto exterior do livro. Historicamente foi o primeiro e principal elemento da capa a ser decorado. Contém os seguintes dados essenciais: o título e o autor da obra; a editora, freqüentemente sob a forma de logotipo; pode-se incluir, em se tratando de coleção, o número do volume e/ou título da coleção. Em virtude da redução progressiva dos formatos e espessuras, somente no século XX se introduziram as atuais disposições de títulos redigidos de baixo para cima, ou vice-versa, paralelas à lombada, e não no sentido transversal, segundo a tradição clássica. As lombadas com legendas de baixo para cima chamam-se à francesa e as de cima para baixo, à inglesa.

** As guardas, formadas de dois jogos de quatro páginas, a primeira e a última delas coladas, respectivamente, na 2ª capa e na 3ª capa dos livros em geral cartonados (capa dura), mostram-se habitualmente com desenhos em forma de mosaicos ou indianas em cores, lembrando as técnicas características dos papéis pintados artesanalmente – que ainda sobrevivem – e praticadas na Europa desde o século XVII. Têm sua origem numa prática turca iniciada duzentos anos antes.

‘Arquitetura gráfica’

Em síntese, tal é a morfologia do objeto que nos propusemos analisar. Curiosamente, a natureza física do livro impresso pouco mudou nos cinco séculos e meio de aventura histórica a ponto das definições tão assépticas e precisas, como as anteriormente arroladas, poderem aplicar-se indistintamente a livros do passado, do presente e talvez do futuro.

Graças a essa circunstância sincrônica tão peculiar, pode-se já estabelecer uma primeira hipótese, assaz evidente, a saber: se fosse o caso de reduzir a história do livro impresso a uma só pessoa, esta deveria ser o inimitável Aldo Manuzio – personagem que vale por três, mercê de sua deslumbrante e simultânea condição de editor, tipógrafo e livreiro; quer dizer, responsável único por uma obra culturalmente gigantesca, cujo magnetismo irresistível nos atrai hoje com o melhor dos ímpetos: o que simplesmente aumenta com o passar dos anos.

De fato, acima dos dados biográficos e profissionais elementares de figura emblemática como Gutenberg (símbolo histórico universal da invenção da imprensa) e dos incunábulos em geral, surge de imediato a magia particularíssima das edições desse homem de letras extraordinário, cujo fascínio se deve à feliz conjunção de emoções intelectuais, artísticas e técnicas únicas, filhas de um tempo racionalista no qual, segundo a opinião de John Ruskin (artista e escritor do final do século XIX), ‘Veneza toda era ciência e sabedoria’ [J. Ruskin, Las Piedras de Venecia, Barcelona, Ediciones Iberia, 1961].

Abstraídos na contemplação de tão bela obra, não nos demos conta de que a atração pela figura e trabalho de Manuzio é muito mais ampla do que poderíamos imaginar. Tomamos consciência disso ao consultar e reunir as primeiras fontes bibliográficas, algo aleatoriamente, como bem o mostra a bibliografia constante no final deste volume – verdadeiramente extensa, e até surpreendente, se considerarmos o estado incipiente da tipografia, a turbulência política de seu tempo e a densidade cultural do período que lhe coube viver.

A lista é claramente assombrosa. Estudos extensos como os dos professores Carlo Dionisotti e Giovanni Orlandi, ou os de Martin Lowry e Manlio Dazzi, para citar somente os mais célebres, podem levar a pensar que se apresentou quase tudo a respeito do humanista veneziano. E, além disso, de modo muito atraente, porquanto os editores citados têm o dom de dar voz aos arquivos e bibliotecas, em linguagem sugestiva e literária, abeirando-se de estilos conhecidos, salpicados de comentários históricos, como podiam sê-lo os que merecem crédito, cada um a seu modo, de nossos contemporâneos Eduardo Mendonza ou Arturo Pérez Reverte ou, anteriormente, o insigne pioneiro que foi Benito Pérez Galdós.

