Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Algoritmos são um perigo para desprevenidos

O ano era 1984 e Edward Frenkel tinha 16 anos, mas já sabia exatamente o que faria em sua vida profissional: seria matemático. O cidadão soviético nascido em uma cidade medieval nas cercanias de Moscou teve negado seu pedido de admissão na única escola dedicada ao estudo intensivo da disciplina na capital russa. “Meu pai é judeu. A Perestroika ainda não havia começado e só sobrevivi ao comunismo por conta da generosidade de um grupo de matemáticos que me acolheu e me ajudou a seguir meu sonho”, diz, de sua sala na Universidade de Berkeley.

Desde 1989 professor visitante nos EUA, inicialmente em Harvard, Frenkel viu seu “Amor e Matemática”, lançado em outubro de 2013, um mix de memória e declaração de amor à disciplina, se transformar em um best­-seller, que agora chega ao Brasil. O livro é dedicado aos professores e mentores que o ajudaram a se tornar um dos nomes mais influentes da matemática.

Em entrevista ao Valor, Frenkel trata dos principais equívocos no estudo da matemática nas escolas, do seu uso nem sempre adequado pelas corporações do mundo digital, de como um conhecimento básico da matéria pode ajudar no entendimento da “ilusão das múltiplas escolhas” da era da informação, e de como ela está mais próxima de nosso cotidiano do que desconfiamos.

Qual é o principal problema no estudo de matemática nas escolas?

Edward Frenkel – Não se transmite para os estudantes o que a matemática de fato é e como pode ser útil. Os estudantes memorizam fórmulas e cálculos que parecem vazios de sentido. O que fica é algo irrelevante, chato, sem vida. As pessoas acham que odeiam a matemática, mas, não, reagem contra uma versão da disciplina que lhes foi ensinada. Gosto de usar o exemplo da educação artística como contrapartida. Imagine um professor ensinando como se pintar uma cerca durante anos a fio, sem jamais apresentar as obras dos grandes mestres. Obviamente, você reagirá dizendo “odeio arte”. Mas o que você está dizendo, na verdade, é “odeio pintar aquela cerca”.

Ou seja, o currículo é engessado…

E.F. – Sim. Você sabia que a maior parte do que aprendemos nas escolas, em matemática, é idêntico ao que se ensinava no milênio passado? A fórmula para a solução de equações ao quadrado está exposta tal qual se vê no livro do persa Muhammad al-­Khwarizmi (780-­850) datado de 830. As funções da geometria euclidiana foram traçadas por Euclides há 2.300 anos. Se o mesmo ocorresse em disciplinas como biologia e física, não trataríamos do sistema solar, do átomo, do DNA. Isso é inaceitável, especialmente nos dias de hoje, quando a matemática está, mais do que nunca, ao nosso redor.

O senhor se refere aos computadores?

E.F. E aos videogames, GPS etc. Como é que não estamos ensinando matemática a nossas crianças a partir desses elementos? Por que bater na tecla do mesmo e milenar material? Pode­-se retrucar que é necessário estudar o que é clássico e chato, inicialmente, para descobrir depois a parte mais nova e instigante. Essa ponderação não é verdadeira. Você não precisa estudar geometria euclidiana para compreender a geometria da esfera, que trata dos paralelos e dos meridianos de um globo. Aliás, estudantes contemporâneos podem decifrar a geometria não euclidiana muito mais rapidamente do que a tradicional. E garanto que ela é muito mais divertida.