Séculos atrás, testificam-no também, por exemplo, a biografia de Domenico Maria Manni, de 1759, o exaustivo trabalho de Antoine-Augustin Renouard (recolhido na edição em três volumes dos Annales de L’imprimerie des Aldo, publicados pela primeira vez em 1803, Paris, logo depois da Revolução Francesa!) – e o do grande impressor e tipógrafo Ambroise Firmin-Didot, em 1875.

Trata-se, sem a menor dúvida, de estudos de sólida consistência acadêmica, e a modéstia de nossa iniciativa está longe de aspirar emparelhá-los. Pois bem, as consultas a essas fontes ratificou algo de que já suspeitávamos, ou seja, que não abundam estudos específicos sobre os critérios estéticos de Manuzio aplicados à ‘arquitetura gráfica’ do livro (expressão felizmente cunhada pelo notável arquiteto Walter Gropius, fundador da mítica escola de desenho Bauhaus, pioneira em racionalizar atividades relacionadas com o projeto, até então artísticas, e entre as quais se inclui por certo a confecção do livro).

Objetos de uso cotidiano

A conclusão mais alentadora é que o gosto pelo projeto de livros impressos por Aldo – a qualidade, por outro lado, implícita em todos os editores daquele período – não tem sido suficientemente estudado. Assim, apesar da existência de bibliografia tão impressionantemente convincente, essa carência justifica de sobra o aparecimento desta nossa obra.

Por conseguinte, cremos válido se faça todo o possível para que se conheçam e se divulguem as contribuições excepcionais que Aldo Manuzio deu à história do livro e que hoje integram a natureza gráfica e orgânica e convencional deste objeto cultural que por tantos anos – se não séculos – tão pouco se alterou. A letra cursiva, o formato de bolso, o livro ilustrado, o livro de texto, o impulso definitivo aos tipos de fundição do estilo românico, a página dupla considerada como unidade formal, a capa de couro sobre papelão, a lombada quadrada, a gravação de ouro laminado aquecido, as coleções temáticas, os catálogos, os conselhos editoriais e inúmeros outras coisas são obra dele.

A bem da verdade, fora dessa fertilíssima parcela manuziana encontram-se escassos elementos de fatos novos. Do ponto de vista cronológico, o primeiro talvez seja a invenção e aplicação da tipologia estreita, encolhida ou condensada, que surgiu no século XIX, em pleno Romantismo, para compor comodamente os versos endecassílabos ou alexandrinos na mesmo linha. Inicialmente se chamava com propriedade a essa tipologia de poética.

A segunda invenção determinante é também anônima e consiste na publicação de fotografia em livro: forma nova de ilustração em branco e preto (e mais tarde em cores), que iniciava forte concorrência com as xilogravuras, calcografias e litografias.

A terceira e, por ora, última invenção importante situa-se em 1928, sob a responsabilidade do projetista alemão Jan Tschichold que segundo parece foi o primeiro a editar livro com o texto em tipo linear (um dos que se chamavam genericamente grotescos).

No que tange ao projeto gráfico – ou à arquitetura gráfica do livro – termina aqui a simplificação, iniciando-se incansável e repetitiva complexidade. Pois, como diz Bruno Munari – artista e projetista italiano originalíssimo, que participou como poucos da dignificação gráfica do livro (sobretudo com seus trabalhos experimentais infantis, hoje verdadeiras peças de bibliotecas, assim como com sua intensa colaboração com o editor Giulio Einaudi): ‘complicar é fácil, muitíssimo mais difícil é simplificar’.

Uma complexidade simplificadora, se assim se pode chamá-la, levou à experiência arquitetônica. Ninguém como Gropius poderia dizer com mais autoridade que projetar livros era também uma forma de fazer arquitetura. De fato, a disciplina do módulo, a preparação, o equilíbrio de tom e de ritmo, para citar apenas parte de sua prolífera casuística, complicariam sem dúvida alguma, e até de modo extraordinário, a vida dos projetistas artesãos, responsáveis pela construção formal de livros, sem esquecer que a fórmula inteligentemente interdisciplinar (teórica e prática) que o diretor da Bauhaus escolheu para tratar a arte, a arquitetura, o artesanato e o projeto num único campo de ação tinha que forçosamente simplificar – a curto ou médio prazo – todos os aspectos formais do processo editorial, ao menos conceitual e instrumentalmente.