O senhor gosta de afirmar que a matemática é o “único corpo firme de conhecimento que possuímos e jamais poderá ser tirado de nós”…

E.F. – O problema é que matemáticos profissionais defendem pouco a verdadeira matemática. Estamos sendo privados de uma parte essencial de nossa cultura. É um crime, que denuncio em meus livros, ao traduzi-­la, sim, como o único conhecimento atemporal e universal que todos nós dividimos. Se Leon Tolstói (1828-­1910) não tivesse existido, não teríamos “Ana Karenina”. Mas se Pitágoras (c. 570-495 a. C.) não tivesse nascido, alguém descobriria seu teorema. Mais importante, esse teorema tem hoje o mesmo significado que tinha há 2.500 anos e significará o mesmo um milênio adiante. Não importa a língua que falamos, nossa religião, classe social, gênero ou etnia. A matemática é um traço de união universal. Devemos amá­-la e celebrá-­la. Para parafrasear Isaac Newton (1643-1727), a matemática é um grande oceano de verdades, pronta para ser descoberta. Meu sonho é que um dia a gente vai acordar para essa realidade escondida e aí seremos tal qual crianças na imagem cunhada por Newton, brincando na praia, nos maravilhando com a beleza acachapante e a harmonia que vamos descobrir.

Se a matemática está de fato mais presente em nossas vidas do que percebemos, por que resistimos em reconhecer isso?

E.F. – Por medo. E essa ignorância é perigosa, especialmente porque a matemática hoje é muito mais crucial para nós do que em qualquer outro momento histórico. Quem opta por ser um ignorante da matemática se vê necessariamente mais vulnerável, será mais facilmente manipulado por atores que dominam os códigos matemáticos e usam esse conhecimento em seu benefício, como corporações e agências governamentais. Não estou defendendo que todos aprendam detalhes complicados da disciplina, mas que adquiram um senso geral da matemática, de como ela pode ser usada. Por exemplo, pense no bombardeio de propaganda para se comprar produtos on­line, como livros na Amazon. Esta pode ser uma ótima ferramenta, mas se seguirmos cegamente as recomendações criadas através de combinações de algoritmos matemáticos associados a nossos hábitos de consumo, aí nos tornamos bobos alegres. Esses números podem ser manipulados facilmente. Precisamos pensar no interesse, por exemplo, de nos afastarem de determinados títulos. E o bitcoin? Como é que você pode entender as critpomoedas se você tem medo de matemática? Suas chances de cair em um esquema fraudulento serão muito maiores. Precisamos confrontar esse medo e despertar para a realidade matemática à nossa volta.

O subtítulo de sua recente entrevista para a revista americana “Mother Jones” dizia: “Professor Frenkel quer que vocês entendam matemática para que economistas, banqueiros, corporações parem de manipulá­-los”. Não houve um exagero aqui?

E.F. – O conhecimento geral de matemática é importantíssimo para todos nós neste novo mundo em que vivemos. Se você tiver um conhecimento rudimentar de estatística, jamais investirá em um esquema como o de [Bernard] Madoff nos Estados Unidos, ou, pelo menos, desconfiará de um investimento que oferecia, ano após ano, a mesma idêntica margem de lucro. Também não tenho dúvida alguma de que o mundo financeiro se beneficia do senso comum de que “matemática é para poucos”. Um tópico que discuti detalhadamente na revista digital “Slate” foi a manipulação de estatísticas econômicas.

Pode dar um exemplo?

E.F. – Em 1996, uma comissão, nomeada pelo governo americano, se reuniu secretamente e alterou a fórmula para o cálculo do índice de preços ao consumidor. Ora, trata­-se do número que mede a inflação e é fundamental, tanto para o cálculo do pagamento do imposto de renda quanto dos benefícios sociais de milhões de americanos. Mas a discussão pública sobre as razões da mudança foram mínimas, pois as pessoas têm medo de parecerem ignorantes tratando de um tema supostamente reservado a especialistas. Na prática, os cidadãos entregaram, neste caso, ao governo, o poder de usar fórmulas matemáticas a seu bel-­prazer. Não é diferente com o sistema de vigilância da Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês). Postei um vídeo no YouTube, em dezembro de 2013, explicando em linguagem simples a ‘matemática sofisticada de como eles conseguiram ler nossos e­mails’ [o vídeo, quando este texto foi finalizado, já contava com mais de 1,1 milhão de visitas]. É impossível, para um país interessado em avanços tecnológicos, negligenciar investimentos pesados em matemática, tanto em educação quanto em pesquisa. A matemática invadiu o espaço anteriormente pensado como sendo da ciência e da tecnologia, e a velocidade dessa invasão só aumenta. A revolução digital é baseada na tecnologia da computação, que é filha da matemática.

Na prática, como o estudo da matemática pode ajudar o cidadão a, para usar suas próprias palavras, “evitar a concentração de conhecimento nas mãos de pouquíssimas pessoas”?

E.F. – Empresas como Google, Amazon e Facebook coletam informações que usam para gerar lucros. Estamos nos tornando escravos de algoritmos. Não estou sugerindo que paremos de usar os produtos dessas empresas. Eu mesmo os uso todos os dias, e para meu enorme benefício. Mas também tenho a consciência de que, ainda que o slogan dos fundadores do Google seja “Don’t be evil” (“Não seja malvado”), e não tenho razão alguma de duvidar da sinceridade deles, uma corporação é exatamente como um algoritmo, cujo funcionamento é determinado pela maximização de sua função utilitária, ou seja, neste caso, maximizando o lucro. Isso é simples economia. Simples matemática.

O senhor cresceu na antiga União Soviética. Como compararia o poder de manipulação das grandes corporações da era da informação, que o senhor denuncia, com o do chamado socialismo real?

E.F. – São ideologias bem diferentes. Essa com que lidamos hoje é muito próxima do que Aldous Huxley (1894-­1963) descreveu com tanto brilho e onisciência em “Admirável Mundo Novo” e outros escritos. Estamos construindo uma sociedade em que todos acreditam ser livres, quando, na verdade, somos manipulados de várias maneiras, de modo sutil, o que, no fim, é a negação dessa mesma ilusão de liberdade. A matemática tem um papel protagonista nesse “admirável mundo novo”.

O senhor também trata de “mentes brilhantes” no Vale do Silício buscando criar máquinas que serão alimentadas com seus próprios cérebros”, os robôs quase-humanos. Hoje, isso ainda parece roteiro de filme…

E.F. – O debate em torno da inteligência artificial é muito importante. Infelizmente, é em geral apresentado de forma simplista, como uma discussão em torno de robôs, com tons futuristas. Quando deixamos o desenvolvimento da inteligência artificial nas mãos de um pequeno número de pessoas inescrupulosas, e com visão estreita do tema, nos colocamos em risco. Sim, robôs podem fazer mal a humanos, e isso não é mais ficção científica. De acordo com várias fontes sérias, sistemas de mísseis inteligentes já estão em funcionamento. Uma máquina, sem supervisão humana, pode, na teoria, matar pessoas. Não estou tratando de um futuro distante apresentado em um filme de ficção científica. Igualmente preocupante é a ideia, difundida cada vez mais, de que um ser humano nada mais é do que uma máquina, imagem trabalhada pelos que têm interesse financeiro direto nessa conexão. Quanto mais nos distanciamos de nossa humanidade menos importa se teremos de lidar com robôs assassinos, pois já nos teremos tornado escravos da tecnologia. Veja bem, encaro meu trabalho não apenas como alguém que lembra às pessoas o quão bela e poderosa é a matemática, mas também como alguém disposto a desmistificá­-la. A vida é muito mais misteriosa e preciosa do que qualquer equação.

Seu artigo para a página de opinião do “New York Times”, no ano passado, sobre a perfeição da matemática, intitulado “Seria o universo uma simulação?”, faz pensar, para ficarmos em Hollywood, na história de “Matrix”…

E.F. – Para mim, “Matrix” é essencialmente sobre indivíduos que se imaginam em um programa de computador. É uma obra que trata diretamente de nosso medo de nos tornarmos prisioneiros de nossos receios sobre o tema. É uma tema, hoje, do nosso presente. Estamos em um momento crucial. Podemos evitar uma realidade “Matrix”. Ou não.

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Eduardo Graça, para o Valor Econômico, de Nova York