No dizer de Nikolaus Pevsner, a mudança mais profunda consistia ‘em que arquitetos e projetistas aceitassem a mesma responsabilidade social, e, portanto, a arquitetura e o projeto se transformassem num serviço, e em que os edifícios e os objetos de uso cotidiano fossem projetados não só para satisfazer os anseios artísticos de seus criadores, mas também para preencher necessidades poéticas – fazendo-se isso a fundo e com entusiasmo’ [N. Pevsner, The Sources of Modern Architecture and Design, Londres, Thames & Hudson; existe edição espanhola: Los Orígines de la Arquitectura Moderna y del Diseño, Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1978].

Projeto inovador

Apesar das boas e novas intenções mostradas nos anos 1920 pelos propulsores do Estilo Internacional, a relação entre arquitetura e livro vem de muito antes. Atentando para os elementos constitutivos do livro, vemos que alguns conservam ainda antiga e misteriosa terminologia arquitetônica: falso frontispício (ou falsa folha de rosto), folha de rosto ou frontispício (freqüentemente decorada com desenhos arquitetônicos envolvendo títulos e legendas, sobretudo nos séculos XVI, XVII, XVIII); pórtico (do prólogo), frontis (da vinheta no topo da página, ao início do texto) ou friso (quando a vinheta tem o formato de orla de cercadura); margens (da superfície branca da página que rodeia a mancha do texto); blocos ou colunas (da morfologia das manchas de texto) etc.

A arquitetura, por sua vez, mantém analogias formais e estruturais com o livro, suficientemente expressivas para explicitar seus aspectos anedóticos na aparência. Principalmente depois que Gropius – com Miers van der Rohe, Le Corbusier e outros – aplicaram na execução dos projetos as idéias sociais e racionalistas do conhecimento moderno. Assim, o critério de livro equivale ao espaço habitável da casa, ao passo que a casa assume o papel da fachada. Em decorrência, a forma exterior define a casa ou, ao menos, sugere-a, enquanto o interior lhe é precedente e mais importante. A forma segue a função (segundo pregava o famoso lema dos nossos projetistas, empenhados na causa nobre de transformar a sociedade através do projeto) e quando, mesmo hoje, a relação de harmonia entre continente e conteúdo de uma casa – ou de um livro – é ótima, fala-se em rigor racionalista. Inversamente, quando esse projeto não se realiza e a fachada – ou a capa – são produzidas sem levar demasiado em conta seu conteúdo, pode-se falar com absoluta justiça em incoerência, decorativismo, ecletismo, academicismo etc.

‘Existem duas características de organização comuns à arquitetura e construção e à tipografia e produção gráfica que se devem ter como princípios essenciais e como tais devem ser obedecidos por ambas as artes: o respeito aos materiais usados e seu emprego em consonância com os objetivos sociais, essência das duas artes. A atividade tipográfica, como a arquitetura, está a serviço da sociedade. São artes que, por sua natureza, estão predestinadas a servir a civilização’ [S. Morison, First Principles of Tipography, Cambridge, Cambridge University Press, 1931. Existe edição espanhola: Principios Fundamentales de la Tipografía, Barcelona, Ediciones del Bronce, 1998.].

A imagem pela imagem é, sem dúvida, critério tão discutível quanto a arte pela arte, que os racionalistas repudiavam tão radicalmente. Se aceitarmos a definição que os dicionários convencionais dão para ilustração (‘ornar um impresso com figuras ou gravuras alusivas ao texto’), veremos que continuam as analogias entre arquitetura e livro. Nesse sentido podemos admitir que as fachadas e as capas são metáforas da ilustração: ornar a superfície mais ou menos plana de uma fachada com formas (e, às vezes, até com figuras e gravuras) alusivas de algum modo ao discurso interno é semelhante ao critério com que se executam as capas atuais, repletas de imagens alusivas também, de algum modo, ao discurso interno.

A dialética eloqüente entre forma e função tem com freqüência exasperado os criadores da arte aplicada, a ponto de levar Achille Castiglione (um dos projetistas industriais mais capacitados) a exclamar: ‘A função, que forma belíssima!’ Nada obstante, deixando agora de lado lirismos e propósitos elevados, a realidade é que o exterior dos livros ignora muitas vezes seu interior – e vice-versa –, num processo de degradação deveras escandaloso, tornando manifesta a disfunção mais arbitrária e perpetrada ostensivamente.

Na realidade, já faz bons anos que as funções estão separadas: enquanto a capa permaneceu patrimônio do projetista, o miolo é competência quase exclusiva do editor ou impressor. Essa disfunção se manifesta em geral quando se comparam os critérios tipográficos e de composição com os quais se definem e produzem separadamente a capa e o miolo, daí resultando inevitáveis divergências, se não incoerências e indefectíveis contradições. Não que em algum momento do processo se tenham abandonado os princípios teóricos do Movimento Moderno; é que jamais foram observados (excetuados casos gloriosos, vanguardistas e inteligentes que, infelizmente, não lograram fazer escola). Maliciosamente, o projeto tipográfico inovador de Jan Tschichold, proposto em seu livro Die Neue Typographie (publicado em 1928), foi tachado depreciativamente como ‘composições tipográficas futuristas’ pelos críticos de seu tempo.

Quinhentos e cinqüenta anos

Para terminar, umas poucas palavras que justifiquem algo de absoluto capricho nosso. Com o propósito de salientar ao máximo a arquitetura gráfica de belas páginas aldinas (que, em última instância, são textos) e as de outros projetistas, as ilustrações são impressas sempre em negativo. Esse recurso singelo permite destacá-las claramente de nosso texto – dedicado a valorizar o desenho de outros livros –, facultando, além disso, a visão de aspecto quase invisível e de enorme importância publicitária: a contraforma. Entenda-se: aquilo que é antagônico à forma impressa – numa palavra, aquilo que não aparece no impresso –, embora decisivo para a configuração de um belo impresso, no que tange à sua forma. Tanto assim que, se examinarmos com atenção a contraforma de um livro, será o mesmo que tirar a prova dos nove de uma divisão, para comprovar se a operação se fez corretamente, ou uma radiografia para apreciar o esqueleto de forma translúcida.

Igualmente, o tipo e corpo de letra – que em geral passam despercebidos –, assim como a ordenação do conjunto, tornam-se assim mais evidentes, já que, numa página preta, que se destaca agressivamente da contígua, a percepção se volta de modo inconsciente para o que é branco, onde o olhar se concentra descansado.

Esse tratamento específico da forma tipográfica convencional possibilita também apreciar melhor as características formais de páginas como essas, cujo protagonismo monopoliza a letra, salientando os critérios de projetos que definem, por exemplo, as margens. No espaço branco ou suporte da impressão (o papel) as áreas que limitam a mancha impressa (a coluna de texto e as ilustrações) têm proporções muito especiais. As dos manuscritos, incunábulos e clássicos em geral, mais escrupulosamente fiéis às regras áureas (da divisão medieval de Villard de Honnecourt à Proporção Áurea renascentista, e desta às proporções de Le Corbusier), atingem uma superfície equivalente, aproximadamente, à mancha impressa, de modo que a parte branca e a parte preta são matematicamente iguais. Quando a proporção não é essa, costuma-se estabelecer 30% para as margens e 70% para a mancha. De todo modo, as relações mais freqüentes das margens no tocante à página são: 2:3:4:6 para os áureos e 1:2:3:4, ou então 1:1:2:3 para o resto (o primeiro número se refere sempre à margem da lombada; o segundo, ao alto da página; o terceiro, ao corte e o quarto, ao pé da página). Talvez não seja demais acrescentar que as proporções das margens dos livros atuais, sobretudo os de formato de bolso e similares, são insuficientes, geralmente indignas e bastardas.

Sem mais preâmbulo, partamos para a comparação de se o nascimento, crescimento e desenvolvimento do livro impresso, que já completou mais de quinhentos e cinqüenta anos, conserva ainda algum fator genético daquele jeito de fazer próprio de Manuzio – jeito esse tão brilhante, eficaz e competitivo.